Precarizados igual a Moïse, assassinos agiram como capitães do mato, diz professor da USP

Dennis de Oliveira aponta também que Bolsonaro empoderou os racistas no país: “Brasil não é lugar seguro para imigrantes africanos”

Por Gil Luiz Mendes, na Ponte

Um africano que foi obrigado a deixar sua terra natal e que foi açoitado até a morte por se recusar a trabalhar de graça. Isso aconteceu diversas vezes na história do Brasil desde que o país era apenas uma colônia extrativista do reino de Portugal. Os resquícios dessa cultura escravagista se apresentaram de forma cruel quando as imagens do congolês Moïse Mugenyi Kabagambe sendo linchado por homens na praia da Barra da Tijuca, zona oeste do Rio de Janeiro, no dia 24 de janeiro, ganharam o noticiário.

Na mesma cidade, alguns dias depois, Durval Teófilo Filho chegava em casa depois de um dia de trabalho. Foi confundido com um ladrão pelo vizinho, o sargento da Marinha Aurélio Alves Bezerra, que atirou três vezes e matou Durval.

Moïse e Durval eram homens negros e, além da cidade onde foram mortos, suas mortes têm em comum o racismo estrutural presente no cotidiano brasileiro há séculos. Em entrevista à Ponte, Dennis de Oliveira, professor livre-docente em jornalismo, informação e sociedade da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP), comentou os crimes ocorridos recentemente no Rio de Janeiro. Ele afirma que o Brasil não é um lugar seguro para imigrantes africanos e que não pode se desvincular o capitalismo da questão racial no episódio da Barra da Tijuca, assim como pessoas negras permanecem não sendo aceitas em espaços que a sociedade julga que apenas podem ser ocupados por brancos.

Ponte – Qual a relação do assassinato do Moïse Mugenyi Kabagambe com a cultura escravagista brasileira?

Dennis de Oliveira – É só pegar os três rapazes que estão presos por esse crime. Eles também estão em uma situação precarizada. Então lembra um pouco a ideia do capitão do mato. É uma situação muito complicada que mostra uma degradação tremenda da relação de trabalho que leva a isso. O que chama a atenção é que esse tipo de trabalho precarizado, que é o bico que você ganha por proporção, por diária. Uma das donas de quiosque falou que eles até chegam a dormir na praia pra não poder gastar dinheiro porque moram longe. Não existe mais o colega trabalhador na mesma situação, agora todos são concorrentes. Você tem esses critérios raciais mais violentos e seletivos, numa disputa acirrada por esse trabalho precarizado. O critério racial acaba aparecendo e é uma reconstrução das relações raciais da época do escravagismo nesses tempos chamados de modernos. 

Ponte – Então podemos afirmar que além da questão racial, há um aspecto forte do capitalismo neste crime?

Dennis de Oliveira – Exatamente, catalisou isso na questão do trabalho. A reforma trabalhista aumentou a precarização, e informalidade, tudo isso leva a essa situação. Então você tem ali, além do racismo e da xenofobia, trabalhadores precarizados. Tudo em prol de quê? Do dono de quiosques que são concessionários da prefeitura e que são serviçais dessa elite que vai pra Barra da Tijuca. Essa relação de uma sucessão de subalternidade está estabelecida ali e é terrível isso.  A gente está vendo a barbárie sendo feita para uma elite que se beneficia do racismo estrutural e dessa reconstrução do capitalismo.

Ponte – Como o senhor analisa essa vinda de africanos para o Brasil, que no passado foram sequestrados para serem escravizados, e agora são forçados a sair dos seus locais de origem por conta da guerra?

Dennis de Oliveira – Uma coisa muito importante nessa questão da política de imigração no Brasil é que ela é extremamente racializada. É só pegar, por exemplo, a política de Estado de incentivo à imigração do final do século XIX para o início do século XX. Ela foi toda baseada no branqueamento da população. Essa ideologia do branqueamento pela imigração permanece ainda. Basta você ver por exemplo que boa parte desses trabalhadores negros precarizados da Barra da Tijuca servem turistas brancos. Sejam turistas, sejam imigrantes, pessoas brancas são bem tratadas no Brasil. Pessoas vindas do Haiti não recebem esse mesmo tratamento, por exemplo.

Ponte – Outro caso que também chamou muito atenção essa semana foi o assassinato de um homem negro, também no Rio de Janeiro, por um vizinho que o confundiu com um ladrão. Há como fazer uma relação entre os dois episódios?

Dennis de Oliveira – Nesse caso do homem que foi morto pelo vizinho a relação se dá a partir do momento existe um falso conceito que existe um lugar determinado para esse homem negro que foi assassinado. Ele foi morto por um militar, na compreensão de muitas pessoas alguém das Forças Armadas não pode morar no mesmo lugar que um homem negro. Este homem negro estava fora do seu lugar. Então qual é a lógica nesse caso? É o ápice da violência. Eliminar essa pessoa que não pode conviver no mesmo espaço.

Sempre houve esse estranhamento de pessoas negras em determinados locais como universidade pública. Os estudantes sofrem agressões de outra natureza, como a violência psicológica, simplesmente porque estariam fora do seu lugar. Para a sociedade racista, o lugar do negro deve ser só a prefiferia e a exclusão. Mas estamos furando a bolha, né? Com esse governo fascista em que nós vivemos, vai se incentivando esse tipo de discurso. Fazendo um link com o caso do Moïse, as pessoas creem que ele deveria estar na África e não em um bairro nobre do Rio de Janeiro.

Ponte – Há uma cultura do linchamento no Brasil que nem sempre ganha o destaque que ganhou esse caso do Moïse Mugenyi Kabagambe. Existiu uma comoção maior pelo fato dele ser estrangeiro?

Dennis de Oliveira – Houve comoção por conta das imagens. Provavelmente se não fosse a filmagem da câmera eu não sei se a gente teria essa repercussão toda. Agora é interessante que isso que aconteceu no caso do Moïse também aconteceu no caso do Carrefour. Foi filmado e o interessante é que os donos do estabelecimento são poupados das punições. Nesses casos de linchamento há dois grupos divididos. Os que praticam o linchamento e aqueles que assistem passivos. O quiosque continuou funcionando normalmente, servindo bebida. É impressionante como se naturaliza não só o ato de linchamento, mas também aqueles que estão em volta e que naturalizam aquela situação. 

Ponte – Como o discurso violento de justiçamento do presidente da República influencia nessas ações bárbaras que a gente tem visto? 

Dennis de Oliveira – Não é que o racista não existia, ele apenas saiu do armário. Coube a Bolsonaro jogar a luz para empoderar essa gente toda. Diante de um governo como esse, as pessoas se sentem muito à vontade para praticar esses atos. Antes eles ainda pensavam em tomar cuidado para fazer essas coisas, hoje agem tranquilamente, filmando, ele é um problema. Um dos acusados pela morte de Moïse inclusive afirmou que não sentiu nenhum arrependimento de ter feito aquilo. Bolsonaro empoderou essa turma toda. 

Ponte – O senhor acredita que depois desse caso do Moïse haverá algum tipo de reflexão e atitude em relação ao racismo estrutural no país?

Dennis de Oliveira – Eu sou muito otimista por conta dessa situação que nós vivemos na política. O que é interessante é dar visibilidade para alguns movimentos sociais que vão se mobilizar, vão pressionar. A repercussão acaba pressionando os governantes. Mas o meu temor é que vire apenas mais um caso. Prendem os assassinos, mas não se discute a causa disso. Qual a raiz para que esse tipo de coisa continue acontecendo? Você olha para o governo e ele continua fazendo esse discurso de fascista. Você continua ainda tendo uma justiça extremamente lenta para tratar desses casos, uma polícia que não investiga esses crimes a contento. As violências que não são filmadas não serão repercutidas e vão continuar acontecendo. Esse é o grande problema. 

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Ponte – Qual a imagem que os africanos que pretendem imigrar para o Brasil têm neste momento?

Dennis de Oliveira – Essa situação está vinculada à política internacional que o Brasil desenvolve. Durante os governos do ciclo progressista, um dos lados positivos que houve é que a política externa se voltou mais, ou pelo menos tentou, a melhorar um pouco as relações com a África e com a América Latina. Isso acabou criando uma situação, por exemplo, de ter mais intercâmbios de africanos no Brasil e brasileiros na África. Na atual situação houve uma uma reinversão. A hostilidade desse governo com a América Latina e com a África, associada a submissão total aos Estados Unidos, acaba favorecendo esse tipo de comportamento. Infelizmente o Brasil não é um lugar seguro para esses imigrantes no momento. Eu entendo que a situação que os leva a vir para cá é bastante complicada, mas o Brasil não é um lugar seguro atualmente. 

O imigrante congolês Moïse Mugenyi Kabagambe, espancado até a morte no Rio de Janeiro no dia 24 de janeiro. Foto: Reprodução Facebook

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