A cueca caiu no samba: o Chile no Brasil. Por José Ribamar Bessa Freire

“Me pregunto constante, / ¿dónde te tienen? /
Y nadie me responde / Y tú no vienes / 
(…) Sin ti, prenda querida, triste es la vida” 
(Gala Torres). 

No TaquiPraTi

– Alô meu povo da Mocidade Independente do Chile! Olha a cueca aí, gente!

Esse poderia ser o grito de mais de 50 mil chilenos que migraram para o Brasil entre 1974 e 1989, muitos dos quais aqui formaram conjuntos folclóricos de música e dança, entre elas diferentes modalidades da cueca, a mais popular de todas. As práticas culturais dos chilenos residentes no Rio e em São Paulo foram objeto da dissertação de mestrado defendida na UNIRIO, segunda-feira (24), por Maria de la Merced de Lemos Urtubia, filha do jornalista carioca da Tijuca, Caio Lemos, que viveu no Chile, e de Amarilis Urtubia, natural de Santiago.

– A cueca chilena e o samba brasileiro, quando se encontram, representam a festa e a confluência de culturas irmãs – escreve Merced, que pesquisou o hibridismo cultural como resultado dessa convivência e o lugar que ocupa a música e a dança na memória e na construção identitária coletiva, tendo como pano de fundo a relação dramática com a história e a política.  

Exemplo de tal diálogo ocorreu no carnaval de 2004, quando a Escola de Samba Nenê da Vila Matilde – 4.000 componentes e 26 alas – convidou para o desfile no Anhembi o grupo Chile Lindo, que integrou a Ala das Etnias, usando trajes típicos com esporas pesadas, mantas de lã e chapéus de feltro feitos à mão por artesãs chilenas. Dias depois, no desfile das campeãs, uma chuva torrencial destroçou alegorias e adereços, mas mesmo debaixo d´água “a cueca caiu no samba” outra vez. Merced recupera também a participação, desde 1975, do artista plástico chileno Mory Balmaceda, carnavalesco da Escola de Samba Unidos do Peruche.

Baile da vida e da morte

Dança originária da América do Sul, a cueca está presente com outras denominações em vários países andinos: Argentina, Bolívia, Peru e Colômbia. Embora os conjuntos folclóricos do Rio e São Paulo apresentem outros bailes como trotes, cachimbos, carnavales, zamba resfalozas, huachitoritos, o brasileiro identifica apenas a cueca como dança tradicional chilena, que representaria assim o espírito da chilenidade. Contribuiu para sua fama no Brasil a graça que o nome provoca na língua portuguesa.

Trata-se de um baile que remete ao namoro do galo e da galinha, um jogo da conquista protagonizado por uma dama e um cavalheiro, que agitam um lenço com a mão direita, enquanto se deslocam em avanços, recuos e floreios, ciscando aqui e ali. A regra determina que deve ser dançada numa sequência de três manifestações com canções distintas. Cada uma é marcada por passos diferentes e pela troca de lados entre o casal. A primeira é a aproximação, a paquera; a segunda é a conversa, a “cantada”; e a terceira, o consentimento ou não do galanteio.

Na dissertação ilustrada com dezenas de fotos, Merced reproduz entrevistas com participantes de vários conjuntos, além de consultar a bibliografia pertinente, como é o caso da obra “La Cueca, Danza de la vida y de la muerte” do casal Margot Loyola e Osvaldo Cádiz (2010), que descreve a trajetória histórica do baile desde seu surgimento, em 1824, em Lima, com o nome de “zamacueca” e sua chegada, no ano seguinte, aos salões aristocráticos de Santiago, até se tornar popular. As danças chilenas foram trazidas ao Brasil por imigrantes que fugiram da ditadura Pinochet, mas também por pessoas que se evadiram da crise econômica de 1982.

Essa foi forma de os imigrantes retomarem o vínculo com sua terra natal.  Merced dedica um capítulo às manifestações culturais dos chilenos no Brasil, desde o surgimento do primeiro grupo em Salvador, Bahia, na década de 1970, com o nome de Conjunto Manantial. Com a transferência da família dos fundadores para o Rio, o grupo passou a atuar no Teatro Cacilda Becker, no Catete. Anos depois, é criado em São Paulo o Conjunto Folclórico Chile Lindo, que teve várias dissidências dando origem a novos grupos. Acabava de nascer a cueca samba-canção, que assume a politização da dança.

Cueca sola

Da mesma forma que os denominados “bolsonojentos” tentam monopolizar o verde-amarelo em benefício próprio, a ditadura do general Pinochet buscou se apropriar da cueca, declarada em 1979 como “Dança Nacional do Chile”, com suas mais de 80 variações. Mas essa era uma cueca suja pelos 17 anos (1973-1990) de tortura, mortes e desaparecimentos de opositores.

– “No entanto – escreve Merced – o projeto político cultural e a associação da cueca aos militares acabaram por levar a dança a tomar outra via, a dos porões da resistência. Nesses ambientes esquecidos e silenciados nasceram manifestações que conquistaram espaços públicos e disputaram na rua, com o oficialismo ditatorial, micropoderes e representação”.  

De forma discreta, contida e objetiva, Merced aborda no terceiro capítulo o símbolo da festa na ditadura, responsável por originar um novo tipo da cueca: a cueca sola, dançada por uma mulher sem o seu par. Trata-se de uma canção-corpo criada por integrantes do Conjunto Folclórico da Associação dos Parentes dos Desaparecidos, que testemunha a dor frente à ausência do companheiro detido ou desaparecido. É como se no desfile de uma escola de samba, a porta-bandeira se apresentasse sem o mestre sala.

– A mulher chilena, sempre reconhecida pela timidez, discrição, recato e comunicação através do olhar, inclusive nas danças folclóricas, já experimentou mudanças nos cenários chilenos. Esse papel fortificado se via, nos anos da ditadura, nas representações das mulheres viúvas ou mães de desaparecidos políticos, quando dançavam sozinhas (cueca sola) e, posteriormente, nas dançarinas do porto (cueca chora) – diz Merced, que dá conta dessas inovações.

Segundo a agora mestra em Memória Social, desde a redemocratização em 1990 é comum ver as mulheres dançando com maior presença corporal, sapateado mais forte e variado, movimento de saia e lenços antes impensados, marcados pela imposição dos limites do purismo tradicional. No entanto, hoje a dama pode, inclusive, controlar o espaço do varão.

They dance alone

cueca sola criou um campo para refletir sobre as relações da dança com a disputa política. Ela se fez presente no concerto da Anistia Internacional realizada no Estádio Nacional de Santiago e se disseminou em atos fora do país, como a manifestação gigantesca em Mendoza, na Argentina. Sua disseminação ecoou além da Cordilheira dos Andes com a participação de artistas internacionais, entre ele Sting, que cantou “They dance alone”, numa demonstração de que a ausência e o vazio podem denunciar o terrorismo de estado através de uma coreografia militante.

A bailarina Violeta Zúñiga (1933–2019), cujo companheiro continua desaparecido desde agosto de 1976, dançou por várias décadas a cueca sola centenas de vezes, inclusive em frente ao Palácio de La Moneda. Para ela, a repetição e a insistência era um exercício de memória, como testemunha da dor, da denúncia, mas também da esperança.  

Merced concluiu a dissertação no momento em que o Chile escolhia Gabriel Boric, um ex-líder estudantil, como o novo presidente da República para governar com um ministério formado em sua maioria por mulheres, num tempo em que florescem os rojos copihues – a flor nacional do Chile:

– “Respira-se novos ares que prometem respeito à cultura e às suas diversidades, mudanças amparadas por uma nova Carta Magna. redigida por representantes da sociedade civil. No entanto, não podemos esquecer que significativa camada de chilenos insiste em manter o modelo herdado da ditadura, seja por medo do novo, seja porque herdou discursos e traumas coletivos vividos por outros”.

P.S. – Vale a pena ler: Maria de la Merced de Lemos Urtubia: “A cueca caiu no samba. Memória, diáspora e práticas culturais dos chilenos no Rio de Janeiro e em São Paulo”. Pós-Graduação em Memória Social (PPGMS), UNIRIO.2022. Banca: José R. Bessa (orientador), Sérgio Luiz Pereira da Silva e Maria José Alfaro Freire.

Duas outras defesas foram realizadas nesta semana, uma de doutorado e a outra de qualificação de mestrado:

  1. Tese de Camila do Socorro Aranha dos ReisIlhas de Memória e a Hidrelétrica de Belo Monte – Histórias de vida no rio Xingu. PPGMS, UNIRIO. Banca: José R. Bessa (orientador), Amir Geiger e Maria Amália Oliveira (UNIRIO), Rosa Acevedo e Ivânia Neves (UFPA). Aprovada na quarta-feira (26), merece uma resenha por produzir conhecimentos novos importantes para o país.
  2.  Edilene Machado Barbosa: Os saberes das parteiras e pajés Shanenawa da Aldeia Morada Nova e a sua relação com o bem viver: luta e resistência da mulher Shanenawa. Programa de Pós-Graduação em Letras, Linguagem e Identidade da Universidade Federal do Acre (UFAC). Terça-feira (25). Banca: Marcos Matos (orientador), Shelton de Souza, José R. Bessa e Maria de Jesus Morais

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