Projeto que visa enfrentar o abuso do poder econômico nas redes – e obrigar gigantes da internet a revelar quem financia a desinformação – foi travado na Câmara. Em campanha truculenta, corporações tentam manipular o debate público
Por Renata Mielli*, em Outras Palavras
A campanha de terrorismo midiático realizada principalmente por Google e Facebook – somada à ação de bastidores junto aos deputados e deputadas nas últimas semanas contra o Projeto de Lei 2630, conhecido como PL das Fake News – resultou em não aprovação pelo plenário, neste 6 de abril, do requerimento de urgência para que o projeto entrasse na pauta da Câmara. Ainda funcionando em regime especial em função da covid-19, ele precisava que um pedido de urgência fosse aprovado.
O projeto dispõe sobre uma Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet e estrutura um elenco de obrigações, regras e mecanismos de governança para enfrentar o abuso do poder econômico nas redes. Isso permitiria aos cidadãos e aos órgãos públicos identificar conteúdos de publicidade e impulsionados, saber o montante e a origem de recursos usados – como, por exemplo, os usados para impulsionar conteúdos pregando o inexistente “tratamento precoce” contra a covid-19 que tantos prejuízos trouxeram (e ainda trazem) à Saúde. Ou seja, o projeto obriga as corporações de internet, que prestam serviços para centenas de milhões de brasileiros, a fornecerem informações para que a sociedade compreenda como as fake news circulam e são patrocinadas, o que é fundamental para adotar medidas para combatê-las.
Dedica uma seção inteira para elencar os Deveres de Transparências que os provedores de redes sociais, serviços de mensageria e ferramentas de busca devem observar no país. Apenas para citar algumas, apontaria a obrigação de transparência sobre a elaboração e aplicação dos termos e políticas de uso dessas empresas, divulgação de relatórios semestrais com informações sobre número total de usuários no Brasil, quais critérios são usados para remover conteúdos e contas, o volume total de medidas de moderação (exclusão, indisponibilização, redução de alcance, rotulação) de contas e conteúdos por motivação – termos de uso, decisões judiciais ou para fins de aplicação da lei, volume de decisões da plataforma que foram revertidas, características das equipes de moderação, como idioma de trabalho, indicativos de diversidade, nacionalidade e outros, isso para citar apenas uma parcela das obrigações de transparência.
Há, também, um conjunto robusto de regras de transparência sobre impulsionamentos, publicidades e também sobre como agentes públicos fazem uso de suas redes próprias e como o Estado direciona recursos de publicidade para contas em redes sociais.
Se o fenômeno da desinformação – e seu impacto atual – está relacionado às dinâmicas de circulação da informação no interior das plataformas, se elas ganham alcance e velocidade graças aos fatores de relevância considerados pelos algoritmos e pela soma de recursos aplicadas em impulsionamento e publicidade, ter mais transparência sobre a operação dessas empresas é estratégico para enfrentar as fake news.
O projeto 2630 está em debate na Câmara desde agosto de 2020. Ao longo desses quase dois anos de debate, foram organizados por iniciativa do atual relator, o deputado federal Orlando Silva (PCdoB/SP), e dois seminários com a participação de centenas de especialistas. Organizações da sociedade civil, entidades acadêmicas e empresariais também realizaram inúmeros eventos sobre o PL e, ao longo desse período, o tema foi tratado na mídia especializada e em veículos jornalísticos. Houve, portanto, um amplo debate que resultou num aprofundamento de muitos dispositivos e amadurecimento do que é a espinha dorsal do projeto. A ofensiva atual das Big Techs nesta reta final é justamente uma reação a isso.
Terrorismo midiático das Big Techs contra o projeto
Com medo da regulação, as plataformas como Google, Youtube, Facebook e outras iniciaram uma campanha de vale tudo para tentar colocar a sociedade contra o PL 2630 – e a possível criação de dispositivos para regulá-las.
Em 3/3 deste ano, o Facebook veiculou propaganda em jornais de grande circulação nacional com o título: “O PL das Fake News deveria combater Fake News. E não a lanchonete do seu bairro”. No dia 11, foi a vez do Google soltar nota dizendo que, caso aprovado, o PL modificaria “a internet como você conhece”. No dia 14, o Google também colocou em sua página inicial um link para a nota, de forma que todos os usuários que fizeram uma busca neste dia entraram em contato com a visão alarmista da empresa sobre o projeto. Além disso, a corporação estadunidense circulou publicidades em outras plataformas com essa mesma retórica do medo, um mecanismo largamente usado para estruturar conteúdos de desinformação e manipular a opinião pública.
Na semana de votação da urgência, de novo o Google usou sua home para fazer campanha contra o PL. Os milhões de brasileiros que acessaram o site Google Brasil se depararam com link que os redirecionavam para um texto com o seguinte título: “Saiba como o projeto de lei 2630 pode obrigar o Google a financiar notícias falsas” (Leia o teor da “campanha” aqui). No blog brasileiro da corporação, estava um artigo assinado pelo seu presidente, Fábio Coelho, argumentando que o PL “pode acabar promovendo [sic] mais notícias falsas no Brasil, e não menos”. Todo o projeto era criticado, em particular o artigo 38 que obrigaria as plataformas a remunerarem as empresas jornalísticas pelo uso de seus conteúdos.
O fenômeno da desinformação – e seu impacto atual – está relacionado às dinâmicas de circulação da informação no interior das plataformas: elas ganham alcance e velocidade graças aos fatores de relevância considerados pelos algoritmos e pela soma de recursos aplicadas em impulsionamento e publicidade. Portanto, o Google, por exemplo, não precisa de lei nenhuma para “financiar notícias falsas”, pois já é um dos maiores disseminadores e financiadores da desinformação através de anúncios do Google Adsense e dos seus mecanismos de indexação de buscas. Mas, quanto a esse fato, não há sequer uma linha no texto do presidente do Google Brasil.
Anúncios via Google Adsense, o pote de ouro da desinformação
O modelo de negócios das Big Techs – e particularmente das plataformas da empresa Alphabet – holding estadunidense que é a dona do Google – baseia-se na escala gerada por viralização orgânica ou patrocinada, determinada por palavras chaves, que alimentam um sistema online de leilões de publicidade. O objetivo: direcionar conteúdos de forma segmentada, com base no perfil de cada usuário, e maximizar a monetização da plataforma e do canal/página que recebe o anúncio.
Esse mecanismo gera distorções no debate público, pois favorece sites e páginas que publicam seus materiais a partir da busca de cliques, usando manchetes, fotos, leads e recursos chamativos que abusam de elementos morais/emocionais. Busca-se, assim, capturar a atenção do internauta por meio do choque e do reflexo – e, logo, gerar um clique, um compartilhamento ou uma reação ao conteúdo.
Dessa forma, o Google – através de seus anúncios publicitários via o sistema Google Adsense – despeja milhões de reais em sites como Terça Livre (suspenso pela Justiça brasileira), Jornal da Cidade Online e muitos outros. Além disso, existem estratégias de publicação de conteúdos que modulam os mecanismos de funcionamento de seus algoritmos de indexação dos resultados de busca, definidos pelo Search Engine Optimization (SEO), para beneficiar a disseminação da desinformação. Isso sem falar dos algoritmos de recomendação de vídeo no caso do YouTube.
A pesquisa Follow the Money: How the Online Advertising Ecosystem Funds COVID-19 Junk News and Disinformation [“Siga o dinheiro: como o ecossistema de publicidade online financia as notícias-lixo e a desinformação sobre a covid-19”], publicada em 2020 pela Universidade de Oxford [1], mostra como o sistema de publicidade e de indexação do Google gerou receita para sites que propagavam a desinformação sobre a pandemia, dando mais visibilidade a estes conteúdos. “A plataforma de publicidade mais popular em ambos os conjuntos (jornalismo profissional e conteúdo tóxico e de desinformação) foi o Google. Mais da metade dos anúncios […] são fornecidos pelo Google: 59% dos domínios de notícias profissionais e 61% dos domínios de notícias tóxicas e desinformação usaram anúncios do Google”.
No Brasil, o Google tem gerado receita para os sites de desinformação através do Google Adsense e também intermediando as receitas de publicidade do governo. Reportagem de agosto de 2020, publicada pelo The Intercept Brasil, mostra como o governo Bolsonaro entregou mais de R$ 11 milhões em verbas públicas de publicidade para que o Google a transformasse em anúncios que foram direcionados para sites de extrema direita e que propagavam desinformação. Parte considerável desse dinheiro – até 68%, segundo o próprio Google – vai para o bolso dos editores desses sites via sistema AdSense.
“A CPMI [Comissão Parlamentar Mista de Inquérito] das Fake News já identificou dois milhões de anúncios publicitários do governo que foram parar em site de ‘conteúdo inadequado’ por meio do AdSense. Dezenas de sites de fake news foram beneficiados com esse dinheiro”, denuncia a reportagem. Essa mesma CPMI também apontou que, entre os que receberam recursos de publicidade com anúncios do governo federal feitos pelos Adsense, estava o Terça Livre, canal no Youtube do blogueiro Allan dos Santos, atualmente foragido da justiça brasileira. Outra reportagem, da agência de checagem Aos Fatos, mostrou como alguns sites como esse lucraram com desinformação durante a pandemia.
Em face disso tudo, o fato é gravíssimo: o Google usa o seu poder econômico – e dominância de mercado – para publicar anúncios em jornais de todo o Brasil e estampar sua home com desinformação sobre o PL 2630 e, assim, tentar interferir no debate regulatório brasileiro.
Mas e o PL 2630 e seu artigo 38?
O artigo 38 do PL das Fake News tem sido um dos mais polêmicos desde que apareceu pela primeira vez em uma das versões do relatório do deputado Orlando Silva. O propósito do dispositivo, de acordo com o parlamentar, é exatamente o de fortalecer o jornalismo e valorizar o conteúdo jornalístico, numa perspectiva de que a melhor maneira de combater a desinformação é oferecer para a sociedade mais informação de qualidade.
Austrália, Espanha, França, Canadá e outros países vêm criando dispositivos legais semelhantes para que as plataformas digitais remunerem o jornalismo. O debate é fundamental, uma vez que o modelo de publicidade que financiava a mídia antes do advento das corporações de internet foi impactado: os anunciantes migraram massivamente para as Big Techs. É fundamental, portanto, reequilibrar essa assimetria de mercado para valorizar a produção de conteúdo jornalístico.
Então, qual a polêmica em torno do artigo? A questão é que no Brasil não existe uma regulamentação da atividade jornalística e, sem uma definição do que é um veículo jornalístico ou um conteúdo jornalístico, a aplicação desse dispositivo, além de bastante frágil, pode trazer mais concentração de mercado, remunerando apenas os grandes e tradicionais meios de comunicação como Globo, Record, SBT, Folha de São Paulo, O Globo, Estadão etc – e prejudicando todo um conjunto de veículos pequenos e médios, nativos digitais ou não.
Além disso, detalhes necessários – como será o processo de remuneração? Como garantir que não só a empresa, mas o jornalista autor do conteúdo seja remunerado? Como trazer transparência para impedir as assimetrias citadas acima?, por exemplo – não são possíveis de serem feitos dentro de um projeto de lei, cujo escopo já é por si só complexo e não tem o objetivo de tratar de forma específica sobre essas questões.
Mas, é importante reconhecer que a nova versão do relatório, apresentada nesta semana pelo deputado, incorporou novos incisos para detalhar um pouco mais o artigo, trazendo salvaguardas para deixar mais explícito o seu objetivo. Todas as questões que geravam certa insegurança quanto a esse artigo foram resolvidas, não. Mas, ao contrário do que sugeria o lobby da Big Tech, não há nada no artigo que vá obrigar plataformas como o Google a financiarem sites de desinformação. Esse é um argumento de má fé, construído para colocar a sociedade contra o projeto e tirar o foco do motivo real pelo qual Google & Cia tentam sabotar a aprovação do PL: impedir que o Brasil, como poucos países já o fizeram, avance na criação de mecanismo de transparência para as atividades dessas corporações de internet, e tantos outros comandos que podem, ainda que de forma muito inicial, impor regras e acabar com a discricionariedade e a falta de compromisso com o interesse público que elas demonstrar nutrir.
[1] Pequisa publicada pelo The Computational Propaganda Project (COMPROP), which is based at the Oxford Internet Institute, University of Oxford
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Imagem: Fanatic Studio/Getty Images
*Jornalista, coordenadora do Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé, doutoranda em Ciências da Comunicação pela ECA-USP e integrante da Coalizão Direitos na Rede.