Por Marques Casara, no Brasil de Fato
Uma reportagem com graves denúncias contra a Nestlé foi publicada no portal O Joio e o Trigo, que produz jornalismo focado no setor de alimentação. Assinada por Fábio Zuker, o título é o seguinte: “Nestlé compra óleo de palma de empresas envolvidas em violações de direitos humanos na Amazônia paraense” .
Zuker faz uma detalhada descrição de como o dinheiro da Nestlé banca um brutal esquema de racismo ambiental, trabalho infantil, violação do Estatuto da Terra, extermínio cultural e outros crimes igualmente graves.
A cena do crime é o Alto Rio Acará, território que abriga comunidades quilombolas que habitam a Amazônia desde muito antes do início do plantio de palma, realizado por um preposto da Nestlé, a empresa Agropalma S/A.
A Agropalma faz o serviço sujo para a Nestlé e para outras multinacionais do setor de alimentos. A empresa cercou territórios, ocupou cemitérios antigos, cavou fossas para impedir a circulação de pessoas.
Falsificou documentos, subornou, inventou cartórios fantasmas, criou títulos de terra fictícios e injetou dinheiro em ONGs ligadas a direitos humanos e responsabilidade social, com o intuito de calar a boca de seus dirigentes.
Tudo isso com o propósito de produzir óleo de palma para o setor de alimentos; entre eles, a Nestlé, um dos principais compradores do óleo de palma produzido mediante cometimento de crimes em série.
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O silêncio da Nestlé
A Nestlé está no topo da cadeia produtiva do óleo de palma. Financia a Agropalma para obter a mercadoria. Não importa o custo ambiental, a violência, as fraudes. A Nestlé injeta grandes somas de dinheiro na Agropalma.
A Nestlé foi questionada pelo autor da reportagem citada acima. Não respondeu. A denúncia teve forte repercussão e foi reproduzida em plataformas nacionais e internacionais.
Após a publicação, a Nestlé entrou no radar do Centro de Informação sobre Empresas e Direitos Humanos, organização que coleta dados sobre a política de direitos humanos de mais de 10.000 empresas em 180 países.
O Centro de Informação enviou questionamentos à Nestlé e publicou um artigo relatando o problema.
A Nestlé respondeu enviando uma nota de duas frases: “O respeito pelos direitos humanos está no centro de nossa cultura e exigimos dos nossos fornecedores o cumprimento de diretrizes e normas de fornecimento responsável. Levamos a sério as alegações envolvendo a Agropalma e estamos acompanhando de perto os desdobramentos da situação”.
Ao tentar tirar o corpo fora, a Nestlé piora bastante a situação:
1. Ao mencionar que leva a sério a violência perpetrada pela Agropalma, admite vínculo direto com a empresa criminosa, pois é ela, Nestlé, que sustenta a cadeia produtiva da Agropalma;
2. Ao admitir o vínculo com a Agropalma, Nestlé traz para si a responsabilidade pelo que é feito com o seu dinheiro, injetado nas contas bancárias da empresa perpetradora da violência;
3. Ao não condenar a violência e ao ignorar as vítimas, que não são citadas na nota, a Nestlé se torna cúmplice da Agropalma;
4. A multinacional se joga no meio do problema por um simples e básico motivo: na medida em que admite vínculo com a Agropalma, a Nestlé passa a violar o seu próprio código de conduta de fornecedores. O código é absolutamente claro: não admite violação de direitos humanos nas cadeias produtivas sustentadas pela empresa. A Nestlé viola regra pétrea que ela mesma criou.
:: Nestlé admite, mas ignora que seus produtos não são saudáveis, mostra documento ::
E agora, Nestlé?
A Nestlé é a maior empresa de alimentos e bebidas do mundo. Seus movimentos representam muita coisa, em qualquer dos países onde atue. Ao se omitir diante da violência contra comunidades quilombolas, a empresa se torna cúmplice e avalista de tudo o que acontece ou vier a acontecer no Alto Acará.
Além dos questionamentos do Centro de Informação sobre Empresas e Direitos Humanos, a Nestlé também foi interpelada pela Associação Brasileira de Antropologia. A empresa ainda não respondeu. Espera-se que envie uma nota mais esclarecedora.
Trabalho infantil e escravo
Além do problema envolvendo a produção de óleo de palma, a Nestlé também financia o trabalho infantil na cadeia do chocolate. Milhares de crianças e adolescentes estão a serviço da Nestlé em plantações de cacau no Pará e na Bahia. A empresa segue devendo respostas também sobre esse tema, que se tornou público em 2019.
Que mundo a Nestlé espera edificar com tanta barbaridade financiada com seu dinheiro?
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Edição: Rodrigo Durão Coelho
*Marques Casara é jornalista especializado em investigação de cadeias produtivas e é mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP.