O STF e o furto do vosso ventre. Por José Ribamar Bessa Freire

No TaquiPraTi

Confesso publicamente: eu roubei. Reincidi inúmeras vezes. Não sei se o crime já prescreveu. Faz tanto tempo. Foi no final do último governo do Álvaro Maia. Tinha eu sete ou oito anos. Sabe aquela antiga feira de Manaus que começava na rua Ferreira Penna, na altura da Silva Ramos? Pois é, esse foi o local do delito. Hoje, autores de pequenos furtos são condenados à prisão por juízes de primeira instância, alguns são absolvidos quando recorrem ao STF, outros não, segundo o repórter Fábio Pescarini (FSP, 7/4).

Ainda bem que na época não havia câmeras como agora no supermercado de Joinville (SC), que flagrou um casal com um pedaço de bacon e um pacote de macarrão. Os dois devolveram tudo, mas apesar disso foram sentenciados a quatro meses de prisão cada um, o que foi confirmado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). Já no STF, onde transitaram na última década mais de 3.100 ações como essa, a ministra Carmen Lúcia invocou o “princípio da insignificância” do furto e anulou a pena.

Ela absolveu também um morador de rua de Ibaté (SP) preso por surrupiar dois sacos de lixo reciclável para trocar por comida. A ministra se baseou na mínima ofensa da conduta de um furto que não causou perigo, dano ou lesão, com reduzido grau de reprovação do comportamento. Ainda bem que o caso não caiu nas mãos do Dias Toffoli, ele manteve condenação de um ano e sete meses de prisão de um homem que furtou uma bermuda de R$ 10,00 e depois foi devolvida à loja. Ou do seu colega Kássio Nunes Marques.

Nomeado por Bolsonaro, o ministro Nunes Marques odeia roubalheira de pequenos furtos, mas não assim os de “colarinho branco”, a quem dá outro tratamento: “rachadinhas”, assalto de pastores aos cofres do MEC e superfaturamento na compra de ônibus escolares ou de vacinas. Ele manteve a condenação de uma mulher presa em flagrante ao furtar em Boa Esperança (MG) 18 barras de chocolate e 89 caixinhas de chicletes avaliados em R$50, para a venda no sinal de trânsito. Tem algo de errado aí, não tem não?

Fruto do furto

A prisão de pobres e pretos, que não usam violência ao realizarem pequenos furtos quase sempre de comida, revela a natureza de classe do Poder Judiciário, que defende com unhas e dentes a propriedade privada, mesmo quando de valor insignificante. Pune para servir de exemplo. Criminaliza a pobreza “de uma pessoa em situação de desespero, que se vê obrigada a furtar”, segundo o presidente da Comissão da Advocacia Criminal da OAB-SP, Caio Favaretto. Felizmente não fui flagrado na minha ação delituosa.

Foi assim. A gente morava apertado num modesto barraco de zinco no Beco da Bosta, bairro de Aparecida. Éramos, na época, onze irmãs e irmãos, as duas últimas não haviam ainda nascido. Dormíamos em rede, parecia “motor de linha”, uma cruzando sobre a outra, os mijões nas redes de baixo, os outros nas de cima. De madrugada, ainda escuro, nossa mãe me despertou – eu sou o mais velho dos homens – para acompanhá-la à feira. No caminho, confessou que não tinha dinheiro para comprar o almoço:

– Meu filho, olha pro chão, vai olhando pro chão que, às vezes, a gente encontra dinheiro que alguém perdeu. Reza – disse ela, lembrando uma vez que achei uma nota marronzinha de 20 cruzeiros, que tinha o retrato de um milico: ou Deodoro ou Floriano.

Percorremos, então, as barracas dos feirantes até o igarapé, carneirinho, carneirão, olhando pro chão, pro chã, pro chão. Nada. Bateu o desespero. Paramos na banca de peixe. Pequeno, eu não podia ser visto pelo peixeiro. Sem combinarmos nada, além da troca cúmplice e silenciosa de olhar, enquanto ela entretinha o vendedor, deslizei dois tucunarés para dentro da sacola. Eita caldeirada gostosa!

Repetimos outras vezes a operação, sem qualquer comentário da dona Elisa, que não falava sobre o ocorrido. Nem podia. Ela dava aula de catecismo aos sábados, nos ensinava os Dez Mandamentos entregues por Deus a Moisés no Monte Sinai e escritos numa pedra. Entre eles, o oitavo: Não roubar.

Crime deslembrado

Era crime. Mais grave ainda: um pecado. Por isso, contei no confessionário ao padre, rezei ato de contrição, pedi perdão com “o firme propósito de emenda”. Cumpri a penitência: seis ave-marias. Cada vez que reincidia, nova confissão. Tal operação, hoje conhecida como “Arrependimento Onyx Lorenzoni”, homenageia a quem abiscoitou R$200.000,00 reais de uma empreiteira, mas foi inocentado por Sérgio Moro, que justificou: “Ele já pediu desculpas”. A “madre superiora do bolsonarismo” não rezou sequer um pai-nosso.

O direito canônico é um pouco mais flexível do que o direito penal brasileiro, que é punitivista contra o pobre e demasiadamente condescendente com os ricos. Roubar um peixe prejudica apenas um indivíduo – o peixeiro, mas roubar a merenda escolar e o FNDE desgraça toda a sociedade. Tem gente que fica mais chocada com a não punição de pequenos furtos do que com a fila do osso e a fome, desconhecendo o legítimo direito à insurgência. 

Mais de cinquenta anos depois, sentados num banco de um parque onde minha filha brincava, trocava eu confidências com dona Elisa. Mencionei pela primeira vez o nosso segredo: a expropriação dos peixes. Ela não perdeu o rebolado nem a dignidade. Disse que de nada lembrava. Morreu negando. Fiquei calado em cumprimento ao quarto mandamento: honrar pai e mãe.

A memória é mesmo traiçoeira. Eu me pergunto: será que o delito foi mesmo cometido? Aliás, o local do crime deslembrado nem existe mais, o igarapé foi aterrado: hoje é uma ladeira na rua. Nem sei se existiu mesmo essa feira no buraco da Ferreira Pena. Talvez ocorreu algo semelhante ao relato dos evangelistas sobre o milagre da multiplicação de dois peixes para mais de 5 mil pessoas às margens do mar da Galileia.

Espero que Nunes Marques, que é católico, ou seu colega André Mendonça, terrivelmente evangélico, não tentem punir este réu confesso de um crime ocorrido há 68 anos. Ou o fruto do furto não passou de um sonho?

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