Pierrô e Colombina beijam-se encostados no carro que não é deles. Anoiteceu a sexta-feira e o carnaval mal começou. Olhares de inveja, prazer e reprovação acompanham os movimentos de mãos, bocas e pernas. Jonas também olha, mas seu olhar é de preocupação. Pode sobrar para ele.
Desempregado, vigia carros. Um primo lhe vendeu aquele naco de rua. Sem a compra, teria que disputar com outros flanelinhas. Chega cedo no seu espaço e fica lá na sua. Pedir e estar é o que precisa fazer. Na chegada do carro, pede. Recebe olhar de chateação. Pago na volta. Na volta, está lá para receber. Se não estiver numa e noutra, ganha só um olhar de chateação. Jonas fica. Até tarde.
No clube em frente, o baile já começou. Gente de fantasia chega saltitante. De fora, ouve-se as músicas de carnaval. As mesmas que Jonas ouviu no bloquinho até a polícia chegar. Pulou. Depois apanhou. Carnaval de rua está proibido. Em lugar fechado e pago, pode. Dinheiro pode tudo. Jonas gosta de carnaval, mas não gosta de apanhar. E não tem dinheiro para comprar seu carnaval sem pancada.
Dois fantasiados, lata de cerveja nas mãos, falam de uma guerra. Jonas também ouviu falar dela. Coisa lá longe. Num lugar que não sabe bem onde fica. Imagina que seja perto do Japão. Porque tudo que é muito longe é perto do Japão. Discutem sobre a culpa pela guerra com a ênfase que só tem os que não sabem do que falam e os bêbados.
O Pierrô desliza sua mão coxa acima da Colombina, que lhe retribui levantando o joelho. Jonas olha preocupado. Imagina que daquela posição fique mais fácil para o Pierrô arremessar a Colombina para cima do capô. Se amassar, a culpa vai ser dele. O dono parrudo do carro vai querer briga. Como se ao amassar sua cara, desamassasse o carro. Se pedir para o casal sair dali, apanha do mesmo jeito. Se for embora, não come.
Os fantasiados falam de tiros, bombas e mortes. Jonas não entende nada. Mas sabe de guerra. Conhece a dele. No bairro dele, que eles também não sabem onde fica. Acham que é perto de algum lugar que fica longe. Lá tem tiros. Tem bombas. Tem mortes. Traficantes, milicianos e policiais se revezam em suas guerras particulares. Quem mora lá, tem medo. Também não sabem onde fica o lugar longe onde tem guerra. Só sabem do medo. E que ninguém vai ajudar.
Ameaçavam carícias ainda mais explícitas quando a Colombina falou algo ao ouvido do Pierrô que lhe arrancou um sorriso de malícia. Saíram de mãos dadas se entreolhando de paixão e desejo e entraram no clube. Jonas assistiu aliviado.
Apressou-se em verificar se havia algum amassado ou arranhão no carro. Pensou que lá longe tem gente matando e morrendo. E gente aqui preocupada com as mortes de lá. Gente que não liga para as mortes daqui. Que até aplaude quando acontece. Concluiu que sua vida vale menos que o arranhão na lataria de um carro chique.
Já era bem tarde quando o dono do carrão apareceu. Bêbado. Jonas estava cansado e com sono, mas a postos. Recebeu só o olhar de chateação e uma lata de cerveja vazia. Pra você! Foi embora numa aceleração barulhenta, como uma explosão, encobrindo a música alegre que vinha do clube fechado.
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Ilustração: Mihai Cauli
Triste realidade. Ver tudo isso acontecer e achar que é trivial. E NÓS que nos consideramos pessoas de bem, “sociedade” conviver com tanta naturalidade a esses fatos, o famoso “faz parte né?” ou “O que eu tenho com isso?”. Texto chocante e cruel que provoca reflexão.