Krenak: “Todo mundo deve se armar com título de eleitor e dar um basta nessa direita ignorante”

No BDF Entrevista desta semana, ativista fala ainda sobre o Marco Temporal: “excrescência jurídica”

por José Eduardo Bernardes, em Brasil de Fato

A invasão colonial do Brasil no século XVI não foi superada, segundo Ailton Krenak, liderança indígena da bacia do Rio Doce e ativista ambiental. “Nós não podemos continuar reformando constituições dentro de um corpo de um Estado colonial. O estado colonial foi fundado pelos espanhóis e portugueses. O que você mudar ali dentro, o jogo já está feito, entendeu?”, diz. 

Convidado desta semana no BDF Entrevista, Krenak afirma que as armadilhas do estado colonial ainda assombram a República, e uma delas está ligada à sistemática expulsão de indígenas de suas terras ancestrais. Para além dos projetos de legalização do garimpo que tramitam na Câmara Federal, a decisão que o Supremo colocará novamente em votação no meio do ano sobre o Marco Temporal é uma das mais assustadoras, segundo o ativista, que define a medida como uma “excrescência jurídica”.

“Eles largaram no texto da Constituição um rabicho para que alguém enfiasse lá esse Marco Temporal. Ela consegue colar no capítulo dos direitos dos índios, onde está a obrigação da União em reconhecer e demarcar as terras indígenas. A União transformou isso numa decisão imperial, se os índios podem ou não ter aquela terra”, avalia.

O Marco Temporal estabelece que só poderão ser demarcadas e reconhecidas as terras indígenas ocupadas legalmente até 1988, data da promulgação da Constituição do Brasil. “O artigo 231 da Constituição Brasileira é definitivo. Ele diz que a União e o Estado brasileiro devem reconhecer as terras indígenas. Quer dizer, é um ato de reconhecimento à ocupação histórica tradicional dos povos indígenas. Não cabe nenhuma discussão sobre isso”, afirma Krenak.

Para avaliar a tese que se tornará jurisprudência para demais casos, o Supremo julga o processo de demarcação da Terra Indígena Ibirama, em Santa Catarina, habitada pelos povos Xokleng, Kaingang e Guarani e que teve sua posse questionada por cerca de 300 agricultores dos municípios José Boiteux, Vitor Meireles, Itaiópolis e Doutor Pedrinho. A ação ganhou apoio da Procuradoria-geral do Estado de Santa Catarina (PGE-SC), que ingressou como parte interessada.

julgamento foi interrompido em setembro de 2021, após um pedido de vistas do ministro Alexandre de Moraes. Naquele momento, a votação estava empatada em 1 a 1: um voto a favor, proferido pelo ministro Kássio Nunes Marques, indicado de Jair Bolsonaro (PL) à corte; e outro contrário, do ministro Edson Fachin.
 
Krenak reflete ainda sobre a cooptação de lideranças indígenas pelo bolsonarismo, que, para ele, remonta há muitos anos: ao projeto desenvolvimentista brasileiro baseado no consumo e à maneira como a sociedade está distante de exercer plenamente sua cidadania.
 
“Até a campanha eleitoral deste ano: as pessoas parecem que estão olhando uma coisa que está acontecendo em outro país. Todos esses jovens de 17 anos, eles deveriam estar assim, mobilizados demais para tirar o título de eleitor. Principalmente nos lugares pobres do nosso país, nos segmentos mais pobres, mais excluídos, as favelas, as quebradas”, afirma. 
 
“Todo mundo tinha que se armar com o título de eleitor e dar um basta, do ponto de vista eleitoral, tão redundante, que não deixasse dúvida a essa direita ignorante de que ela está errada. A gente tinha que tentar fazer isso pela via do que chamam de democracia, para a gente testar nossa capacidade de mobilização”, complementa. 
 
Confira a entrevista na íntegra:
 
Brasil de Fato: O Marco Temporal segue em debate no Supremo Tribunal Federal e deve ser votado no meio do ano. É um processo que se arrasta há bastante tempo já, entre matérias no Congresso e na Corte. Qual o impacto de reconhecer apenas as terras indígenas ocupadas até a Constituição de 1988?
 
Ailton Krenak: É uma ofensa ao princípio da nossa Constituição, porque o artigo 231 da Constituição Brasileira é definitivo. Ele diz que a União e o Estado brasileiro devem reconhecer as terras indígenas. Quer dizer, é um ato de reconhecimento à ocupação histórica tradicional dos povos indígenas. Não cabe nenhuma discussão sobre isso. 
 
Eles largaram no texto da Constituição um rabicho para que alguém enfiasse lá esse Marco Temporal, é uma excrescência jurídica. Só que ele consegue colar no capítulo dos direitos dos índios, onde está a obrigação da União em reconhecer e demarcar as terras indígenas. A União transformou isso numa decisão imperial, se os índios podem ou não ter aquela terra. 
 
Não é essa a questão que a Constituição põe. A Constituição determina que é para demarcar. Seria mais ou menos como se alguém determinasse a um sujeito que ele deve levar um balde de água até o jardim e, no meio do caminho, o cara querer discutir se o balde deve estar cheio ou pelo meio, entendeu?
 
Falando justamente sobre a Constituinte, o senhor teve um papel fundamental naquele processo que culminou na Constituição de 1988, que no papel é super avançada. Naquela época, o senhor se pintou durante um discurso histórico no Congresso Nacional. É verdade que, para entrar no Congresso, o senhor precisou recolher trajes sociais com parceiros, assessores do Congresso, porque eles não permitiram a tua entrada? 
 
É bom lembrar que na década de 1980 a sociedade brasileira tinha outra configuração. A gente estava saindo de uma ditadura e você tinha, mesmo, o povo na rua. Eu fiz uma fala dentro do Congresso Constituinte apoiado por 120 mil assinaturas de brasileiros, espalhados pelo país inteiro. 
 
Era uma emenda popular, eu estava ali com um mandato amplo, então eu pude falar durante alguns minutos, defendendo o capítulo dos direitos indígenas na nossa Constituição. De certa maneira, formulando aquilo que veio a ser os nossos direitos, mas que já era produto de uma articulação muito grande de diferentes segmentos, inclusive de sindicatos de trabalhadores rurais. 
 
A Federação dos Trabalhadores na Agricultura, os metalúrgicos do ABC participavam dessas negociações. A OAB, a CNBB [também]. Quer dizer, era um amplo movimento social em que eu era o sujeito que, naquele momento, tinha que entrar lá e pegar o leão. Tem gente que acha que eu tinha um mandato parlamentar. Eu não fui eleito deputado, eu tinha uma representação atribuída pelo movimento social para fazer uma intervenção e foi o que eu fiz. 

Eu levava o segredo no bolso, um potinho com aquela tinta preta, que eu passei no rosto.


É claro que eu cheguei lá de camiseta e calça jeans e os caras falaram: “você não vai entrar aqui, desse jeito. Você tem que estar a caráter, você tem que estar com traje adequado”. E eu, lógico, fui ver que o traje adequado era um terno. Eu tinha que ter um terno, usar paletó e gravata. Então eu fui nos gabinetes dos deputados que eu conhecia na época. Eu não me esqueço que o Domingos Leonelli me arrumou o paletó; o Márcio Santilli, a gravata; o gabinete do Fábio Feldmann me arrumou mais algum acessório e eu me pus naquela condição de parlamentar e pude ser admitido no recinto. 
 
E claro, eu levava o segredo no bolso, um potinho com aquela tinta preta, que eu passei no rosto. Eu sabia que não adiantava eu chegar lá e, em 10 minutos, espernear e convencer 500 parlamentares a aprovar o direito dos índios na Constituição, porque a luta política naquela época era muito aberta e o racismo, o preconceito, eram muito explícitos. 
 
Eu pensei: “bom, não adianta. Por mais incrível que seja meu discurso aqui, os caras não vão me escutar”. Foi daí que nasceu aquele gesto que hoje é chamado de performance. Dez anos depois me disseram: “você fez uma performance”. Eu não tinha a menor ideia disso e eu acho que, nem no contexto da cultura brasileira, a ideia de alguém fazer uma performance ainda não era uma coisa tão comum.
 
A gente não tinha internet, que nasceu 20 anos depois. É muito interessante lembrar tudo isso. Pessoas das novas gerações podem pensar que eu estava fazendo uma selfie de lá de dentro do Parlamento. Não, o negócio lá era duro. Era você encarar mesmo, argumentar e ser ouvido. Não tinha nenhum jeito de você apelar para quem estava fora daquele salão, não tinha opinião pública que você mobilizava. 
 
E felizmente, pelo engajamento e pelo profundo envolvimento com a temática, eu tinha todos os elementos para argumentar com aquela porção de latifundiários que estava lá. Porque o centrão, esse centrão de sempre, estava lá com a maioria na Assembleia Nacional Constituinte e constrangeu o debate, coisas como deixar uma isca nos direitos sociais, para que eles, no futuro, pudessem dar um tombo na questão do trabalho, na questão do reconhecimento das populações quilombolas, indígenas.
 
Tanto que você pode ver que, até hoje, existe uma discussão se os quilombos são ou não são um direito a ser reconhecido. De vez em quando alguém tenta acabar com esse direito dos habitantes de territórios de Quilombo. Da mesma maneira que eles tentam sabotar o princípio do direito originário dos povos indígenas sobre as terras que já habitavam. 
 
E não tem essa de botar uma data, dizer: “não os que estavam ali até o dia da Constituição ser promulgada”. Isso é um golpe.
 
O senhor falou sobre essas pontas soltas da Constituição. Seria possível refazê-la? A gente já teve várias tentativas de assembleias constituintes nos últimos anos. Há espaço para isso? Lembrando do que acontece neste momento no Chile, onde o povo Mapuche, inclusive, lidera a Assembleia Nacional Constituinte para a refundação da Constituição chilena. 
 
Bem, aí são coisas tão distintas que a gente não pode fazer uma comparação. O que acontece no Chile hoje é resultado de uma longa mobilização Andina, desde o Equador, onde se discute o direito da natureza, onde se discute a refundação dos estados coloniais na América Latina e o contexto do Chile, ele põe em questão: não é só refazer os termos de uma Constituição, é refazer os termos da fundação do Estado chileno. 
 
Uma conclusão que lá na Bolívia já se chegou e em outros países da América Latina também é que nós não podemos continuar reformando constituições dentro de um corpo de um estado colonial. O estado colonial foi fundado pelos espanhóis e portugueses. O que você mudar ali dentro, o jogo já está feito, entendeu? 
 
Eu estava até me lembrando daquela história que eu comentei com você, que o Zagallo estava com a Seleção Brasileira para jogar contra os russos. Montou o esquema e anunciou o esquema para os jogadores. O Garrincha virou para ele e disse: “Tá, mas você já tratou com os russos?” 
 
Não adianta a gente mudar a Constituição se a gente não tratar com o escopo de um estado colonial. Já que está tão em debate a descolonização, como que nós vamos pensar uma Constituição que vai ser válida dentro de um arcabouço de um estado que é colonial? Que os caras que têm o poder vieram do Império? 
 
Muitas das pessoas que seguiram a vida política brasileira, os tataravós deles, os avós deles eram conselheiros do Dom Pedro II. A primeira República foi só uma mudança de prédio. Mudou o prédio, não a República. Era um monte de conselheiros do Império assumindo cargos na República, com todos os vícios.
 
E o quão distante a gente está dessa democracia real? 
 
Bom, a gente sabe o que é a Cordilheiras dos Andes, não é? Essa é a distância que nos separa da experiência do Chile. A gente tem que atravessar a Cordilheira dos Andes para chegar na experiência deles, que é a refundação do Estado colonial chileno, que foi instituído pelos espanhóis e está lá até hoje, caquético. Assim como o nosso foi instituído pelos portugueses e ele está podre.

Eu acho muito interessante a gente estar conversando sobre isso, porque esse debate deveria estar sendo feito pelos juristas, os constitucionalistas, esses homens ilustrados da vida brasileira. Eu não sei por que a Ordem dos Advogados do Brasil não tem coragem de abrir um debate sobre a reforma do Estado.
 
Acontece, neste momento, em Brasília o Acampamento Terra Livre. Desde 2019 ele não acontecia presencialmente. A ideia era reunir os 305 povos indígenas de todo o país. Dado o contexto do país, esse tende a ser um ato de maior pressão no governo federal?
 
Olha, a gente não pode se esquecer que o movimento indígena nunca deixou de fazer presença no debate político em Brasília, nem desde 2019 e nem dia nenhum. Não tem uma data para o movimento indígena ir à Brasília. O movimento indígena, a marcha das mulheres sobre Brasília, nunca pararam de ter delegações significativas indígenas em Brasília. A cada ameaça de golpe o povo indígena está em Brasília. 
 
O que nós reclamamos muito é que os outros segmentos da sociedade brasileira acham que esse problema é um problema dos índios com o governo. E não entenderam ainda que o estado brasileiro está sendo assaltado, a vida política do país está sendo dissolvida e os brasileiros ficam assistindo como se fosse um evento extra. 

A cada ameaça de golpe o povo indígena está em Brasília.

Até a campanha eleitoral deste ano: as pessoas parecem que estão olhando uma coisa que está acontecendo em outro país. Todos esses jovens de 17 anos, eles deveriam estar assim, mobilizados demais para tirar o título de eleitor. Principalmente nos lugares pobres do nosso país, nos segmentos mais pobres, mais excluídos, as favelas, as quebradas.
 
Todo mundo tinha que se armar com o título de eleitor e dar um basta, do ponto de vista eleitoral, tão redundante, que não deixasse dúvida a essa direita ignorante de que ela está errada. A gente tinha que tentar fazer isso pela via do que chamam de democracia, para a gente testar nossa capacidade de mobilização. 
 
Vamos ver se nós somos capazes de fazer isso dentro do sistema de representação política que eles acham válido, mas que muitos deles, na maior cara de pau, tentam desmerecer, tentam sacanear, tentam inventar alguma desculpa, tipo [fraudes na] urna eletrônica, ou qualquer outro papo furado. Isso é tudo golpismo, à semelhança dos Estados Unidos, onde o Trump tentou de toda maneira invalidar a eleição. Tem que ser uma votação tão unânime que não dê chance para ninguém vir com conversa fiada.
 
O plano e a estratégia já estão montados pelo governo federal. Resta à população brasileira demonstrar força para tentar enfraquecê-lo…
 
Então, mas é admirável que uma coisa tão simples quanto tirar o título de eleitor, pela unanimidade da juventude, e se fazer presente na eleição… É um gesto totalmente civil. Tipo ir à escola. Qual o problema? Por que esses caras todos não tiram os seus títulos de eleitor? 
 
Foi publicada uma pesquisa recente dizendo que só 27% da meninada que está nessa idade é que se mobilizou para tirar o título de eleitor. Cadê os outros 70% deles, que deveriam tirar o título de eleitor? Será que estão achando que está bom? Está bom jovem negro correr na calçada e levar tiro nas costas da Polícia, porque acha que preto correndo na calçada é bandido? 
 
Quando é que essa juventude vai se tocar que os próximos da fila são eles mesmos? A gente sabe que a exclusão incide sobre os não brancos. Se a gente não quiser dar nome aos pretos, aos pardos, aos índios, então vamos dizer: “a exclusão no Brasil se dá em cima de não brancos”. E o que os que não são brancos estão fazendo? Fingindo que não é com eles? 
 
Vão esperar piorar muito mais, a gente virar um Haiti? Eu fico indignado. Eu vi, o [Gilberto] Gil; o Lenine gravou uma chamada para os jovens dizendo: “tira o seu título de eleitor”. Mas eu acho absurdo a gente ter que fazer uma campanha para o cara assumir um direito dele, que é o direito de ser cidadão. Será que a gente banalizou tanto a vida pública no Brasil que a rapaziada acha que nem vale a pena tirar o título de eleitor? 
 
Tem um projeto na Câmara, que teve seu trâmite acelerado pelo presidente Arthur Lira (PP-AL), que coloca em votação nos próximos dias o projeto de liberação do garimpo para indígenas. Uma fachada para abertura geral e irrestrita do garimpo em terras indígenas. Como essas lideranças que estão apoiando esse projeto foram cooptadas pelo bolsonarismo? 
 
Eu não sei se eles foram cooptados pelo bolsonarismo. Quem não conhece a história doméstica do povo indígena, é preciso entender o seguinte: no último censo se reconheceu que tem 305 etnias nesse país. Vamos considerar que mais ou menos mais da metade dessas etnias estão no que a gente chama de Amazônia Legal. 
 
A Amazônia, que pega desde o Maranhão até o Mato Grosso. Não é só lá no Amazonas, como as pessoas imaginam. Porque esses analfabetos nacionais que vivem no sudeste, quando você fala Amazônia, eles pensam que é um conjunto de florestas que tem ali às margens do Rio Amazonas e do Tapajós e pronto. Quem sabe, o Xingu. 
 
São analfabetos do ponto de vista político, não conhecem o país em que vivem, porque senão, iam entender que há uma imensa região chamada Amazônia Legal, que agora estão tentando inclusive, dar um golpe, tirar o Mato Grosso da Amazônia Legal.
 
[A Amazônia Legal] foi instituída lá na Ditadura para facilitar financiamento do Banco Mundial, para programas de colonização da Amazônia. Então todo mundo queria estar na Amazônia para pegar uma grana. Foi assim que Goiás virou Amazônia, o Maranhão virou Amazônia, porque era um jeito de estar dentro do programão do Banco Mundial, Sudene, Sudam, incentivos fiscais, toda essa pilantragem que levou muita gente do sul a ocupar a região amazônica, com projetos que nunca foram para lugar nenhum, mas que encheram os bolsos de muita gente. 

A Europa tem lá algum lugar para garimpar? Não, ela garimpa aqui.


O povo indígena passou por essa moagem nos últimos. Vamos considerar que nos últimos 60 anos. Na Constituinte, quando eu estava lá defendendo o capítulo dos índios, lá fora tinha um lobby indígena brigando comigo, porque eles já queriam que deixasse pelo menos uma licença dizendo que na terra indígena os índios podiam garimpar. Isso lá na Constituinte.
 
Eu participava de debates com essas pessoas para convencer de que era uma roubada. Eu dizia para eles: “não tem jeito de você fazer um garimpo circunscrito a um igarapé, a uma aldeinha. A hora que descobrirem que lá dentro tem ouro, você vai ser invadido”. A gente não tem uma política do Estado brasileiro de real proteção a esses territórios, assim como a gente não tem proteção das unidades de conservação, dos parques nacionais. 
 
Se você liberar atividade garimpeira em unidades de conservação e terras indígenas, que é o que está proposto agora, é uma invasão geral de tudo. Onde tiver minério esses caras vão entrar.

O contraditório que está aparecendo agora e que muita gente não percebe é que as grandes empresas mineradoras não querem que se aprove esse garimpo, por que esse garimpo contraria a hegemonia, o controle que têm as grandes mineradoras, como a Vale do Rio Doce, por exemplo, as outras grandes mineradoras canadenses, australianas, que têm base aqui no Brasil. A Europa tem lá algum lugar para garimpar? Não, ela garimpa aqui. 
 
Então, quando a gente aprovou aquele princípio geral da Constituição, a gente estava contrariando não só o lobby do centrão, a Paranapanema, a Vale do Rio Doce, toda essa pilantragem, a gente também estava contrariando alguns indígenas que queriam ter garimpo. Eles ficaram contidos nos últimos 30 anos. 
 
Agora, eles entraram na forra porque eles viram o Mourão, com aquela conversa fiada dele, dizendo que ele também é índio, que ele quer garimpar: “mim também é garimpeiro”. Inventaram essa malandragem e não dá pra você falar que houve uma cooptação. Não tem jeito de você cooptar quem já tá no baile. 
 
O projeto desenvolvimentista e neodesenvolvimentista brasileiro vem desde os anos 1930 e sempre teve algumas vítimas em comum: os indígenas, os povos ribeirinhos, os povos das florestas e os quilombolas. O senhor costuma escrever bastante sobre o tema do desenvolvimentismo brasileiro. Há saídas para esse desenvolvimentismo do país ser sustentável e que não seja, por exemplo, calcado no consumo desenfreado que marcou os nossos últimos anos? 
 
O que acontece é que, do século 20 para o século 21, houve um evento chamado globalização. E dentro da globalização, o professor Milton Santos já avisava isso, deixa de existir a singularidade das economias, as escolhas. Ninguém escolhe mais nada, nem a China, nem Uganda. 
 
Nós somos uma plataforma planetária, onde o sistema financeiro global atua de maneira livre. Não existem mais estados nacionais, isso é uma balela. A China está construindo uma infraestrutura no litoral da Bahia, na costa da Bahia, que vai botar um dedo ali e vai sugar o que tiver de interesse da China. E não precisa vir cá, a China não precisa vir para o Brasil, ela leva o Brasil para a China.
 
A gente pode inventar uns programas legais assim, tipo, você quer ir para China? Daqui a pouco eles vão dar passaporte livre, você pode sair diretamente do Pelourinho para Hong Kong. A gente ainda está no século 20 pensando o mundo no século 21. 

Eles acham que crescer a economia é desenvolver. Isso não tem nada a ver com desenvolver.

O que acontece é que as economias não têm mais escolhas se elas vão se desenvolver ou não. A Holanda abriu uma discussão há dois anos, no meio da pandemia, porque houve uma reformatação da vida política lá, e eles disseram que não queriam mais avançar no sentido do desenvolvimento econômico. Eles queriam fazer um envolvimento. 
 
A ministra deles anunciou que agora eles estavam interessados no envolvimento, quer dizer, se envolver com a questão climática, se envolver com a questão ambiental, se envolver com a questão da qualidade da vida em vez de continuar aumentando o PIB. Mas os países nanicos são fascinados por crescimento.
 
Eles acham que crescer a economia é desenvolver. Isso não tem nada a ver com desenvolver. Inclusive porque você cria muita pobreza nos países subdesenvolvidos. Todo o esforço de crescimento deixa para trás um rastro de miséria e destruição que, no caso daqui do Brasil, ficou registrado num livro magnífico que está esquecido nas prateleiras, que tem o título de “O Milagre Brasileiro”, escrito por um cara chamado Shelton Davis, um cara que era consultor do Banco Mundial, que veio para o Brasil para supervisionar os financiamentos do Banco na abertura da Transamazônica e outros babados.
 
Ele percebeu como o milagre brasileiro produzia miséria. É mais ou menos como uma máquina de moer coisas, ela vai jogando um produto processado de um lado e jogando o resto no fundo que ninguém vê. O fundo que ninguém vê é a pobreza assustadora que cresceu tanto que a gente não consegue sair dessa.

Edição: Felipe Mendes

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“Será que a gente banalizou tanto a vida pública no Brasil que a rapaziada acha que nem vale a pena tirar o título de eleitor?”, indaga Ailton Krenak – Divulgação

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