Bolsonaro devasta — e ainda não está morto

Com o “poder da caneta” do presidente, o clima de já ganhou em torno de Lula é arriscado. Mais que declarações genéricas, o petista precisará mostrar que vai reverter as privatizações e os desmontes. E a mobilização popular será essencial

por Paulo Kliass, em Outras Palavras

A cada nova divulgação de pesquisa de opinião a respeito das tendências para as eleições de outubro próximo, observam-se movimentos diversos por parte da maioria dos atores e forças políticas em nosso país. O fato inequívoco é a consolidação da candidatura de Lula em primeiro lugar, seguido de Bolsonaro bastante atrás. A possibilidade de viabilização de uma terceira via parece não apresentar mais fôlego eleitoral nem capacidade de articulação partidária para seguir o jogo até o fim.

Mas o que mais interessa é o risco de um comportamento do tão famoso quanto perigoso espírito do “já ganhou”, que parece estar tomando conta da direção da campanha do ex-presidente. É sempre importante reter algumas máximas dos mais experientes na dinâmica de disputas eleitorais. Uma delas diz que “pesquisa é fotografia e processo eleitoral é filme”. Assim, por mais que uma série longa de fotogramas possa constituir uma ação em movimento, o fato é que não se pode considerar esse difícil jogo como estando já definido por antecipação. Bolsonaro é ainda um animal vivo, com muitas ferramentas a seu dispor para delas fazer uso até o mês de outubro.

Vamos lembrar que a condição de Presidente da República lhe oferece a possibilidade de lançar mão do “poder da caneta” para distribuir favores, cargos e verbas em sua busca pela ampliação de sua aceitação no universo político-eleitoral. A subestimação da capacidade de Bolsonaro eventualmente conseguir recuperar pontos nas próximas sondagens pode provocar surpresas desagradáveis na reta de chegada do pleito, marcado para daqui alguns poucos meses.

Lula para mudar

A única preocupação que parece dominar a agenda do comitê que centraliza a campanha de Lula reside na ampliação de contatos em direção ao centro e à direita do espectro político e partidário. Parece óbvio que articular um candidato a vice-presidente com o perfil de Geraldo Alckmin é uma ação estratégica necessária que deve colaborar para facilitar o trânsito do candidato em setores da elite que não aceitariam tão facilmente votar em Lula desta vez. No entanto, a tática de jogar parado em uma campanha que promete ser bastante tensa – e até mesmo bem violenta – oferece ao adversário a possibilidade de também definir as condições em que se dará a disputa.

Bolsonaro promoveu e ainda está promovendo uma terrível destruição do Estado brasileiro. Ao longo de seus mais de três anos de (des)governo, o ex-capitão defensor da tortura e da pena de morte também avançou em um impressionante processo de desmonte das políticas públicas. Apesar de Paulo Guedes não ter logrado êxito em sua promessa de entregar um Estado-zero no final de 2022, o fato concreto é que a privatização de empresas em setores estratégicos na área de energia é bastante complicadora para a capacidade de recuperação do necessário protagonismo do setor público em áreas tão sensíveis da economia e da sociedade.

Estão aí os casos da Petrobrás e da Eletrobrás para demonstrar que a definição de tarifas de bens e serviços essenciais não pode ser objeto apenas das chamadas “leis de mercado”. Esta é apenas uma das inúmeras facetas da herança maldita a ser deixada por Bolsonaro para um futuro governo que o derrote nas eleições de outubro. Esta bomba de efeito imediato e futuro deve ser desativada o mais rápido possível e a campanha de Lula não pode se omitir a esse respeito. Não basta apenas fazer declarações genéricas a respeito de necessidade de mudanças nas políticas de preços de derivados de petróleo – outro crime contra a economia nacional que vem sendo cometido de forma sistemática, desde a consumação do golpeachment contra Dilma Rousseff e a chegada de Michel Temer ao Palácio do Planalto.

Aproximar a campanha da população

É fundamental que o novo governo deixe claro à população a necessidade de recuperar a soberania nacional em termos energéticos. Isso significa apontar de forma cristalina a necessidade de reestatização das empresas do setor que foram vendidas ao capital privado, a exemplo da BR Distribuidora e de subsidiárias do grupo Eletrobrás. Além disso, é preciso que seja alterada a orientação atual de que o Brasil continue exportando óleo bruto e importando gasolina e óleo diesel, por exemplo. Com isso, pode-se retomar a condição de autossuficiência na cadeia do petróleo. A exploração das novas reservas permitida pelas descobertas do Pré-Sal deve ser articulada com a retomada das condições de refino nas unidades da Petrobrás espalhadas por todo o território nacional.

O governo Bolsonaro estabeleceu uma lista de oito refinarias da Petrobrás a serem privatizadas. Deste total, três já tiverem seus processos concluídos e foram repassadas ao capital privado. Trata-se das unidades de refino na Bahia (RLAM), no Amazonas (REMAN) e no Paraná (unidade de industrialização do xisto – SIX). A manutenção da capacidade de refino em escala nacional nas mãos do Estado é condição fundamental para a reversão da atual crise na área energética. Atrelar os preços de gasolina, óleo diesel e gás de cozinha praticados nas refinarias às oscilações verificadas no mercado internacional das “commodities” é abrir mão de soberania nacional e praticar uma dependência absolutamente desnecessária em relação à especulação existente nas transações globais do petróleo.

A mudança praticada na institucionalização da independência do Banco Central (BC) também se apresenta como outra explosiva herança maldita do bolsonarismo a ser deixada para um governo que o suceda. A partir da aprovação da Lei Complementar nº 179, de 24 de fevereiro de 2021, as novas regras de funcionamento da autoridade monetária estabelecem a existência de um mandato de quatro anos para os diretores do BC. Assim, o atual presidente da instituição nomeado por Bolsonaro vai ficar no cargo até a metade do próximo mandato do Presidente da República. Além da questão ideológica envolvida na matéria, relacionada à impossibilidade de o chefe do Estado atuar diretamente em um segmento essencial do comando da política econômica, o fato concreto é que a permanência de alguém com o perfil ultramonetarista e conservador, como é o caso de Roberto Campos Neto, à frente do Banco Central pode operar como um sabotador de qualquer expectativa de redirecionamento do projeto governamental em direção ao rumo desenvolvimentista.

Superar a herança maldita: privatização e armamento

Outro aspecto fundamental refere-se ao legado a ser deixado pela passagem de Bolsonaro pelo poder na esfera das milícias. Sua estratégia de estimular o armamento generalizado da população e seus constantes apelos à intervenção política das forças ligadas ao submundo do crime e das práticas paramilitares pode operar como contraponto a uma desejável transição democrática do poder na esfera federal. Depois de editar vários decretos facilitando o porte de armas pela população, observou-se um crescimento de mais de 70% no número de armas oficialmente registradas, sem contarmos a expansão igualmente expressiva do armamento ilegal e clandestino. Atualmente o total de revólveres, pistolas, espingardas e fuzis devidamente legalizados junto aos órgãos responsáveis já supera a assustadora marca de 1,5 milhão. Os elogios públicos de seu entorno político mais próximo a ações claramente golpistas e violentas, como foi a tentativa do putsch do Capitólio pela tropa trumpista nos Estados Unidos, oferece o risco envolvendo as próximas eleições aqui no Brasil.

Ora, frente a um quadro complexo como esse, parece evidente que não basta o sentimento equivocado da campanha de Lula de que as eleições já estão ganhas por antecipação. Além de derrotar Bolsonaro nas urnas, é necessário assegurar a posse do vencedor em primeiro de janeiro do ano que vem. Por outro lado, é igualmente fundamental contar com apoio no interior da nova composição do Congresso Nacional para conseguir os votos necessários para que sejam desativadas as bombas da herança maldita que dependem de alteração de regras legais e constitucionais.

Para tanto, a campanha de Lula precisa contar com apoio popular maciço. O Brasil necessita voltar a mostrar a sua cara, com a população se manifestando e expressando nas ruas o seu desejo de mudança e a direção das alterações que se fazem necessárias. A criação de comitês de apoio à candidatura do ex-presidente por todo o território nacional permitirá a popularização do movimento e a aproximação do povo ao espírito da campanha mudancista. Isso permitirá mobilizar e debater as perspectivas de um novo governo nos bairros, nos locais de trabalho, nas escolas, nas igrejas, nas universidades, nos campos, enfim por toda a parte. Por outro lado, a apresentação de candidatos experientes no campo da esquerda e com força política para ocupar os cargos em disputa para a Câmara dos Deputados e para o Senado Federal são passos essenciais para que a herança maldita seja desfeita e que o Brasil consiga recuperar o caminho do desenvolvimento com redução das desigualdades de toda sorte.

Os desafios são muitos e as dificuldades a serem superadas também. Apenas manter o clima da campanha na chamada “articulação por cima” não será suficiente para ganhar nem para governar na direção desejada. A introdução do ingrediente da participação popular e a aproximação do espírito mudancista com a capacidade de mobilização do povo brasileiro deverão atuar como um contrapeso em direção à superação da herança maldita do bolsonarismo.

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