Após denúncia do Cimi e ação do MPF, normativa da Funai que facilita grilagem de terras indígenas é suspensa no Maranhão

Justiça Federal do Maranhão suspendeu os efeitos da Instrução Normativa 09 no estado. MPF já obteve 24 decisões contra a medida da Funai em 13 estados do país

Por Tiago Miotto, do Cimi

No dia 16 de fevereiro, a Justiça Federal do Maranhão decidiu suspender os efeitos da Instrução Normativa (IN) 09/2020 da Fundação Nacional do Índio (Funai) sobre as terras indígenas do estado. A normativa liberou a certificação de fazendas sobre terras indígenas não homologadas, incentivando a especulação imobiliária, as invasões e a grilagem nestes territórios.

A decisão liminar foi tomada no âmbito de uma ação civil pública movida pelo Ministério Público Federal (MPF) do Maranhão, parte de uma estratégia adotada pelo órgão nos diferentes estados do país para buscar a anulação da normativa e a suspensão de seus efeitos.

Esta é a 23ª decisão favorável obtida pelo MPF contra a IN 09, que já conseguiu suspender a medida da Funai em 13 estados, com sete sentenças e 16 liminares favoráveis. Até o momento, 29 ações foram movidas pelo órgão em seções e subseções judiciárias de 15 estados.

Publicada em abril de 2020 pela Funai, a IN 09 determina a exclusão das terras indígenas não homologadas do Sistema de Gestão Fundiária (Sigef), uma plataforma digital e georreferenciada do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) voltada a certificar propriedades rurais no país.

Essas certificações servem para indicar que os limites de uma propriedade – cujo “mapa” é inserido no Sigef pelo proprietário – não estão sobrepostos a outras propriedades ou a áreas públicas e protegidas, como unidades de conservação ou terras indígenas.

A IN 09 também determinou que as terras indígenas não homologadas fossem ignoradas nas Declarações de Reconhecimento de Limites, que podem ser solicitadas pelos proprietários rurais à própria Funai. Essas declarações servem para reconhecer que uma determinada fazenda não está sobreposta a nenhuma terra indígena.

“De posse dessas certidões negativas”, destaca o MPF na ação, “tal particular poderá comercializar, transferir, dar em garantia e até lotear áreas situadas em terras indígenas, conseguindo, destarte, realizar negócios jurídicos com terras públicas”.

Levantamento realizado pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi) em 2021 identificou que 83 propriedades haviam sido certificadas pelo Sigef sobre terras indígenas do Maranhão durante o governo Bolsonaro, com um total de 171,6 mil hectares sobrepostos diretamente a esses territórios. A maioria dessas propriedades foi certificada após a publicação da normativa da Funai, em 23 de abril de 2020.

Durante um levantamento in loco na região, no final de 2020, o Cimi Regional Maranhão identificou que muitas dessas fazendas estavam ampliando o desmatamento e abrindo novas áreas de plantio nos territórios, especialmente de soja. Além disso, a infraestrutura de estradas e pontes, com incentivo público e financiamento de empresas, estava se expandindo sobre as terras indígenas.

A investigação do Cimi identificou que as certificações estão sobrepostas às Terras Indígenas (TIs) Bacurizinho, do povo Guajajara, Kanela Memortumré, do povo de mesmo nome, e Porquinhos, do povo Apãnjekra Canela. Grande parte das propriedades foi certificada por empresas do agronegócio.

“Essa decisão é de extrema importância”, avalia Lucimar assessora jurídica do Cimi Regional Maranhão. “Mesmo antes da Instrução Normativa, já havia um processo significativo de invasões nas terras indígenas não homologadas, que estão em processo de reivindicação, de delimitação e em várias fases do processo demarcatório. A vulnerabilidade depois da IN 09 foi extremamente danosa para esses territórios em todo o Brasil, e aqui no Maranhão não foi diferente”.

Veja no mapa em camadas:

https://cimi.org.br/mapa/sigef-ma-final.html

Inconstitucionalidade e insegurança jurídica

Na sentença em que defere o pedido liminar do MPF do Maranhão, o juiz federal Clodomir Sebastião Reis determina que a Funai e o Incra sejam obrigados a inserir todas as terras indígenas do estado no Sigef e no Sistema Nacional de Cadastro Ambiental Rural (Sicar), também utilizado por grileiros para tentar legitimar a posse ilegal de propriedades em áreas protegidas.

A decisão abrange todas as terras indígenas com área já identificada e delimitada pela Funai, independentemente da fase em que se encontra seu processo de demarcação, e também as terras formalmente reivindicadas por grupos indígenas ou em estudo de identificação e delimitação. Além disso, o juiz determina que todas essas terras sejam levadas em consideração nas declarações de limites emitidas pelo órgão indigenista.

O magistrado recorda que a Constituição Federal “reconhece o direito dos povos indígenas aos seus territórios, devendo o Estado tão somente proceder aos atos de reconhecimento e demarcação desses territórios”.

Para o juiz, a normativa da Funai “fere o ordenamento jurídico e provoca insegurança jurídica”, na medida em que a exclusão de terras não definitivamente demarcadas do Sigef e do Sicar “tendem a passar a falsa percepção de que tais áreas possam ser vindicadas por particulares, o que é expressamente proibido pela Constituição Federal vigente, trazendo, ainda, o potencial de causar a ocorrência de [conflitos entre] índios e não índios”.

“Agora vamos monitorar, verificar como vão proceder no sistema. Vamos acompanhar se essas certificações vão ser canceladas e anuladas no sistema. Senão, vamos novamente atuar e enviar as informações ao MPF para que as providências sejam tomadas”

Denúncias recorrentes

O avanço das certificações e das invasões sobre as terras indígenas do estado, especialmente as TIs Bacurizinho, Kanela Memortumré e Porquinhos, vinha sendo denunciado pelas lideranças indígenas desde 2020, quando a normativa foi publicada pela Funai.

Em outubro daquele ano, o órgão federal ingressou com a ação civil pública pedindo a anulação da IN 09 no estado. A Defensoria Pública da União (DPU) também pediu habilitação no processo, com a intenção de contribuir com a demanda dos povos indígenas.

“O Cimi atuou como articulador entre as comunidades indígenas impactadas e os órgãos públicos, como o MPF e a DPU, que atuaram diretamente na ação”, relata Lucimar. “Além das manifestações enviadas para o MPF e juntadas pelo órgão nos autos do processo, houve também várias reuniões entre lideranças indígenas e a procuradoria federal, em que os procuradores receberam diretamente as denúncias feitas pelas lideranças”.

Apesar disso, ao contrário do que ocorreu em outros estados, a medida da Funai vigorou no Maranhão durante quase dois anos.

“Com a continuidade da IN 09 em vigor, os invasores continuaram nesse processo de consolidar as invasões, colocando cercas, devastando várias áreas desses territórios. Como essa decisão demorou para ser tomada aqui no Maranhão, houve uma consolidação extremamente grave dos danos a esses territórios”, avalia Lucimar.

“Agora vamos monitorar, verificar como vão proceder no sistema. Vamos acompanhar se essas certificações vão ser canceladas e anuladas no sistema. Senão, vamos novamente atuar e enviar as informações ao MPF para que as providências sejam tomadas”, explica a assessora jurídica.

A decisão também determina a realização de uma audiência de conciliação no dia 17 de maio. “Vamos tomar todos os cuidados para que as lideranças indígenas e o Cimi possam se fazer presentes”, adianta Lucimar.

Placa na entrada de uma fazenda na TI Porquinhos dos Canela Apãnjekra, a mais afetada pela certificação de propriedades privadas no Maranhão. Foto: Cimi Regional Maranhão

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