Policial Militar de SP, coronel Cerqueira se apresenta como diretor de confederação presidida por empresário investigado pela PF por extração ilegal de ouro na Amazônia
Por Alice Maciel, Ciro Barros, José Cícero, Agência Pública
Demitido pelo ex-ministro Ricardo Salles da presidência do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) em agosto de 2020, o coronel Homero de Giorge Cerqueira atualmente representa garimpeiros na Confederação Nacional de Mineração (CNMI) junto a um empresário investigado por extração ilegal de ouro. No início de março, eles participaram de encontros, reuniões e audiências públicas sobre a legalização do garimpo na Área de Proteção Ambiental (APA) do Tapajós, no Pará. O ex-presidente do ICMBio chegou ao ponto de vestir o colete da organização que defende “os interesses de milhares de mineradoras pelo país”, conforme informa em texto publicado no seu blog, em novembro do ano passado.
Na página, Cerqueira diz ainda que a confederação será a “cabeça” da representação minerária no Brasil e irá orientar “seus associados na mineração artesanal sustentável”. “A mineração artesanal é uma atividade legalmente estabelecida no País, mas a imprensa muitas vezes utiliza a palavra ‘garimpo’ como sinônimo de ‘extração ilegal’”, acusa, repetindo o discurso adotado pelo presidente Jair Bolsonaro. “Desde que cumpra a legislação ambiental, a trabalhista e opere formalmente, essa mineração de menor porte é legal e garantida pela Constituição, pois a mineração é importante na economia do Brasil”, acrescenta o ex-policial militar no texto titulado: “Mineração sustentável da CNMI: uma construção na solução da mineração artesanal”.
Coronel aposentado da Polícia Militar de São Paulo, o ex-chefe do ICMBio hoje se apresenta como Diretor de Assuntos Ambientais e Sustentabilidade da Confederação Nacional de Mineração. Procurado pela Agência Pública, ele respondeu que seu papel na entidade é o de promover a interlocução entre o setor mineral e os órgãos ambientais. “Principalmente no que concerne a mediação de conflitos, bem como na orientação, doutrinação e regularização do setor da mineração brasileira, pois é uma atividade legal”, defendeu.
A CNMI foi oficialmente registrada na Receita Federal no dia 28 de janeiro de 2022 e é presidida por Bruno Cecchini, um empresário com uma extensa lista de pedidos de extração mineral na Agência Nacional de Mineração (ANM) e que responde a uma investigação da Polícia Federal (PF) por extração e comércio ilegal de ouro.
Apenas um mês depois de fundar a organização, Cecchini conseguiu uma reunião com o atual presidente do ICMBio, o também coronel da PM paulista Marcos Castro Simanovic. Segundo Cerqueira, “foi uma visita de cortesia”, da qual ele também participou. “Já agendamos outras reuniões com outros ministérios do Governo Federal. Não constitui crime ou transgressão disciplinar, nem tampouco fere a ética receber as pessoas que querem o bem, respeita os valores da dignidade humana e não pactua com descaso do cidadão brasileiro”, explicou.
A pauta do encontro, que ocorreu numa terça-feira, 22 de fevereiro, na sede do ICMBio em Brasília, foi: “apresentação de proposta de Termo de Ajuste de Conduta para regularização da atividade em áreas onde for viável e ações para coibir atividades ilegais”, conforme a agenda de Simanovic — a participação do ex-presidente do órgão não foi divulgada na agenda oficial.
Antes de presidir a CNMI, Cecchini já dirigia a Cooperativa Mineral da Bacia do Tapajós de Itaituba, a Coopermix Gold. E foi exatamente em Itaituba, a principal cidade garimpeira da bacia do Rio Tapajós, que ele e o coronel Cerqueira participaram, no dia 10 de março, de uma audiência pública na Câmara Municipal com o tema “Garimpo Legal”. Na ocasião, os dois vestiram um colete cáqui com as iniciais da Confederação Nacional da Mineração, muito semelhante ao utilizado pelos Ministros de Estado. A peça virou moda no atual governo e, conforme apurou a Pública, pessoas que estavam presentes confundiram o colete com os utilizados pelos servidores do ICMBio, uma vez que Cerqueira já chefiou o instituto.
Na audiência, foram discutidas propostas para a regularização do setor minerário na APA Tapajós, que é a Unidade de Conservação (UC) da Amazônia mais afetada pela extração de ouro com indícios de irregularidades, conforme destacado no estudo da Universidade Federal de Minas Gerais “Legalidade na produção de ouro no Brasil”. A bacia do Tapajós abriga uma das maiores áreas de produção de ouro do mundo, a Província Aurífera do Tapajós. As áreas protegidas da região, como as UCs e as Terras Indígenas, são alvos constantes de invasões por parte de garimpeiros ilegais. Muitos destes grupos reivindicam a regularização da mineração em terras protegidas constitucionalmente.
Além dos representantes da CNMI, participaram da reunião o Secretário Municipal de Meio Ambiente e Mineração de Itaituba Bruno Rolim, o presidente da Cooperativa dos Garimpeiros Mineradores e Produtores de Ouro do Tapajós (Coopouro), Antônio Araújo, e o prefeito da cidade Valmir Climaco (MDB).
Na ocasião, o secretário Bruno Rolim afirmou que o grupo busca parceria com o ICMBio para que o município possa licenciar as atividades garimpeiras da APA Tapajós. E agora eles possuem um forte aliado, o ex-presidente do órgão. “O Instituto Chico Mendes da Biodiversidade é um parceiro e quando eu estava presidente, o nosso presidente Jair Messias Bolsonaro sempre teve um olhar muito detalhado para mineração, a importância da mineração no Brasil”, disse Cerqueira em entrevista à TV Tapajoara minutos antes da reunião na Câmara. Ele estava acompanhado do presidente da CNMI que também falou ao canal: “A confederação está aqui para proteger os mineradores”, destacou Cecchini.
O coronel respondeu à reportagem que durante o encontro falou sobre “a necessidade de regulamentar as mineradoras da APA Tapajós”. Segundo ele, isso seria feito “por meio de um Termo de Referência (TR) com a anuência do ICMBio, que expedirá a Autorização de Licença Ambiental (ALA), conforme Instrução Normativa do ICMBio nº 10, de 2020”. A norma foi criada por ele quando ainda estava do outro lado do balcão, como presidente do órgão ambiental. O ex-policial também defendeu a criação de uma plataforma digital para rastrear o minério extraído das lavras e a construção de um laboratório que fizesse a análise da água dos rios no entorno da mineração, apesar de não acreditar que o garimpo seja o responsável por contaminar os rios de mercúrio.
“Orientamos também que a mineração não é uma atividade ilegal, pelo contrário, é legal”, destacou Cerqueira, acrescentando que defende que Itaituba também deva criar métodos para combater o garimpo ilegal, como por exemplo, um disque-denúncia, e ainda “investir na educação ambiental de mineração sustentável no ensino fundamental”.
A audiência pública foi convocada pelo vereador Wescley Tomaz (MDB), “um dos nomes de destaque do lobby pró-garimpo nos últimos anos”, conforme o estudo “O cerco do Ouro: garimpo ilegal, destruição e luta em terras Munduruku”, do Comitê Nacional em Defesa dos Territórios Frente à Mineração. Ele está no seu terceiro mandato e na última eleição foi o mais votado sob o mote “Vereador do Garimpeiro”.
O político é um forte aliado do deputado federal Joaquim Passarinho (PSD/PA), “responsável, em grande medida, pelo fácil acesso que esses grupos tiveram ao Palácio do Planalto depois que Jair Bolsonaro assumiu a presidência”, de acordo com a pesquisa.
No dia 24 de fevereiro, os dois se reuniram em Brasília com representantes dos Ministérios da Justiça, de Minas e Energia e com o diretor da Agência Nacional de Mineração, Ronaldo Lima. “O Ministro da Justiça (Anderson Torres), através de toda a sua assessoria e da Polícia Federal, se comprometeu em criar um grupo de trabalho para a gente dar legalidade às áreas que são permitidas por lei”, contou Wescley Tomaz em vídeo publicado em suas redes sociais após o encontro. As tratativas feitas com o Governo Federal em defesa da mineração do Tapajós neste dia foram apresentadas durante a audiência pública na Câmara Municipal de Itaituba.
Ex-presidente do ICMBio participa de reuniões com representantes de mineradoras, políticos e empresários
A agenda dos lobistas do garimpo foi movimentada entre fevereiro e março, meses em que o Congresso Nacional também discutia uma pauta cara ao setor: o Projeto de Lei 191/2020, de autoria do governo federal, que libera exploração minerária em terras indígenas. No dia 9 de março, os deputados aprovaram um requerimento permitindo que a proposta tramite em regime de urgência, ou seja, sem passar pela análise das comissões da Casa.
No mesmo período, o ex-presidente do ICMBio, além de ter participado da audiência pública em Itaituba como representante dos garimpeiros, também esteve em uma reunião virtual entre o órgão que chefiou e a Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Turismo de Jacareacanga, cidade vizinha. Entre os presentes estavam o coordenador da Unidade Especial Avançada do ICMBio de Itaituba, Bruno Mato e o prefeito de Jacareacanga, Vlado do Posto (PSDB).
A reportagem apurou junto a pessoas que acompanharam a videochamada que o coronel Cerqueira não havia sido convidado e não teve seu nome divulgado no texto publicado pela prefeitura após o encontro. Ao tomar a palavra, ele se apresentou como diretor da CNMI, fez algumas colocações sobre licenciamento ambiental de garimpos e a participação do ICMBio no processo. Ele confirmou à reportagem que participou da chamada.
A reunião teve como resultado a “elaboração de um plano de ação para regulamentar as atividades de garimpos na região, orientando os garimpeiros para os procedimentos e registro no órgão federal”. O informe divulgado no site da prefeitura de Jacareacanga sobre o encontro diz que o prefeito solicitou ao ICMBio “um modelo de ação para garantir a legalidade das atividades garimpeiras, na intenção de valorizar os garimpeiros”. “A Secretaria de Meio Ambiente e Turismo, busca validar as licenças, mas, deseja trabalhar em parceria com o Órgão Ambiental”, acrescenta.
No dia 17 de março, o ex-presidente do ICMBio esteve em Boa Vista numa audiência pública na Assembleia Legislativa de Roraima sobre a regularização e legalização da mineração no estado. Ela foi convocada pelo deputado estadual Renan Filho (Republicanos) e também contou com a presença do deputado federal Nicoletti (PSL/RR) e dos representantes de Itaituba, o vereador Wescley e o prefeito Valmir Climaco.
Ainda em fevereiro, outro evento em defesa do setor foi realizado na própria sede da Confederação Nacional de Mineração, em Brasília. Ele foi registrado em vídeo publicado no canal oficial da organização no Youtube, no dia 26.
Com aspecto de vídeo institucional, a imagem mostra um grupo de homens sentados no entorno de uma mesa oval. No centro, o ex-presidente do ICMBio desponta ajustando o terno. Ao redor da mesa estão ainda o sócio-fundador da COMIDEC (Cooperativa Mista de Desenvolvimento do Crepurizão), João da Delub, o advogado e proprietário do maior escritório de advocacia de Itaituba, Fernando Brandão, o empresário Roberto Katsuda, da BMG Máquinas — distribuidora autorizada da BMG Hyundai — o engenheiro ambiental Guilherme Aggens e novamente o “vereador dos garimpeiros” de Itaituba, Wescley Tomaz.
Em outra cena, o anfitrião e presidente da CNMI, Bruno Cezar Cecchini, aparece junto ao deputado federal Adriano do Baldy (PP-GO), pedindo para que ele falasse “alguma coisa”. “Obrigado pelo carinho que você nos recebe aqui. Parabenizar você pela coragem, pela determinação e desejar a você sucesso nessa nova empreitada. E me colocar à disposição para que nós possamos, lá no Congresso Nacional, na Câmara dos Deputados, poder apresentar a regulamentação necessária para que esta importante instituição possa gerar emprego e renda e, é lógico, fazer um Brasil cada vez maior”, disse o parlamentar, que votou a favor da urgência do PL 191/2020.
Presidente da CNMI é investigado por suspeita de comércio ilegal de ouro
O presidente da CNMI, que anda circulando em Brasília com deputados, acompanhado do ex-presidente do ICMBio, é investigado pela Polícia Federal por comércio ilegal de ouro desde 2019 em um inquérito que já acumula cerca de 13 mil páginas.
No dia 10 de junho daquele ano, a PF recebeu uma denúncia anônima e armou uma operação ainda nas primeiras horas da manhã. A denúncia dizia que o avião monomotor azul e branco, prefixo PT-RIX, pousaria no Aeroporto Internacional de Goiânia com uma carga ilegal de ouro em seu interior.
Após a aeronave pousar, os agentes fizeram as buscas e encontraram a carga mencionada: aproximadamente 111 kg de ouro em barras escondidas sob os bancos da aeronave, o equivalente a aproximadamente R$ 18 milhões em valores da época. Essa apreensão foi o início de uma investigação da PF contra Bruno Cecchini, que já dura quase três anos O monomotor pertencia a uma de suas empresas, a RJR Minas Export Eireli. Em relatórios policiais que constam em decisões da Justiça Federal, a Polícia Federal apontou que, apesar de não estar à época oficialmente no quadro societário, Bruno era o real proprietário da RJR. A conclusão foi tirada a partir de depoimentos colhidos com os sócios que estavam no quadro societário e outras diligências policiais. Segundo a PF, os sócios da RJR “apenas emprestaram seus nomes para constar no contrato social da empresa, ocultando o real proprietário que é Bruno Cezar Cecchini, o qual admitiu efetivamente administrar a empresa, constituída em 2017.”
A PF concluiu em seu relatório que o ouro apreendido no aeroporto de Goiânia foi extraído ilegalmente: a polícia não encontrou nenhuma atividade de extração na mina localizada em Colniza (MT), que foi apontada nas investigações como origem do ouro apreendido. Um funcionário ouvido pelos policiais relatou que trabalhava no local desde maio de 2019 e que nunca havia presenciado qualquer atividade de mineração ali.
A PF também analisou imagens de satélite datadas de maio de 2019 que apontaram que a atividade de mineração era “nula ou incipiente” e que não comportaria a extração, no período de um mês, dos 111 kg de ouro apreendidos. “O relatado acima comprova a falsidade ideológica das 17 (dezessete) Notas Fiscais apresentadas e juntadas aos autos para justificar a origem do ouro, pois no local indicado como origem do ouro ainda não está havendo qualquer extração de ouro”, afirma a Polícia Federal, referindo-se a notas fiscais apreendidas durante as buscas na aeronave. Os funcionários ouvidos pelos policiais afirmaram terem sido contratados por Bruno Cecchini.
A carga apreendida tinha como destino a Itália. A PF apura se o ouro apreendido era parte de um esquema de comércio ilegal do mineral extraído por empresas ligadas a Cecchini e outros empresários para a Europa. Procurado pela reportagem, o MPF (GO) afirmou que “há fortes indícios de que a empresa RJR Minas Export compra ouro ilícito, especialmente na região de Alta Floresta (MT), de diversas empresas e de outros garimpos ilícitos, e dá aparência de licitude ao ouro usurpado da União — afirmando que o ouro teria sido extraído na lavra de Colniza, que não existia na prática. A Polícia Federal indicou mais de dez pessoas jurídicas envolvidas na compra de ouro de garimpos ilegais.”
Procurada, a PF não retornou os pedidos de entrevista e não quis se manifestar formalmente. Em uma decisão proferida em um Habeas Corpus apresentado por Bruno Cecchini, o juiz federal Marllon Sousa fixou um prazo de seis meses a partir de 18 de janeiro de 2022 para o término das investigações.
Bruno Cecchini não respondeu aos contatos da reportagem. Já o coronel Homero Cerqueira afirmou que Cecchini “não tem nenhuma condenação transitado em julgado que possa desaboná-lo”. “Caso tenha sido condenado em três instâncias pela justiça brasileira, acredito que nem poderia fazer parte da CNMI”, defendeu, acrescentando ainda: “Dizer que a pessoa está ou esteve sendo investigada pela Polícia Federal não constitui qualquer dano à imagem”.
—
Imagem destacada: Coronel Cerqueira vestindo o colete da Confederação Nacional da Mineração, que foi confundido com o colete usado por funcionários do Governo Federal e do ICMBio.