MEC: educação, ideologia e destruição

Ministério da Educação sofre no governo Bolsonaro o maior cerco já visto para a busca de uma “purificação”. Dessa sanha não escaparam as universidades federais, Inep e Capes, afastando diversos servidores com experiência na educação brasileira. Depois de quatro ministros, o que virá?

Por Luciana Alvarez, na Revista Educação

Não surpreendeu que em agosto de 2021 o pastor e então ministro da Educação até março deste ano, Milton Ribeiro, tenha dito na TV que a universidade deveria ser para poucos. Já o primeiro ocupante do Ministério da Educação (MEC) na gestão Bolsonaro, o colombiano naturalizado brasileiro Ricardo Vélez Rodrigues foi o autor da mesma frase em seu mandato que durou menos de 100 dias. É do mesmo Vélez a determinação para que as escolas filmassem os alunos cantando o Hino Nacional e proclamando o slogan da campanha do presidente “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”. Abraham Weintraub, o segundo a ocupar a pasta, destravou a língua com vários impropérios: “tenho ódio do termo povos indígenas” e “há uma série de fake news envolvendo meu nome, algumas calúnias nas quais eu insitaria (sic) a violência”, trocando o c pelo s

Carlos Alberto Decotelli foi um quase ministro que não assumiu quando incluiu no currículo um doutorado na Universidade de Rosário, na Argentina, e um pós-doutorado na Universidade de Wuppertal, na Alemanha. Ambas as instituições se manifestaram alegando que as informações eram inverídicas. 

“Nefasta” é o adjetivo que o ex-ministro no governo petista Renato Janine Ribeiro usou para descrever a administração do MEC do atual governo.  Não se trata apenas de divergência política, garante o presidente da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência). “No governo Temer houve corte de verbas para o ensino superior, mas a autonomia das universidades foi mantida. Na educação básica, nessa época, havia pessoas comprometidas, que queriam melhorar a educação, ainda que eu não concordasse com os caminhos”, afirmou, citando que nesse período foram continuadas pautas importantes para a educação, como a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) e a Reforma do Ensino Médio.

Um MEC sem ação e instrumentalizado para concretizar a ideologia de um governo que é, muitas vezes, antieducação: é assim que especialistas em políticas públicas de educação avaliam a gestão da pasta durante os anos de Jair Bolsonaro. 

Entidades não governamentais, especialistas, todos criticam a falta de um projeto que aproveitasse a evolução no ensino. “Desde que Murílio Hingel foi ministro no governo Itamar Franco, houve um caminho para a educação, com bastante convergências entre os diferentes governos. Com Bolsonaro, foi a primeira vez que um governo se elegeu sem projeto para a educação no plano de governo. Não ter ações na educação está no DNA deste governo”, critica Renato Janine Ribeiro. 

A falta de projeto para a educação provocou situações como o alheamento a tudo que se passava nas escolas durante os dois anos de pandemia. A doença afetou a educação global, fechando escolas no mundo inteiro. A crise, contudo, parece não ter mobilizado o governo federal. “Não houve nenhuma orientação do MEC. Se a União não entrar na educação básica, ela não funciona direito só com os estados e municípios”, alerta Janine Ribeiro, explicando que a coordenação deveria ter sido semelhante ao esquema de distribuição dos livros didáticos, em que o governo federal, com mais recursos e expertise, elenca uma lista de materiais adequados e faz a compra, mas cada escola tem a autonomia para escolher quais vai usar. 

Mais do que simples “frases malcolocadas”, são ações graves, acredita Janine Ribeiro. “Quando se sai de uma crise econômica, a primeira coisa que falta são profissionais bons. A solução é melhorar a economia, não fechar vagas de universidades. Há falas preconceituosas, mas além disso, erradas.”

Milton Ribeiro pediu exoneração do MEC no final de março de 2022, após divulgação pelo jornal O Estado de S.Paulo  de um gabinete paralelo que favorecia pastores evangélicos na liberação de verbas para as prefeituras – a polícia federal abriu inquérito para investigação. Victor Godoy Veiga, então secretário-executivo da pasta, foi nomeado como ministro da Educação interino.

O ex-ministro Milton Ribeiro também responde na Justiça à acusação de homofobia por dizer em uma entrevista também ao Estadão que “homossexualismo” é fruto de famílias desajustadas. Novamente, em agosto de 2021, falou que há crianças com “grau de deficiência que é impossível a convivência” e que, como citado no início, as universidades deveriam ser para poucos. “Tenho muito engenheiro ou advogado dirigindo Uber porque não consegue colocação devida (…) De que adianta você ter um diploma na parede, [se] o menino faz inclusive o financiamento do Fies, que é um instrumento útil, mas depois ele sai, termina o curso, fica endividado e não consegue pagar porque não tem emprego?”, questionou.

Quando encampava alguma agenda, a administração de Milton Ribeiro acabava caindo em questões insignificantes para a sociedade. “Quando tivemos de fechar as escolas por causa da covid, como poderíamos ter garantido aulas para os alunos mais pobres, sem banda larga, sem tablet? O governo federal deveria ter usado os recursos do Fust [Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações] para comprar e distribuir. Além de não tomar a iniciativa, o presidente ainda vetou o projeto de lei”, lembra Janine Ribeiro. 

Depois de mais de um ano de pandemia, Bolsonaro de fato vetou o projeto de lei da conectividade, que previa internet gratuita a alunos e professores da rede pública. O Congresso, contudo, derrubou o veto e estados deverão receber, ao todo, R$ 3,5 bilhões para investir em ações de conectividade escolar, como compra de chips, tablets e pacote de dados.

Para muitos estudantes, a espera pode ter sido longa demais. “A marca deste governo é o abandono e a evasão escolar. Foi um MEC que, no meio de uma pandemia, não gastou um centavo para estruturar as escolas, garantir o acesso à internet. Não é uma omissão, é uma ação: o governo resolveu dessa forma tirar milhões de adolescentes e crianças da escola”, afirma Rozana Barroso, presidente da União Brasileira dos Estudantes Secundaristas (Ubes).

Olavo Nogueira Filho, do Todos Pela Educação, destaca: “É um MEC que lavou as mãos. Em 2021, com os impactos brutais da pandemia, o governo elenca como prioridade a agenda do ensino domiciliar. Algo que serve apenas para alimentar a agenda ideológica de costumes que mantém a base ativa. Um MEC inerte é parte do projeto bolsonarista”. O Brasil tem 56 milhões de estudantes no ensino básico, sendo que 26% na rede particular. O ensino domiciliar é uma questão relevante para apenas 5 mil, segundo estimativas.  

Se de um lado atende a interesses políticos, a regulamentação do ensino domiciliar é considerada prejudicial por muitos, contrária aos interesses das crianças. “Em termos mais filosóficos e dialogando com as ciências sociais, os seres humanos cons­troem a sociedade em que vivem e os Estados modernos são consolidados e funcionam através de pactos e de uma estrutura de governança institucional. Até aqui, o papel da escola enquanto instituição de convivência, de aprendizado sobre a vida em sociedade e sobre valores democráticos, sobre alteridade, sobre respeito ao diferente e da promoção da diversidade e da não discriminação já é insubstituível”, afirma Andressa Pellanda, coordenadora-geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação.

Outro tema “marginal”, com peso pequeno para a rea­lidade, mas tratado com grande entusiasmo retórico é a militarização das escolas. Marginal porque se dirige a um universo reduzido dentro do sistema educacional brasileiro. Escolas militares, há apenas 14 no país, de 184 mil escolas. A meta para as cívico-militares era chegar a 216 unidades até o fim do mandato de Bolsonaro. 

É fato que as escolas militares do Brasil costumam oferecer um ensino de maior qualidade. Mas se deve aos investimentos maiores, e não ao fato de serem militares. Os colégios militares, parte da rede federal, têm mais verbas que escolas estaduais ou municipais; há um investimento direto federal e um indireto que é a utilização de estrutura e recursos humanos do Ministério da Defesa. Os professores dos colégios militares do Brasil ganham um bom salário e têm condições de trabalho melhores, especialmente por serem concursados federais, segundo explica Andressa, que estudou no Colégio Militar do Rio de Janeiro, do 6º ano do fundamental ao 3º ano do ensino médio. 

“Sempre quando conto sobre minha experiência, lembro que tínhamos a oportunidade de escolher durante as aulas de educação física entre uma dezena de esportes – da natação em piscina olímpica à esgrima e equitação -, que tínhamos aulas de química e física em laboratórios bem equipados, e que nossos professores tinham condições de trabalho muito melhores que em outros colégios públicos. Mas a qualidade da rede de colégios militares não acontece porque é gerida por militares. Acontece porque tem investimento adequado. Inclusive, nossos melhores professores eram, geralmente, aqueles concursados civis”, lembra. 

MEC e os atritos do jogo

“Estamos diante de um governo que tem na promoção da guerra cultural um objetivo prioritário de ação. A educação, junto com outros setores, foi absolutamente engolida por essa lógica”, afirma Olavo Nogueira Filho, diretor executivo do Todos Pela Educação, citando o livro Guerra cultural e retórica do ódio: um Brasil pós-político (ed. Caminhos) de João Cezar de Castro Rocha. “Sem essa guerra, o bolsonarismo não consegue manter seus fiéis mobilizados. Isso implica a negação de dados e da realidade, a busca constante e até a invenção de inimigos a serem combatidos, a violência retórica.”

Sob essa lógica, qualquer governo se torna ineficiente quando se trata da educação brasileira, que tem responsabilidades compartilhadas entre as esferas federal, estadual e municipal. Todo avanço na área depende de grande articulação, mas o que tem sido visto é o confronto. 

Talvez o melhor exemplo da guerra cultural na educação seja o Enem (Exame Nacional do Ensino Médio). Desde a campanha presidencial, Bolsonaro atacava o exame, dizendo que havia “questões esquisitas” e de “ativismo comportamental”. Quando foi eleito, mas ainda antes de tomar posse, criticou a prova durante live no Facebook. “Podem ter certeza e ficar tranquilos. Não vai ter questão desta forma ano que vem, porque nós vamos tomar conhecimento da prova antes. Não vai ter isso daí”, afirmou, referindo a uma questão sobre expressões da comunidade LGBTQIA+.”

Até onde se sabe, o presidente nunca chegou a ver a prova antes, mas disse em 2021 que o Enem começaria a ter a cara do governo. “A frase do Bolsonaro colocou a educação em alerta. Havia tentativas de censura e interferência nas provas, mas agora há uma sinalização de que, mais grave, há tentativa de uso do Enem para aparelhamento ideológico. O Enem é a principal porta de entrada do acesso ao ensino superior e deveria ser uma avaliação científica”, afirma Andressa Pellanda.

O Inep informou à reportagem que aplica, pelo segundo ano consecutivo, o questionário Resposta educacional à pandemia de covid-19 no Brasil. “O levantamento, feito pela primeira vez na edição de 2020, tem o objetivo de apurar informações sobre as estratégias de ensino e aprendizagem das escolas no contexto da pandemia durante o ano letivo de 2021.”

Nota: a repórter Luciana Alvarez entrou em contato com o Ministério da Educação, mas não obteve retorno.

Imagem: Latuff

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