Ideólogo de Bolsonaro é denunciado por cientistas

Doze pesquisadores publicaram artigo na revista Biological Conservation desmentindo teses de Evaristo de Miranda usadas para embasar políticas antiambientais do governo

por Bernardo Esteves, na piauí

Doze cientistas brasileiros denunciaram o grupo de pesquisa do engenheiro agrônomo Evaristo de Miranda, da Embrapa, por fabricar falsas controvérsias com o intuito de afrouxar as leis e normas para proteção do meio ambiente no Brasil. Num artigo publicado nesta terça-feira (25) na revista especializada Biological Conservation, os autores analisam o que eles descreveram como um “ataque às políticas ambientais estimulado por um esforço velado e sistemático de um pequeno grupo de negacionistas para desinformar os tomadores de decisão e a sociedade”.

Evaristo Eduardo de Miranda é o ideólogo da política ambiental de Jair Bolsonaro. Os dados gerados por ele e sua equipe na Embrapa Territorial são frequentemente citados pelo presidente e por seus ministros para defender que o Brasil é o campeão em conservação ambiental e que tem um excesso de áreas protegidas que prejudicam o crescimento do agronegócio nacional. 

Miranda foi perfilado pela piauí em março de 2021, numa reportagem intitulada O fabulador oculto. É pesquisador da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária, a Embrapa. Até o começo deste ano, era lotado na Embrapa Territorial, em Campinas, uma unidade da empresa que ele criou em 1989 e dirigiu em três ocasiões. Há poucas semanas, contudo, tornou-se assessor da presidência da empresa. A Embrapa Territorial não quis se pronunciar sobre o caso; Miranda não respondeu aos pedidos de entrevista feitos pela piauí.

De acordo com o artigo da Biological Conservation, muitas das alegações de Miranda são fabricadas e não têm lastro na realidade. Ainda assim, elas são populares nas redes sociais e entre políticos, e com isso contribuem para o desmantelamento das políticas públicas de conservação ambiental. O grupo encabeçado por Raoni Rajão, professor de gestão ambiental na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), alega que as falsas controvérsias promovidas por Miranda levaram à diminuição drástica do número de multas ambientais e ao desmonte das políticas de controle do desmatamento e das queimadas na Amazônia pelo governo Bolsonaro.

Mas a influência de Miranda no afrouxamento de normas ambientais vem de muito antes, conforme mostra o artigo. Nos anos 1990, estudos feitos por sua equipe contribuíram para retardar por duas décadas a proibição da queima da palha da cana-de-açúcar em São Paulo. Nas discussões sobre o novo Código Florestal, ele usou números artificialmente inflados para calcular a área de proteção em torno dos rios que não poderia ser usada para o agronegócio, conforme mostraram os pesquisadores. Seus números eram má ciência, mas tiveram peso no debate que levou à aprovação do código, em 2012, com a anistia de 58% de todo o desmatamento feito ilegalmente até 2008.

O estudo brasileiro repertoriou as estratégias usadas por Miranda e mapeou sua influência em Brasília. Os autores notaram similaridades entre o modus operandi do grupo da Embrapa e aquele usado por cientistas que estimulam o negacionismo climático e outras falsas controvérsias ambientais. Eles desconsideram, por exemplo, os consensos estabelecidos pelos especialistas e fazem uso indevido de suas credenciais científicas, valendo-se do prestígio da Embrapa para conferir autoridade a argumentos sem respaldo da ciência.

Rajão ressaltou que a denúncia do grupo de Miranda não equivale a uma crítica institucional à Embrapa. Lembrou o caso de um professor da Universidade de São Paulo (USP) que ganhou notoriedade como negacionista da crise climática depois de uma entrevista a um programa de tevê, mesmo sem ter qualquer produção científica relevante sobre o tema. “Não é porque alguém vem da USP que tudo que ele escreve é automaticamente verdade”, disse o pesquisador à piauí.

O grupo de Rajão passou um pente-fino no currículo de Evaristo de Miranda e constatou que, dos 83 artigos de sua autoria que ele listava em fevereiro de 2021, apenas 17 – ou 20% do total – tinham sido publicados em periódicos com revisão por pares, processo que funciona como o controle de qualidade do conhecimento científico. Além disso, os autores constataram que nenhuma das alegações que embasam as falsas controvérsias alimentadas por Miranda foi submetida à avaliação de outros especialistas.

Por isso mesmo, os cientistas brasileiros se empenharam em publicar seu artigo numa revista com revisão por pares. Rajão disse que o trabalho poderia ter sido divulgado muito antes na forma de relatório ou nota técnica. “Mas aí estaríamos sendo contraditórios com a nossa própria afirmação sobre a importância do processo cientifico”, afirmou o pesquisador.

O texto sai após um processo de revisão que durou mais de onze meses entre a primeira versão e aquela publicada após a avaliação do editor e dos revisores. O grupo de autores inclui nomes destacados das ciências ambientais no Brasil, como o climatologista Carlos Nobre, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), e a ecóloga Mercedes Bustamante, da Universidade de Brasília (UnB).

O artigo chama a atenção pelo tom contundente, atípico numa publicação científica. E por se enquadrar num gênero incomum na literatura: é praticamente um exposed acadêmico, construído com a finalidade de destrinchar e refutar as falsas alegações por trás das controvérsias alimentadas por um grupo de pesquisa. 

De acordo com Rajão, os cientistas e as revistas especializadas preferiam manter certa “distância higiênica” das notícias falsas e controvérsias fabricadas. “Só que os aventureiros estão tendo um peso maior nas decisões públicas do que as equipes enormes de cientistas que trabalham em universidades estabelecidas”, lamentou. Fazer a denúncia seguindo todos os ritos da publicação científica é uma nova forma de atacar o problema.

Rajão disse que, normalmente, os cientistas que atuam na fronteira não entendem que é responsabilidade sua cuidar da retaguarda do conhecimento científico. “Só que essa retaguarda está sendo corroída”, argumentou. “Nós temos que nos responsabilizar por ela e buscar entender o que está acontecendo com a ciência.”

O artigo brasileiro traz ainda algumas recomendações sobre como os cientistas e a sociedade deveriam lidar com as controvérsias fabricadas. Para os autores, o caminho para imunizar o público contra as notícias falsas passa por um melhor entendimento de como o conhecimento científico é construído e validado. Para tanto, os cientistas deveriam se empenhar em mostrar como seus dados são produzidos a partir de observações sistematizadas e acumuladas, tendo como base uma infraestrutura de conhecimento que envolve uma grande coletividade de atores.

“Temos que deixar claro para as pessoas que a ciência é uma prática que não é só feita por indivíduos, mas por coletivos, que tem controvérsias e incertezas reais, que tem erros e acertos, mais acertos do que erros”, disse Rajão. “Dessa forma talvez a sociedade e os tomadores de decisão possam criar filtros e antídotos contra esse tipo de incursão em políticas públicas com falsas controvérsias.”

Evaristo Miranda discursando em um evento da Embrapa, em agosto de 2019 (Foto: Robinson Cipriano/Embrapa)

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