Reportagem do Joio flagra loteamento ilegal em região-chave para o agronegócio. Casas de lazer são anunciadas publicamente no Facebook, com piscina e churrasqueira. Assentados acusam órgãos públicos de abandono no governo Bolsonaro
Por João Peres e Tatiana Merlino, de Cláudia (MT) / O Joio e o Trigo
Cai uma chuva fina enquanto nosso carro avança por entre as ruas de terra do Assentamento 12 De Outubro, no município de Cláudia (MT). A lama e as poças de água são parte do desafio de entrar e percorrer a área de reserva, depois de passarmos uma porteira e avistarmos uma placa que indica “Área de preservação permanente”. Logo em seguida, há uma faixa com os dizeres “Máquina trabalhando na estrada” e “O meio ambiente agradece”.
Parece ironia, mas não é: logo em seguida, o cenário encontrado é de grilagem e desmatamento. Foi o que testemunhamos. Estamos na Amazônia Legal e isso fica visível pela opulenta vegetação. Há árvores altas, partes de mata fechada e o som de pássaros e insetos. Mas logo encontramos troncos queimados, árvores de itaúba, peroba e jatobá derrubadas, e vemos restos recentes de fogo.
Também estamos numa das regiões-chave do agronegócio brasileiro. Sinop, a capital informal do Norte de Mato Grosso, e Sorriso, a capital oficial do agronegócio, estão a poucos quilômetros de distância. De dentro do assentamento é possível avistar a BR 363, que escoa soja e milho durante todo o ano em direção ao Pará e aos portos do Sul-Sudeste.
O 12 De Outubro é um Projeto de Desenvolvimento Sustentável, ou PDS, que, por definição do Incra, é destinado ao desenvolvimento de atividades ambientalmente diferenciadas, dirigido para populações tradicionais e que prevê que 80% da área seja de reserva legal.
E é nessa área de reserva que entramos e presenciamos um processo intenso de grilagem. A chuva se torna temporal, o que interrompe o trabalho dos grileiros, ao mesmo tempo em que dificulta atravessar as estradas alagadas. Entre poças e buracos, percorremos doze quilômetros por dentro do grilo. Há áreas loteadas, numeradas e nomeadas e com placas, como o Sítio Três Irmãos, no lote 23; Sítio Araras, com uma placa do pássaro; Chácara 28, lote 26, onde em um poste está escrito Sítio do Nego, Sítio Cantinho Feliz, Sítio Recanto dos Pássaros – lote 27. Há também áreas abertas, picadas, e alguns barracões.
Na entrada da área da reserva, faixa avisa que há máquinas na estrada. Foto: João Peres
Motosserra e desmatamento
Quando a chuva para, descemos do carro e começamos a andar pelas trilhas. Encontramos um barracão de madeira, com sinais de uso recente, possivelmente como abrigo para os homens que desmatam a área. Avançamos mais um pouco, e escutamos alguns barulhos no meio da mata. Não demora para que as motosserras sejam ligadas novamente.
Também conseguimos entrar em um dos lotes e encontramos uma casa em fase de construção, quase pronta, à beira da represa. A casa já tem piscina e churrasqueira às margens da represa formada pelas hidrelétricas do rio Teles Pires. Por toda a região, a especulação avançou junto com as usinas, construídas em especial durante o governo Dilma Rousseff (2011-16).
A reportagem encontrou barracões dentro da área de reserva do assentamento. Foto: João Peres
A situação é tensa, porque a área que deveria estar sendo preservada e fiscalizada pelos órgãos de proteção do Estado, como Incra e Ibama, está em processo de invasão, dividida, loteada, sendo desmatada à luz do dia.
Os assentados do 12 De Outubro com quem conversamos contaram que não entram nesta área de grilagem por receio de serem recebidos a tiros. Os relatos também são de que a grilagem aumentou nos últimos anos, desde o início do governo de Jair Bolsonaro e o processo de desmonte dos órgãos de proteção.
“No começo, a gente enfrentava os grileiros. A gente optava por fazer esse enfrentamento, mas a gente começou a correr risco de vida. E a gente recuou porque quem deveria cuidar das nossas reservas, as autoridades que têm papel e dever legal de acompanhar isso, eles não faziam. Transferem essa responsabilidade para a gente”, afirma um assentado do 12 de Outubro.
Marcada pelos latifúndios divididos durante a ditadura, essa região do Mato Grosso só foi receber ocupações de sem-terra no começo do século. Em 2003, no início do governo Lula, o MST mobilizou famílias na periferia das cidades do entorno. Mas a criação oficial do assentamento só veio em 2009, quando as 140 famílias assentadas decidiram criar uma reserva de uso coletivo para os 6.300 hectares, em vez de reservas individuais.
“É importante frisar que nós, as lideranças do movimento, propusemos, e foi muito difícil convencer a comunidade de deixar a reserva para uso coletivo”, afirma outro assentado. “A gente reduziu o tamanho das nossas propriedades para deixar a reserva legal. E hoje, por exemplo, ela não existe, ela foi grilada. E isso é uma coisa que angustia muito a gente. E também que as autoridades responsáveis não ajudam a gente a cuidar da nossa reserva.”
Algumas semanas depois, enquanto olhamos as imagens aéreas feitas para o Joio pelo fotógrafo Fellipe Abreu, o contraste entre grilagem e mata fica ainda mais evidente. A área grilada parece uma parte de couro cabeludo prestes a ficar calva: as árvores vão se tornando ralas, fracas, solitárias. Abaixo, as trilhas abertas na mata emulam uma teia de aranha que avança em direção ao rio. Não é difícil ver onde estão as clareiras.
Vende-se terra grilada pelo Facebook
A área de preservação permanente que está sendo dividida em chácaras não é o único espaço do assentamento em processo de grilagem. Mas é o que mais chama a atenção pela destinação: enquanto algumas famílias pobres ocuparam algumas áreas para a produção de alimentos, outras, ilegalmente, decidiram criar chácaras para lazer. Por isso, resolvemos ir até lá, mesmo após o alerta de que poderia ser perigoso. No caminho, meio perdidos, paramos em um pequeno sítio onde um senhor, depois de uma conversa muito breve, nos ofereceu um lote de 1.500 metros por R$ 60 mil. Um lote, isso mesmo, dentro do assentamento da reforma agrária.
A oferta de terras dentro do assentamento também ocorre no mundo virtual. Em grupos de compra do Facebook, encontramos vários anúncios de venda de chácaras em pleno assentamento. “Sítio na região do alagado do PDS 12 de Outubro, já tem um pequeno clarão aberto, com nascente de água, projeto de energia para ser ligado em 2022, já tem internet na região. Tamanho da área: 20.48 ha. A 65 Km de Sinop sendo 15 Km de estrada não asfaltada”, diz um dos anúncios.
O anunciante é Cristiano Grela Massarolo, que trabalha na imobiliária Keller Imóveis, localizada em Sinop (MT).
Entramos em contato com o vendedor mostrando interesse em comprar o sítio. Ele informa que a área segue disponível, e que “a pedida do proprietário é R$ 400 mil”. Questionado se o sítio está situado em um assentamento, ele responde que sim. “Mas que já é um lugar bem consolidado há mais de dez anos.” Também perguntamos a ele se, por ser uma área de reforma agrária, não há risco de tensão com os assentados. “Não. Todos já estão com suas áreas demarcadas”, responde.
Ainda foi questionado sobre como ficaria a documentação (já que essa é uma área de reserva de propriedade da União). “Conseguimos fazer a transferência. Então você terá o documento de posse”, disse o vendedor. “Eu tenho um rancho nessa mesma região, na beira do alagado, lá é muito lindo.” “Posso levantar mais algumas áreas nessa região”, disse. “Temos um condomínio lá nessa região que vai ficar muito legal.”
Também conversamos com Leonardo Lopes, mais um que anunciou uma venda de sítio via Facebok. “Vende-se chácara de 2 mil metros quadrados no 12 de Outubro. Fica no terceiro alagado da usina. Chácara quitada. Aceito proposta, pego carro no negócio e moto”. Ele informou que o sítio segue à venda, pelo valor de R$ 45 mil. Questionado se o sítio não está em uma área de reforma agrária, ele disse: “Todas as chácaras têm contrato de compra e venda com o dono da área.”
Apesar do aviso informando que é uma área de preservação permanente, a floresta está sendo desmatada. Foto: Fellipe Abreu / O Joio e o Trigo
Muito obrigada!
Feito, Maria José. E postagem refeita, diretamente de O Joia e o Trigo. Obrigada.
Boa tarde! Por favor, poderia omitir o nome dos entrevistados, por gentileza? A equipe do Joio e o Trigo já retirou, para a segurança dos entrevistados. Obrigada!