Fazendeiros com terras embargadas pelo Ibama obtiveram empréstimos com dinheiro público intermediados pelo banco John Deere, que pertence à maior montadora de máquinas agrícolas do mundo
Por Andressa Santa Cruz, Naira Hofmeister e Pedro Papini, em Repórter Brasil
Fazendeiros flagrados pelo Ibama desmatando a Amazônia conseguiram empréstimos com dinheiro público a juros subsidiados para comprar tratores e outras máquinas agrícolas, apesar de seu histórico de reiteradas infrações ambientais. Os empréstimos foram concedidos pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e operados pelo banco John Deere, que é o braço financeiro da fabricante de máquinas que o controla – e que vendeu os equipamentos.
Ao todo, BNDES e John Deere financiaram R$ 28,6 milhões em maquinário para cinco produtores com embargos em seu nome emitidos pelo Ibama por desmatamento. Uma resolução do Banco Central do Brasil veda a concessão de crédito rural para propriedades na Amazônia sobre as quais recaem embargos, mas não impõe restrições para que os donos dessas áreas obtenham empréstimos para outras fazendas. Porém, entre os casos levantados pela reportagem, há empréstimos destinados a locais onde o produtor possui apenas uma propriedade – e embargada.
O mapeamento feito pela Repórter Brasil, com base na plataforma de dados Florestas e Finanças, mostra ainda financiamentos para produtores que deram um calote no Ibama. Ao todo, 11 fazendeiros que compraram máquinas John Deere acumulam um total de R$ 31,4 milhões em multas ambientais nunca pagas — o montante total dos empréstimos do BNDES, R$ 39,7 milhões, daria para quitar as dívidas com sobra.
“É dinheiro dos contribuintes para o agronegócio que está desmatando. Além dos juros, que são muito melhores do que qualquer outro financiamento, os produtores podem obter anistia no pagamento [dessa dívida] em casos como ataques de pragas, secas ou qualquer problema que prejudique a safra. É um risco que deveria ser assumido pelos plantadores de soja, mas acaba ficando para os cofres públicos”, critica Philip Fearnside, cientista do Instituto Nacional de Pesquisa da Amazônia e vencedor do Nobel da Paz com a equipe do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas das Nações Unidas (IPCC) em 2007.
Os financiamentos investigados nesta reportagem foram feitos na modalidade indireta automática, em que o BNDES libera o crédito, mas quem realiza o contrato é outra instituição financeira. É uma forma de o banco público reduzir sua exposição a riscos e falta de pagamentos.
Em resposta aos questionamentos da reportagem, o BNDES informou que exige dos tomadores de crédito a “assinatura de declarações em que se ateste a inexistência de infrações de natureza ambiental previamente à celebração de qualquer contrato”. Também informou que a responsabilidade de verificar “o atendimento de tais exigências” é do banco parceiro, no caso da John Deere. Apesar disso, em sua página na internet, o banco admite que a aprovação do crédito é sua responsabilidade: “Passo 4: O BNDES avalia a solicitação, observa se está de acordo com as normas e, em caso positivo, autoriza o financiamento”.
A John Deere, por sua vez, frisou que “cumpre rigorosamente” as normas para concessão de crédito, “com avaliação criteriosa da área que será beneficiada com determinado produto”. As manifestações completas podem ser lidas neste link.
Falhas no sistema e falta de transparência
A Repórter Brasil tentou checar a legalidade dos empréstimos a fazendeiros desmatadores concedidos pelo BNDES e operados pelo banco John Deere, mas não conseguiu. O banco público se recusa a fornecer o número do Cadastro Ambiental Rural utilizado para solicitação de financiamento e, sem ele, não é possível confirmar se a resolução do Banco Central foi ou não respeitada. “Em relação aos Cadastros Rurais (CARs), informamos que estamos impedidos de fornecê-los”, informou, via LAI, o banco.
Apesar da negativa, chamam a atenção três casos em que os financiamentos foram enviados para os mesmos municípios da Amazônia nos quais os beneficiados possuem embargos — um indicativo de que a norma pode ter sido ignorada. A Repórter Brasil já mostrou como o BNDES descumpre uma regra interna e empresta a frigoríficos flagrados comprando gado criado em áreas desmatadas ou em fazendas que usam mão de obra escrava.
A produtora de soja Alexandra Perinoto possui apenas um CAR ativo no município de Cláudia, no Mato Grosso. Entre 2016 e 2019, ela recebeu R$ 4,5 milhões do BNDES para comprar tratores e outros equipamentos nessa localidade. Porém, em 2021, seu imóvel foi embargado depois que o Ibama constatou o desmatamento de “1.188,618 hectares de floresta nativa no Bioma Amazônico, em Área de Reserva Legal, sem a devida autorização do órgão ambiental competente”.
De acordo com a norma do Banco Central, “em caso de embargo posteriormente à contratação da operação, será suspensa a liberação de parcelas até a regularização ambiental do imóvel”. Apesar disso, os empréstimos em nome de Perinoto constam como “ativos” no portal de Transparência do BNDES.
Em nota, o banco esclareceu que nada “impede que as liberações sejam suspensas a partir da comprovação de uma irregularidade” e que “iniciará interações com a instituição financeira citada a fim de averiguar os fatos relatados”.
Perinoto possui outros dois embargos em Marcelândia, para onde o BNDES também enviou dinheiro público para a compra de máquinas John Deere. Entre os produtores investigados nesta reportagem, ela possui o maior volume de multas ambientais. São R$ 18 milhões, quase o dobro dos empréstimos que recebeu, R$ 11 milhões. Ela nunca pagou suas dívidas por destruir a natureza.
Uma investigação anterior da Repórter Brasil já havia demonstrado como Perinoto, apesar da origem irregular de sua produção, forneceu soja para empresas signatárias da Moratória da Soja — um pacto setorial que bloqueia a comercialização de grãos produzidos em áreas desmatadas da Amazônia depois de 2008. Entre os clientes que compraram a soja de Perinoto estão fornecedores de algumas das maiores traders mundiais do grão, como Cargill, Bunge e Cofco. Perinoto também responde a um processo na Justiça por desmatamento em Sinop, apurado no âmbito da operação Amazônia Protege, do Ministério Público Federal.
Apesar das tentativas, não foi possível fazer contato com a produtora para que ela comentasse as denúncias. Em maio de 2021, ela se negou a responder perguntas. “Não tenho nada a declarar. O que você publicar vai ter que provar”, disse, na ocasião.
“O Ibama errou”
Outro produtor que possui apenas um CAR em um município em que tomou empréstimo, mas também é titular de um embargo, é Milton Casari. Entre 2018 e 2020, ele tomou empréstimos de quase R$ 1 milhão para comprar máquinas e equipamentos John Deere em Paranaíta, Mato Grosso — no mesmo local em que, desde 2012, possui um embargo do Ibama.
As coordenadas geográficas do embargo não recaem sobre sua terra, embora a autuação esteja em seu nome. A área vedada para produção está localizada a cerca de 1,5 quilômetro de suas terras, conforme o limite declarado pelo produtor ao Sistema Nacional do Cadastro Ambiental Rural (Sicar).
Segundo os esclarecimentos prestados à Repórter Brasil pelo produtor (cuja íntegra pode ser lida aqui), ele arrendava a área de um vizinho seu para criação de gado, mas a derrubada ilegal da mata não foi sua responsabilidade. Segundo sua defesa no processo administrativo que tenta reverter o embargo, “o agente ambiental concluiu que ocorreu a destruição baseado em denúncias falsas” de pessoas interessadas na terra. Casari também reclama que a descrição feita pelo órgão ambiental da infração é “imprecisa”. “Eu não tenho área embargada. Tem uma decisão do juiz dizendo que o Ibama está errado”, argumenta.
Casari também recebeu outros R$ 3,8 milhões em financiamentos em Alta Floresta, totalizando quase R$ 5 milhões em empréstimos. Embora estejam em municípios diferentes, suas terras são vizinhas, porque estão na fronteira entre Alta Floresta e Paranaíta — logo, não haveria dificuldade de aplicar as máquinas em lavouras de um lado ou de outro e, inclusive, alcançar a área embargada.
Cerrado sem proteção
A regra do BC que impede financiamentos em terras embargadas na Amazônia evitou a devastação de 2.700 km² entre 2008 e 2011, segundo estimativa da Climate Policy Initiative. “Essa norma é uma das únicas coisas que trouxe consequências para o desmatamento ilegal, porque a multa raramente é paga”, observa Fearnside.
“Cabe aos bancos o monitoramento e a fiscalização das operações de crédito rural, observando as leis e eventuais regulamentações infralegais aplicáveis ao uso do solo e ao exercício de atividade econômica”, informa o Banco Central, em nota, cuja íntegra pode ser lida aqui.
Porém, os empréstimos de quase R$ 7 milhões concedidos ao segundo maior devedor de multas ambientais entre os investigados nesta reportagem não se enquadram na norma. Adão Ferreira Sobrinho possui seis embargos em seu nome (em imóveis em cidades diferentes para as quais obteve financiamentos) e é o responsável por colocar abaixo 2 mil hectares de vegetação nativa no Cerrado, incluindo um naco de 192 hectares da Unidade de Conservação Parque das Nascentes do Rio Parnaíba, na divisa dos quatro estados que formam o Matopiba (Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia), a nova fronteira agrícola brasileira. Para se ter uma ideia da área, o desmatamento apontado pelo Ibama é equivalente a todo o território da Ilha do Mel, no Paraná.
O banco John Deere afirmou que veta financiamentos à áreas embargadas em todos os biomas brasileiros.
Mesmo após ser condenado a dois anos de cadeia pelos maus feitos ambientais (pena substituída pelo pagamento de multa e prestação de serviços comunitários), em 2020, o infrator obteve novos empréstimos do BNDES — depois dos quais reincidiu no crime e foi multado outras quatro vezes, somando nova dívida de R$ 1,7 milhões por derrubar mais 457 hectares de floresta nativa no bioma Cerrado.
Sobrinho não reconhece a condenação: “Existem as autuações realizadas pelo Ibama, mas não procedem e, por isso, apresentei defesa administrativa e via judicial”. Ele também assinala “que o imóvel beneficiado com o financiamento está distante mais de mil km daqueles autuados”. A íntegra da resposta pode ser lida aqui.
Mercado brasileiro é decisivo para John Deere
A política de crédito agrário brasileira e a importância do agronegócio no Brasil (em 2020, o setor respondeu por 26,6% do PIB) transformaram o país no segundo mercado mais importante para a John Deere, que é líder mundial em equipamentos agrícolas.
A centenária empresa americana tem entre seus investidores o fundador da Microsoft Bill Gates, que detém 9,3% das ações da companhia. A gestora de investimentos BlackRock, que em 2020 anunciou seu afastamento de investimentos danosos ao meio ambiente, também detém participação na fabricante de máquinas.
A maioria dos contratos brasileiros para compra de máquinas agrícolas no Brasil (cerca de 65%) é subsidiada pelo BNDES — ou seja, são custeados com verba pública. O banco John Deere foi o terceiro que mais operou financiamentos na última década no Plano Safra, conforme ranking do BNDES, principalmente para financiar programas de compra e renovação de maquinário, como o Moderfrota.
As máquinas financiadas pelo contribuinte brasileiro para desmatadores não são triviais. Elas possuem tecnologia de ponta, conforme o cientista e sociólogo Arilson Favareto, coordenador do Cebrap-Sustentabilidade e pesquisador da Cátedra J. Castro/USP.
A John Deere se orgulha de ser referência em tecnologia no campo. “Hoje sabemos onde uma máquina está com a precisão de 2 centímetros”, confirmou o presidente da marca no Brasil, Paulo Herrmann, em entrevista à revista Forbes. Mas essa capacidade de rastreamento não impediu que a empresa vendesse seus equipamentos a fazendeiros com histórico de crimes ambientais.
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Brecha em norma do BC permitiu compra de tratores John Deere por infratores ambientais (Foto: Victor Moriyama/Greenpeace)