Gira Mondo, Gira. Por Flavio Gomes

ALERTA DE FRUSTRAÇÃO ANTECIPADAao terminar de ler este texto, você não estará convencido de que Putin é o maior vilão do século 21, belicista empedernido e ditador com ambições imperiais. Também relutará em ver nos EUA e na OTAN os salvadores do mundo, defensores da democracia e da liberdade. Da mesma forma, talvez não encare a Ucrânia como vítima indefesa da insânia humana. Nem estará convencido do contrário, tampouco — que Putin é o mocinho, o Ocidente é o bandido, a Ucrânia é um país de párias que merece levar bomba, mesmo. O mundo é muito complicado. Em situações assim, não tem lado certo ou errado. Talvez, apenas, o lado de fora.

No GP

SÃO PAULO – Essa foto aí em cima deve ter sido tirada em 1979, no máximo no comecinho da década de 80. O registro foi feito no Canadá, onde o Lada Laika era vendido como Signet. A URSS tinha acabado de invadir o Afeganistão. Foi um dos momentos mais agudos da Guerra Fria. Na América do Norte, não é preciso dizer, qualquer um que tivesse alguma relação com os soviéticos, ainda que ela se limitasse à escolha de um automóvel, era tratado como inimigo da democracia e do mundo livre.

Ainda consigo rodar com os meus por aqui. Pelo menos isso.

Vladimir Putin tem sido tratado como o mais vil dos seres humanos (e a concorrência é pesada) depois que decidiu levar a cabo uma operação militar sobre a Ucrânia. A tentação de tentar compreender o mundo a partir de raciocínios binários — um lado é bom, portanto o outro é ruim e acabou — é grande, nos dias de hoje; simplificar as coisas, dividir o planeta em A e B, polarizar, pensar a realidade de modo maniqueísta e fugir de qualquer reflexão mais trabalhosa. As pessoas emburreceram. São cada vez menos capazes de enxergar nuances, admitir que entre o preto e o branco há muitos tons de cinza.

Para começo de conversa, Putin não é uma boa pessoa. É um autocrata machista, misógino, homofóbico, autoritário, pouco confiável. É difícil simpatizar com alguém assim. Mas não se deve pautar o entendimento do conflito na Ucrânia apenas pela simpatia ou antipatia por alguém. Sua figura detestável não o torna, automaticamente, o maior culpado por tudo que está acontecendo. E o que está acontecendo não é apenas um país enorme atacando outro menor, coitadinho. Tem muita história por trás.

A Ucrânia não é uma coitadinha. Ao contrário, é um país altamente militarizado de 45 milhões de habitantes que ocupa uma posição estratégica entre os antigos países da Cortina de Ferro e a Rússia, possui a maior extensão territorial da Europa (a Rússia tem parte de seu território na Ásia), é o terceiro maior produtor de grãos do mundo. Como país independente, tem meros 31 anos — já que é fruto da dissolução da URSS; era uma de suas repúblicas constituídas após a Revolução de 1917.

Quando a Alemanha foi reunificada e a URSS desmantelada, no começo dos anos 90, o Pacto de Varsóvia, aliança militar dos países que depois da Segunda Guerra passaram ao arco de influência soviética, foi extinto. Era o oposto da OTAN, a Organização do Tratado do Atlântico Norte, capitaneada pelos EUA e seus aliados na Europa Ocidental. A existência das duas alianças militares, uma “comunista” e uma “capitalista”, conferia algum equilíbrio ao mundo, era uma espécie de garantia de que nenhum dos lados iria extinguir a espécie se acordasse de mau humor.

A OTAN, porém, não encerrou suas atividades. Longe disso: descumprindo acordos feitos com a Rússia esfacelada, decidiu aproveitar a brecha e expandir seus domínios para o antigo mundo comunista. Cooptou República Tcheca, Hungria, Polônia, Albânia, Bulgária, Croácia, Estônia, Lituânia, Letônia, Romênia, Eslováquia, Eslovênia, Macedônia… Cercou a antiga URSS. Tentou a Geórgia, Putin reagiu. Opa, bebê, aqui não! Foi lá e botou ordem no quintal.

Depois do golpe de Estado que derrubou o presidente eleito Viktor Yanukovich em 2014, a OTAN resolveu aliciar a Ucrânia. O objetivo era claro e estava longe dessa coisa bonita de levar a democracia e as lojas da Starbucks para o mundo. O lance era mesmo controlar o abastecimento energético da Europa, que passa por território ucraniano — gás e petróleo russos, basicamente.

Yanukovich era um político pró-Rússia, derrubado depois de três meses de protestos nas principais cidades do país. Muito semelhante às jornadas de junho de 2013 no Brasil, o movimento foi chamado de Euromaidan. Parte dos ucranianos foi às ruas exigindo uma maior aproximação política e econômica com a União Europeia e o afastamento da Rússia. As manifestações, como aqui, foram usurpadas por uma extrema-direita ultranacionalista inspirada no pensamento de um certo Stepan Bandera.

Bandera foi um colaborador da Alemanha de Hitler na Segunda Guerra, quando os nazistas resolveram atacar a URSS rompendo o pacto de não-agressão assinado anos antes. Anticomunista ferrenho, pregava uma Ucrânia livre das garras de Moscou e alinhada aos alemães. Ajudou a montar tropas locais para combater o Exército Vermelho. Morreu em Munique em 1959 aos 50 anos, envenenado pela KGB.

O resultado da Euromaidan foi a ascensão ao poder de um governo francamente anti-Rússia e pró-Ocidente, liderado pelo magnata de mídia Petro Poroshenko — que estimulou a criação de milícias paramilitares formadas por neonazistas e neofascistas anticomunistas. Estas, por sua vez, sustentadas e armadas na surdina por potências estrangeiras interessadas em enfraquecer Putin. O célebre Batalhão Azov, cujos símbolos foram vistos à farta nas manifestações pró-Bolsonaro no ano passado, surge aí. E logo é incorporado pelo governo à Guarda Nacional do país. Sua primeira tarefa: combater os separatistas russos do leste da Ucrânia, nas províncias de Donetsk e Lugansk, região conhecida como Donbass. Suas regras: matar, torturar, estuprar, saquear e perseguir minorias. Antissemitas, homofóbicos e racistas, os integrantes do Batalhão Azov são a face mais deprimente da Ucrânia. Não por acaso, aqui no Brasil, simpatizantes do bolsonarismo costumam usar bandeirinhas ucranianas nos avatares que adotam nas redes sociais. Devem estar com seus dois neurônios em curto, agora. Bolsonaro não é amigo do Putin? Mas o Putin é inimigo da Ucrânia? Manhê, o que a gente faz? Que bandeirinha eu coloco ao lado do meu nome cheio de números?

Putin percebeu a cilada e resolveu tomar a Crimeia, no sul da Ucrânia, uma região de população majoritariamente russa que gozava de certa autonomia — porto importantíssimo no Mar Negro “emprestado” pelo Kremlin à Ucrânia em 1953. Foi rápido e eficiente, do ponto de vista militar. Depois cuidaria do Donbass. O que tentou fazer em 2015 com o Acordo de Minsk, que resumidamente pedia garantias de alguma soberania às províncias orientais de maioria russa e exigia um cessar-fogo por parte das forças ucranianas. O trato foi aprovado pela ONU e subscrito por França e Alemanha, com pompa e circunstância.

Mas o fato é que Kiev nunca respeitou o Acordo de Minsk. Claro que Putin não é santo. Ao perceber as intenções do governo ucraniano de desestabilizar o Donbass e perseguir a população russa com suas milícias neonazis, reagiu. E armou os rebeldes até os dentes. Essa guerra civil que já dura oito anos deixou, até agora, 14 mil cadáveres de saldo. É uma carnificina.

Em 2019, a Ucrânia elegeu um paspalho de nome Volodymyr Zelensky, ator e comediante, como presidente. Seria como se o Brasil, sei lá, escolhesse João Kleber para comandar a nação. Esse cara explodiu em popularidade no país representando, numa série de TV, um presidente idiota e bobalhão que se gabava, no entanto, de ser muito honesto. Qualquer semelhança com… Bom, deixa pra lá. O nosso não é ator nem comediante. O discurso que levou Zelensky à presidência foi o da antipolítica, o do cara que vem de fora do sistema, aquele que é “contra tudo que está aí”, que vai acabar com a mamata.

É um rematado imbecil. Continuou cagando para o Acordo de Minsk e ainda resolveu desrespeitar o Memorando de Budapeste de 1994, assinado para reduzir a capacidade nuclear da Ucrânia. O cara é chegado numas ogivas atômicas. E não faz nada contra os neonazistas que infestam o país, embora ele mesmo seja de origem judaica. A situação no Donbass saiu do controle. Putin deu sinais de que queria resolver a parada e deslocou tropas para a fronteira. Zelensky se voltou choroso para a OTAN e para os EUA. Que enxergaram uma ótima oportunidade de enfiar o pé na maior das ex-repúblicas soviéticas. Putin ficou mais puto ainda. OTAN na Ucrânia é o caralho. E invadiu.

Como se vê, não tem santo nessa história. Os personagens são abomináveis. Todos. Incluindo os civilizadíssimos líderes europeus de países como Alemanha, França e Inglaterra, incapazes de bater de frente com os EUA — por sua vez comandados por um presidente que vem perdendo popularidade, é fraco e inseguro, e tem como único mérito o fato de ter derrotado o psicopata Donald Trump na última eleição.

Putin tem seus motivos para estar puto com a Ucrânia e com o Ocidente? Um monte. Isso faz dele um líder justo e admirável? Não, nunca, jamais. Mas é preciso se despir de conceitos muito arraigados e sólidos no chamado mundo livre, construídos à base de muita propaganda, filme de cinema e série de TV, para perceber que o outro lado também não é conduzido por virtuosas intenções de justiça, bondade, fraternidade e união entre os povos. Os EUA, nos últimos anos, invadiram Iraque, Síria e Afeganistão. E invadiram mesmo, com tropas, bombas, aviões e tanques, aproveitando o ensejo para alimentar sua abastada indústria bélica à base de destruição e morte. Indústria esta que precisa de uma guerrinha de vez em quando para girar a roda da economia, como não? Quando isso aconteceu, não se viu, pelos lados de cá, nenhuma reação indignada e histérica. Afinal eram os americanos, xerifes do mundo, sorridentes e superiores, guardiões da paz e da prosperidade, contra esses bárbaros de barba e turbante que vivem explodindo prédios e ônibus de turistas.

Putin pode ser um grande filho da puta. Mas não é o único.

Encaminhado para Combate Racismo Ambiental por Isabel Carmi Trajber.

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