Pressionados por assentamento ilegal, indígenas retomam parte do território Laranjeira Nhanderu e sofrem ameaças no MS

Após ameaça de invasão de área em processo de identificação como terra indígena, Guarani e Kaiowá realizaram retomada neste sábado (26); indígenas relatam ameaças de fazendeiros

No Cimi

Na madrugada deste sábado (26), indígenas Guarani e Kaiowá retomaram uma nova parte de seu território ancestral de Laranjeira Nhanderu, em Rio Brilhante (MS), onde está localizada a fazenda “Inho”. Segundo os indígenas, a retomada é uma reação à iniciativa de políticos e agentes de sindicatos locais que pretendem estabelecer um assentamento rural dentro da área reivindicada e em processo de identificação como terra de ocupação tradicional indígena.

As lideranças relatam que a situação, na manhã deste sábado, estava tensa e que os Guarani e Kaiowá estão sendo ameaçados pelos colonos e fazendeiros que se encontram no local. Os indígenas também relatam que decidiram iniciar o processo de retomada depois de receberem a informação de que famílias cadastradas para o novo assentamento ocupariam a área da fazenda neste final de semana, com a intenção de pressionar o Estado para agilizar a concessão de crédito fundiário.

“Já vieram fazendeiros e nos ameaçaram. Falaram que estamos em pouquinhas pessoas, é só meter bala e termina logo. Aí o pessoal começou a falar com eles e agora eles recuaram, foram para a cidade. Eles falaram que vão articular as pessoas e que vão voltar com peso de tarde”, afirma uma liderança do tekoha, não identificada por razões de segurança.

“Até agora, não temos segurança, essa é a nossa preocupação. O MPF não mandou a Polícia Federal, a Funai não manda funcionários. Mas se nos atacarem, vamos defender nossa vida”, garante a liderança.

O proprietário da fazenda “Inho” é há muito conhecido pelos indígenas, devido a uma série de ameaças e restrições que impôs contra esta comunidade. Ele impediu por muitos anos que os indígenas pudessem plantar suas sementes e ramas, mesmo em períodos de fome, impediu o acesso da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) à comunidade, inviabilizando seu atendimento, e ainda responde à acusação de despejo aéreo de agrotóxicos sobre o acampamento Kaiowá.

Assentamento ilegal

Há meses, os indígenas de Laranjeira Nhanderu vêm denunciando a iniciativa ilegal de criação de um assentamento dentro dos limites de sua área ancestral, justamente em fazendas que compõem a área reivindicada como de ocupação tradicional e incluída no estudo antropológico para a demarcação do território.

Os indígenas denunciaram inicialmente que um senhor de nome “Ramão”, pai do vereador Adão Evandro Leite, de Rio Brilhante, foi pessoalmente até as duas aldeias do tekoha Laranjeira Nhanderu para informar sobre a criação de um assentamento para famílias sem-terra da região. Segundo os relatos, ele buscava anuência das lideranças indígenas, que deveriam afirmar que a área de intenção não estava dentro estudo da Funai.

Os documentos apresentados pelo homem, ainda segundo os indígenas, apontavam a fazenda Inho como a área pretendida para criação do futuro assentamento. Durante as conversas, ele teria afirmado ter posse de documentos que comprovariam que a fazenda Inho “não era área indígena” e estaria fora do processo demarcátorio.

Para que o trâmite de criação do assentamento avançasse, ele precisaria de um documento assinado pelos indígenas confirmando a informação. Os Guarani e Kaiowá negaram veementemente qualquer anuência e denunciaram a pressão ao Ministério Público Federal (MPF), à Fundação Nacional do Índio (Funai) e a apoiadores.

Publicações em redes sociais e matérias jornalísticas indicam a articulação de políticos, como a deputada estadual Mara Caseiro e o vereador Adão Evandro Leite, junto com a Agência de Desenvolvimento Agrário e Extensão Rural de Mato Grosso do Sul (Agraer) o governo do estado e a União, para a liberação de crédito fundiário para novos assentamentos no município.

Um vídeo veiculado no dia 30 de janeiro no canal “MS Conectado”, no youtube, mostra o ato político realizado no assentamento Getúlio Vargas, também em Rio Brilhante, para o cadastramento das famílias interessadas no novo projeto.

“Foi feito um grupo para que a gente crie um novo assentamento […] do crédito fundiário, onde o governo federal, através do Banco do Brasil, libera um crédito para que a família possa adquirir a área”, afirma o vereador no vídeo, informando que já havia 270 pessoas cadastradas.

“Estamos criando esse grupo, juntamente com o Ramão, que é o responsável pelo grupo, para que a gente consiga criar um novo assentamento do crédito fundiário aqui no município de Rio Brilhante”, prossegue o político.

Segundo as informações obtidas pelos indígenas, o assentamento da fazenda Inho levaria o nome do Senhor Sebastião Leite, em homenagem ao pai do senhor Ramão e avô do vereador Adão.

Pessoas ligadas ao grupo de famílias cadastradas comunicaram os indígenas que, para acelerar os trâmites de liberação do crédito, as famílias sem-terra estavam se mobilizando para ocupar a fazenda de Inho logo após a colheita da soja, prevista para acontecer até essa sexta-feira, dia 25 de fevereiro.

Diante da iminência de uma invasão e dos inúmeros danos que isto imporia às famílias indígenas residentes na área pretendida, os Guarani e Kaiowá de Laranjeira Nhanderu decidiram retomar a área na madrugada deste sábado.

Segundo relato das lideranças, o proprietário da fazenda Inho, embora tenha inicialmente aceitado negociar a criação do assentamento ilegal, seria contrário à invasão das famílias não indígenas no local.

“Quando ele [fazendeiro] viu que esse programa vai dar prejuízo para ele, ele recuou. Só que essas pessoas já se inscreveram para pegar essa terra e esse pessoal está querendo invadir hoje, essa noite, para poder assinar na marra a venda dessa terra. Só que essa terra já é reivindicada, está no estudo. Eles sabem que esse programa [de assentamento] não pode ser aplicado dentro dessa terra indígena”, relata a liderança.

Em vídeo gravado pelos indígenas na manhã deste sábado, o senhor Ramão aparece buscando persuadir os Guarani e Kaiowá e confirmando que “foi formado o grupo” para o assentamento no local.

“O Raul [proprietário da fazenda Inho] ofereceu, e falei ‘então vou formar o grupo’. Formei o grupo, dá 200 e poucas famílias. Aí passa por uma entrevista, aqueles que forem aptos a pegar, tem que ter o nome limpo, aí o banco tem que financiar”, afirma ele, no registro.

Segundo as lideranças, depois de tentarem persuadir os Guarani e Kaiowá a deixarem o local, fazendeiros e colonos passaram a ameaçá-los e afirmaram que retornariam com um contingente maior.

O território

tekoha Laranjeira Nhanderu aguarda a conclusão dos estudos demarcatórios e foi incluído no Termo de Ajustamento e Conduta (TAC) firmado entre MPF e Funai em 2007, que estabeleceu um plano de estudos para a demarcação de terras indígenas Guarani e Kaiowá no Mato Grosso do Sul. O território de Laranjeira Nhanderu está incluído nos estudos da Terra Indígena (TI) Brilhantepegua, ainda em processo de identificação e delimitação.

Mesmo com o processo demarcatório em curso, os indígenas foram forçados a viver por mais de 15 anos numa pequena faixa de mato nos fundos da fazenda Santo Antonio, lindeira à fazenda Inho, onde ocorreu a retomada realizada nesta manhã. Amargaram em 2009 um doloroso despejo, onde anciões e crianças foram forçados a viver às margens de rodovias, entre a cerca e o asfalto, marcados por inúmeras situações de risco, medo e miséria.

Saturados de tal situação, em 2011 os indígenas se estabeleceram novamente dentro de parte de seu território – um dos últimos pedaços de mata nativa ainda não destruída pelo agronegócio na região. Lá, esperaram pacientemente a finalização do moroso processo de demarcação.

A falta de condições de vida e a impossibilidade de plantar e acessar alimentos no local mobilizou, em 2018, algumas famílias de Laranjeira Nhanderu a realizarem a retomada de uma outra área, que hoje abriga uma grande casa de reza e etno-quintais com grande diversidade alimentar, que oferecem dignidade e segurança alimentar especialmente para as crianças, que formam a maioria do grupo.

Até hoje, os indígenas vivem nessas pequenas partes de seu território tradicional, aguardando pela conclusão do processo demarcatório que já se estende por quase quase duas décadas, submetidos à pressão de fazendeiros e à vulnerabilidade causada pela falta da terra.

Em carta de apoio à comunidade indígena de Laranjeira Ñanderu, diversos movimentos populares, entre os quais o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), denunciaram “a tentativa ilegal, por parte de políticos e autoridades do estado, de realizar assentamento, em territórios reivindicados pelas populações indígenas”.

“Os movimentos populares da Via Campesina, em suas lutas pela terra no Estado de MS, não reivindicam e tampouco aceitam a criação de assentamentos em terras indígenas, porque reconhecemos e defendemos os direitos dos povos originários, garantidos pela Constituição Federal de 1988”, afirma a carta.

São cerca de 38 famílias que vivem em Laranjeira Nhanderu, contando com uma grande quantidade de idosos e crianças. Foto: Cimi MS

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