O barco no pátio. Por Abrao Slavutzky

No Terapia Política

Há poucos dias, pensei no passado a partir de uma música que escutei quando criança. Recuar na idade é entrar num mundo imaginário, tempos de cenas plenas de espanto. E a primeira cena que veio à mente, para minha surpresa, foi a do barco no pátio, um barco para grandes viagens. Dentro do barco eu viajei por mares do mundo, mas o barco só aparecia nos dias de chuva. O pátio alagava e a mesa, de ponta cabeça, virava um barco, ficava boiando e se deslocava ao vento sem precisar de velas. Eu olhava o barco por horas, ainda que não soubesse o que significava a palavra hora. Gostava de imaginar viagens, era marinheiro, até capitão, vivia aventuras, sem compartir isso com a família ou com os amigos. O barco no pátio, a mesa de cabeça para baixo, num belo dia tomei a decisão de que não precisava mais do barco.

Na verdade, tive outra ideia para aquela mesa, ela foi levada para junto a um muro, o barco voltou a ser não uma mesa, mas um ponto de apoio para subir no muro. O muro nos fundos do pátio fazia divisória com a escola, logo, nos recreios eu podia dar um pulo em casa, era só pular o muro e a aí a mesa servia de apoio. Foram dois anos que fiz isso, pois depois a escola se mudou para longe, eu tendo até que viajar de bonde com várias paradas e muita gente.

O pátio tinha também um galinheiro e eu acompanhava a vida dos pintos, seu crescimento, a vida dos galos e das galinhas. Volta e meia havia brigas, algumas feias, com muito cocoricó, mas ninguém morria, não havia armas. Um dia, no almoço, fiquei sabendo que um pequeno galo que vi crescer de pequenininho tinha sido morto, cozinhado e estava na mesa para o almoço. Ali, naquele dia, começou minha rebeldia, pois não comi nada do pobre galinho. Foi um ato silencioso, mas creio que foi meu primeiro protesto. O galo pequeno não ficou sabendo, mas naquele dia respeitei sua morte, pois eu, vendo os pintos crescerem, nunca desejava que fossem mortos. Ah, faz anos que não como galetos, ou qualquer carne de galinha, e desconfio que essa decisão esteja ligada ao galinheiro desse pátio. Um dia, até escrevi a orelha de um livro de charges sobre as galinhas, feito pelo humorista Máucio, de Santa Maria. Minha primeira frase foi: “Sempre torci pelas galinhas”.

Um dia minha família mudou-se de casa, fomos morar num apartamento, e aí perdi o pátio, perdi o galinheiro, a mesa (o que foi feito dela não sei), mas comecei outra vida. Vida de rua, jogos sem fim como futebol, bolinha de gude, brincar de pegar, pião e tantos mais. O pátio ficou no passado, mas agora, ao escrever e trazê-lo para o presente, percebo que foi o maior e melhor pátio que já tive, e foi nele que vivi algumas grandes aventuras. Viajei muito, e meu barco quase afundou nas ondas gigantes dos sete mares. A tripulação do barco foi heróica, sempre lutou com bravura para não afundar, e presto a todos minha homenagem. Escrevendo agora, vi o barco, olhei bem pela janela e lá estava ele, mais uma vez, flutuando livremente.

(Publicado no Facebook do autor, em 25-02-2022)

Ilustração: Mihai Cauli

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