Ucrânia: enfrentamento local, razões globais. Por Gilberto Maringoni

Qualquer análise sobre a explosiva cena no Leste europeu que não leve em conta a expansão da OTAN não pode ser levada a sério.

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1. Movimento arriscado

Vladimir Putin realizou movimento de altíssimo risco na madrugada de 24 de fevereiro, ao comandar um ataque militar unilateral à Ucrânia. Numa situação defensiva, aposta na força. Embora o porta-voz do Departamento de Defesa russo alegasse, no mesmo dia, que a “operação especial” em defesa das regiões de Donetsk e Lugansk não lançaria ataques contra a população civil, a mídia internacional não se cansa de mostrar cenas de habitantes de Kiev e de outras cidades em desespero. É provável que Moscou vença rapidamente o contencioso, dada sua imensa superioridade militar. No entanto, diante da opinião pública global, o presidente russo colhe desgaste, reprovação e isolamento. Tornou-se o bandido da hora, num enfrentamento no qual não há bons e maus.

2. Dois pressupostos

É difícil afirmar que o líder russo e seu governo cometeram um erro de avaliação. Há pontos obscuros sobre os motivos que levaram à ofensiva, o objetivo a ser alcançado e qual o balanço que o próprio Kremlin faz da situação. Vale examinar com cautela como ficarão os blocos de aliados e de inimigos potenciais daqui por diante, em especial a China, que acaba de firmar vasto acordo político com a Rússia. Porém, antes de se fazer qualquer apreciação mais geral, dois pressupostos devem ser levados em conta.

A) O PRIMEIRO é atentar para o fato de que toda movimentação do país das estepes na região é defensiva, se realizarmos uma análise de largo espectro. A suposta demanda da Ucrânia por autonomia tem por trás uma nada sutil ofensiva ocidental para estabelecer bases da OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte) às portas da Rússia. A chave das pautas da mídia tem sido inverter tal sentido, fazendo Moscou aparecer como parte agressora e Kiev como a parte que busca apenas o nobre objetivo da soberania e da independência.

B) O SEGUNDO é ver a Ucrânia como um país espremido por dois impérios. Entre Estados Unidos e Rússia, apenas o primeiro pode ser classificado como tal. Império é aquele Estado situado no topo da hierarquia do sistema internacional, capaz de exercer hegemonia e dominação pela dinâmica da expansão territorial ou do capital (no terreno das finanças). Após a queda do regime socialista, em 1991, a Rússia viveu uma década de profunda crise e virtual colapso econômico. Apenas para nos fixarmos num indicador, seu PIB atual é cerca de 12 vezes menor que o dos EUA. Não há o menor sentido falar em dois impérios nesse caso.

3. País rico

A Ucrânia é rica. Terceiro maior produtor mundial de grãos, o país dispõe de sofisticada base industrial, que vai da produção de automóveis, aviões e até foguetes espaciais. Por muito tempo, pelas características de solo e clima, foi conhecida como o celeiro da URSS. Situada entre a Europa ocidental e a Rússia, funciona quase como um Estado-tampão na Eurásia. A Ucrânia atravessou forte queda em sua economia com o fim da União Soviética, quando se declarou país independente, em 1991. O país vive instabilidades políticas desde 2004, quando amplas mobilizações populares contestaram os resultados eleitorais que deram vitória a Viktor Yanukovych, candidato presidencial pró-Moscou, que não chegou a tomar posse.

Em 2014, sob a presidência do mesmo Yanukovych, que se recusou a assinar um protocolo de adesão à União Europeia, foi deflagrado o movimento conhecido como Euromaidan – nome em alusão à praça Maidan, em Kiev –, espécie de revolução colorida. Uma sucessão de protestos violentos acabou por forçar a derrubada do governo, com fortes marcas de golpe de Estado. As eleições, meses depois, foram vencidas pelo milionário de extrema-direita Petro Poroshenko. A partir daí grupos de extrema-direita perseguiram habitantes de origem russa em vários pontos do país. Anúncios de uma possível adesão à OTAN eram repetidos por toda parte. As instabilidades continuaram com a vitória do o comediante Volodymyr Zelensky, em 2019, numa campanha claramente antipolítica.

4. Jogo de pressão

No final de novembro de 2021, o governo de Kiev acusou a presença de quase cem mil soldados russos junto às suas fronteiras, após tensões diplomáticas entre os dois países. Putin começava ali um habilidoso jogo de pressão visando dividir o campo de apoiadores internacionais de Zelensky e se afirmar como dirigente capaz de lidar com inúmeras variáveis ao mesmo tempo.

Nas últimas semanas, o russo soube se articular de forma competente com o primeiro-ministro alemão Olaf Scholz – empossado há pouco mais de dois meses – e com o presidente francês Emmanuel Macron, além de explorar as fragilidades políticas que Joe Biden enfrenta no plano interno.

Segundo levantamento de Mateus Mello no site Poder 360, de 1º de janeiro a 18 de fevereiro, Vladimir Putin manteve encontros presenciais ou virtuais com 24 chefes de Estado ou de governo, em 41 compromissos. Desse total, 8 reuniões foram presenciais: com Seyyed Ebrahim Raisi (Irã), Viktor Orbán (Hungria), Alberto Fernández (Argentina), Emmanuel Macron (França), Kassym-Jomart Tokayev (Cazaquistão), Alexander Lukashenko (Bielorrúsia) e Xi Jinping (o único fora de Moscou). Apenas com o presidente francês, o mandatário russo se reuniu 5 vezes. Não entram no cálculo eventos realizados com dois ou mais líderes.

Putin conseguiu um nível de legitimidade, amplitude e de articulação internacional que poucos líderes atuais têm condições exibir, ainda mais levando-se em conta que a Rússia não é mais uma potência econômica e que seu papel no mundo não é nem sombra do que foi o da antiga União Soviética. Sua dissolução já foi classificada pelo próprio dirigente como uma a “maior catástrofe geopolítica do século XX”.

5. Trauma histórico

O chefe do Kremlin comanda um país que vive um insuperável trauma histórico, o das invasões externas. A lista é longa, e passa pelos ataques mongólicos, ao redor do ano 1000 e pelas incursões otomanas – que incendiaram a antiga Moscou, em 1571.

Em 1812, o país foi invadido por Napoleão, que chegou às portas da capital, sendo derrotado após duros enfrentamentos.

Entre 1918 e 1921, a Rússia foi invadida pelas forças da Tríplice Entente, aliadas na I Guerra Mundial, compostas por exércitos de 14 países – França, Império Britânico (Austrália, Canadá, Índia e Reino Unido), Grécia, Itália, Japão, Polônia, Sérvia e Estados Unidos – que visavam derrubar o poder bolchevique. E em 1941, a máquina de guerra da Alemanha nazista invade a URSS, formada em 1922. Um total de 4 milhões de soldados, distribuídos em efetivos terrestres e aéreos, provocou uma carnificina cujo total de mortos se situa entre 30 e 50 milhões.

Na tentativa de reduzir as vulnerabilidades de suas extensas fronteiras, a URSS buscou constituir cinturões de proteção ou neutralidade diante da Europa. Quem olha para o mapa regional do segundo pós-guerra, verifica que a constituição das Repúblicas Populares ou socialistas – por empenho de seus povos ou por pressão soviética – se deu seguindo o figurino da constituição desse cinturão de defesa. Além da Bielorrússia, Lituânia e Estônia, que já compunham a URSS, tornaram-se socialistas a Polônia, a Tchecoslováquia, a Hungria, a Romênia, a Bulgária, além de quase metade da Alemanha. Embora fossem países independentes, suas políticas externas articulavam-se às “razões de Estado” da URSS. A queda dos países do socialismo real desmontou as bases dessa geopolítica continental.

Dessa lista, hoje em dia, apenas a Bielorrússia não integra a OTAN, juntamente com a Ucrânia. A expansão para leste se deu entre 1999 e 2009, período em que a Rússia – apesar da contrariedade – não tinha forças para impedir tal avanço.

6. Tempos de Guerra Fria

Vamos nos fixar brevemente no mundo de 1945-89, as quatro décadas que se seguiram à II Guerra Mundial. Em A Era dos extremos, Eric Hobsbawm assinala que “O breve sonho de Stalin, de uma parceria americano-soviética no pós-guerra” não se concretizou. A pressão da direita e da extrema-direita estadunidense levou o presidente Harry Truman (1945-53) a pronunciar um duríssimo discurso na abertura dos trabalhos do Congresso, em março de 1947, colocando como meta de sua administração, “defender o mundo livre contra a ameaça comunista”.

A grande aliança para dar curso àquela meta foi a OTAN. Criada em1949 pelos Estados Unidos, Canadá, Portugal, Itália, Noruega, Bélgica, França, Dinamarca, Luxemburgo Países Baixos, Reino Unido e Islândia, seu propósito era estabelecer uma barreira ao avanço soviético na Europa.

A partir da guerra da Coreia (1950-53), a OTAN ganhou peso e musculatura e se tornou a principal frente anticomunista da Guerra Fria. Em 1955, os países socialistas criariam o Pacto de Varsóvia, como tentativa de se contrapor ao seu poder.

Com a dissolução da União Soviética, em 1991, e sem inimigo à vista, seria quase natural que a OTAN perdesse centralidade nas políticas de defesa de seus integrantes e viesse a desaparecer. O que ocorreu foi o contrário: mais 18 Estados se integraram a ela, nove deles ex-países socialistas, e seu orçamento se expandiu seguidamente.

Contra quem se coloca hoje a OTAN? Contra o comunismo? A Rússia é capitalista, há muito deixou de ser um império e seu governo nada tem a ver com esquerda. Contra a China? O país atua no plano global estritamente dentro das regras da economia de mercado, estabelecidas pela ONU, OMC e outros organismos multilaterais.

Luiz Alberto Moniz Bandeira, em seu A desordem mundial: o espectro da total dominação relata que:

Em 1995, quando a Casa Branca pressionou o Congresso para acelerar o projeto de expansão da OTAN aos países da Europa Central e Oriental, i.e., às fronteiras da Rússia, Theodore C. Sorensen, ex-assessor e amigo do presidente John F. Kennedy (1961–1963), publicou em The Washington Post assertivo artigo contra a política exterior do presidente Bill Clinton, assinalando que era “difícil imaginar decisão mais provocativa, tomada com um mínimo de consulta e consideração para suas consequências”. Essa iniciativa, no sentido de incorporar à OTAN os países do Leste Europeu, violava os compromissos assumidos pelo presidente George H. W. Bush com o presidente Mikhail S. Gorbatchov, quando da reunificação da Alemanha (1990).

A OTAN não é apenas uma sucata da Guerra Fria. É a materialização do poder imperial dos Estados Unidos – cujo orçamento militar representa mais de 70% de seu total – e a ampliação de seu papel como polícia global. Afinal, cada país-membro ostenta uma ou mais bases militares para incursões internacionais em seu território.

As preocupações de Putin com a instalação de bases que podem significar uma “faca na garganta” de seu país, como aludiu em discurso, não são paranoia. No site da própria Organização é possível ler: “Em setembro de 2020, o presidente Volodymyr Zelenskyy aprovou a nova Estratégia de Segurança Nacional da Ucrânia, que prevê o desenvolvimento da parceria distinta com a OTAN com o objetivo de se tornar membro da Organização”.

7. A hora de atacar

Se vinha conduzindo um hábil jogo de pressão sobre Kiev e ampliando seus apoios internacionais, por que Putin decidiu atacar agora? Faltam informações consistentes e sobram especulações.

Tudo indica que Volodymyr Zelensky tenha acelerado as tratativas com Washington para a adesão à OTAN. Se a associação acontecesse, estaria inviabilizada qualquer ação posterior de Moscou em protesto contra a iniciativa. Caso tentasse uma ação bélica, daria pretexto e legitimidade para uma pesada reação contrária. O artigo 5º do Tratado do Atlântico Norte, de abril de 1949 e base regimental da OTAN, diz o seguinte:

As Partes concordam em que um ataque armado contra uma ou várias delas na Europa ou na América do Norte será considerado um ataque a todas […] e se um tal ataque armado se verificar, cada uma […] prestará assistência à parte ou partes assim atacadas, praticando […] a ação que considerar necessária, inclusive o emprego da força armada.

Sem a adesão formal, qualquer iniciativa da OTAN no território ucraniano será também considerada uma incursão irregular, do ponto de vista internacional. Ou seja, se os EUA e seus aliados atacarem agora, serão também acusados de invasores pela Rússia. Assim, o reconhecimento da independência de Lugansk e Donetsk, há poucos dias, serviu para legitimar um suposto pedido de auxílio bélico a Moscou. Há muito de jogo de cena aqui, mas a Rússia invoca a antiga promessa da não expansão da OTAN em direção às suas fronteiras.

8. O mundo não é para amadores

A questão ucraniana envolve uma teia de interesses geopolíticos e econômicos de alta complexidade. Voltemos ao já citado livro de Moniz Bandeira:

Devido à sua dimensão geográfica, demográfica e estratégica – e por ainda possuir grande arsenal nuclear –, o presidente Bill Clinton, ao assumir o governo dos Estados Unidos, em 1993, deu prioridade à Ucrânia, nos marcos do projeto de estender a jurisdição da OTAN às antigas repúblicas da União Soviética, temendo que ela, isolada, no sudeste da Rússia, girasse outra vez para sua órbita de gravitação. E, ao visitar Kiev, em janeiro de 1994, propôs ao presidente Leonid Kravchuk (1991–1994) a integração da Ucrânia (como das demais repúblicas do Pacto de Varsóvia) à arquitetura da OTAN.

O imbróglio, como se vê, vem de longe. Reduzir a questão a caprichos de Vladimir Putin significa tirar de cena disputas globais com fortes lastros históricos. Assim, vale sublinhar que qualquer análise sobre a explosiva cena no Leste europeu que não leve em conta a expansão imperial de Washington não pode ser levada a sério.

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Gilberto Maringoni é professor de Relações Internacionais da UFABC e coordenador do Observatório de Política Externa e Inserção Internacional do Brasil (OPEB).

Putin e Bolsonaro em reunião do Brics. Foto: Reprodução Twitter

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