Isolado, depois capturado e marginalizado, agora povo Ãwa avança na demarcação de sua terra

Também chamados de Avá-canoeiro do Araguaia, os 36 sobreviventes do genocídio lutam para voltar ao seu território

Por Gabriela Moncau, no Brasil de Fato

Cumprindo, até o momento, a promessa de campanha de “não demarcar nenhum centímetro de terra indígena”, o governo Bolsonaro vem sendo alvo de ações judiciais para que o Estado cumpra o dever constitucional de demarcar territórios dos povos originários. Um dos mais avançados é o caso da Terra Indígena (TI) Taego Ãwa, do povo Ãwa – ou, como também é chamado – Avá-canoeiro do Araguaia. 

Localizada na região da Mata Azul, no município de Formoso do Araguaia (TO), a área tem cerca de 28 mil hectares. Com extensa documentação provando ser de ocupação tradicional do povo Ãwa, ela está sobreposta por fazendas e um assentamento da reforma agrária. 

Conhecidos na literatura como um povo que historicamente preferiu a morte a se render e estabelecer contato com os colonizadores, os Ãwa resistiram isolados até a década de 1970. Depois de um forçado e violento contato, chegaram a cinco pessoas em 1976. Atualmente, são 36.  

Na última semana, o Ministério Público Federal (MPF) e o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) fizeram a mais recente manifestação no processo, indicando a negativa dos Avá-canoeiro diante de uma proposta de negociação apresentada pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) de reduzir a TI a 40% da área reconhecida. O MPF e o Cimi solicitaram que o juiz federal Eduardo Ribeiro dê, finalmente, a sentença sobre o caso.  

A demarcação 

O processo já se arrasta há dez anos. Em 2012, a Fundação Nacional do Índio (Funai) publicou a portaria de delimitação da TI Taego Ãwa e, em 2016, o Ministério da Justiça publicou a portaria declaratória. Diante da inação do Estado depois disso, o MPF entrou, em 2018, com uma Ação Civil Pública pela demarcação, acatada pela justiça.  

Com a pressão do MPF, a Funai, que sob a gestão do governo Bolsonaro vem sendo alvo de sistemáticas críticas do movimento indígena, fez o levantamento fundiário da área.  

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No ano passado, os advogados dos fazendeiros e posseiros questionaram o relatório antropológico e solicitaram uma perícia. O resultado dela, apresentado em novembro de 2021, no entanto, não deixou dúvidas.  

A conclusão do perito designado pelo juiz, o antropólogo André Demarchi, é de que “a única forma do Estado brasileiro reparar mais de três séculos de violências físicas, psíquicas e simbólicas para com o povo Ãwa é demarcando a Terra Indígena Tãego Ãwa, cuja tradicionalidade resta comprovada”. 

No último 3 de março, houve uma audiência de conciliação do processo em Gurupi (TO). Nela, uma proposta foi apresentada pelo Incra. O órgão é responsável por ter comprado, nos anos 1990, a área de uma fazenda localizada na terra tradicional indígena, e ali assentado 120 famílias. Basicamente, o Estado brasileiro comprou uma terra que já era do Estado brasileiro para estabelecer, em território indígena, famílias que estavam sendo retiradas de outro território indígena. 

Para resolver o imbróglio, a solução proposta pelo Incra na audiência, conta Kamutaja Silva Ãwa, “foi que as fazendas e o assentamento continuem e a gente fique com um pedaço que eles chamaram de reserva. É um pedaço que ninguém mora, porque é inundável”.  

Ao se inteirar da proposta, a antropóloga que trabalhou no Grupo Técnico (GT) de identificação da área, Patrícia Mendonça, disse ter ficado chocada. “Nessa parte inundável eles não teriam nem onde enterrar os mortos. Na legislação indigenista não cabe esse tipo de conciliação. É terra indígena: direito imprescritível, inalienável, originário”, aponta.  

No mesmo sentido, Kamutaja é categórica: “Nossa terra não é negociável”.  

“Antropólogo dos ruralistas” 

Um dos envolvidos na parte representada pelos fazendeiros é Edward Luz, conhecido como “antropólogo dos ruralistas”. Ele chegou a apresentar um contra laudo pericial para obstaculizar a demarcação.  

Em 2013 Luz foi expulso da Associação Brasileira de Antropologia (ABA), por suas afirmações “equivocadas e reducionistas, inteiramente desprovidas de rigor e embasamento científico”.  

No último 25 de março, Luz foi detido pela Polícia Federal em Altamira (PA), acusado de liderar um grupo de pessoas para obstruir ações fiscalizatórias do Ibama contra o garimpo ilegal em terras indígenas. 

“Cativos de guerra” 

Na espera de realizar o sonho do retorno à sua terra ancestral, atualmente os Ãwa habitam as aldeias Boto Velho e Canuanã, do povo Javaé; e Santa Isabel, do povo Karajá. 

Foi durante o mestrado e doutorado com os Javaé nos anos 1990 que Patrícia Mendonça conheceu os Avá-canoeiro, descritos por ela como o povo “mais invisibilizado” que havia visto. Desde 1976 eles vivem na terra de povos com quem têm inimizade histórica: foram colocados ali, sem consentimento, pela Funai. 

“De lá para cá a gente perdeu nossa visibilidade como povo. Em questão de política, saúde, educação. Fomos privados de fazer nossas práticas culturais, também não era permitido fazer roça ou criar alguma coisa, porque a gente não é Javaé”, descreve Kamutaja, filha de Kawkamy e de Gildo Tuxá. 

Mendonça caracteriza a situação como de subordinação e marginalização. “Os Avá-canoeiro foram incorporados dessa forma, sem serem considerados como iguais. Tem até um termo na língua Javaé: cativos de guerra”.  

Resistência histórica ao extermínio 

Séculos de perseguição antecederam esse cenário. Os primeiros registros dos Avá-canoeiro remontam a meados do século 18, nos formadores do rio Tocantins.  

A opção que deu a eles a fama de serem os que mais resistiram à colonização no Brasil Central lhes rendeu também uma história marcada por períodos em que quase foram dizimados. No século 19, os sobreviventes tiveram que se dispersar.  

“Os não indígenas nos deram a característica de nômades. Meu povo não é nômade. O que aconteceu é que para poder sobreviver, o povo começou a fazer mudanças constantes. Eu faço parte do grupo que veio rumo ao Araguaia, faço parte da família de Tutawa, que é meu avô”, relata Kamutaja. 

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Depois de fugas e massacres, nos anos 1960 eram 14 Ãwa que viviam na região da Mata Azul. Estavam a apenas 10 quilômetros da Fazenda Canuanã, que se estabeleceu ali na década anterior e, em 1960, passou para as mãos dos Pazzanese, uma rica família paulistana.  

“Todo mundo tinha medo dos Avá, mas eles estavam extremamente acuados. Não saíam mais de dia, se comunicavam só por assobio, não acendiam fogo. Estavam há anos nessa vida de fuga absurda, sendo caçados como animais selvagens”, narra Mendonça. Em entrevistas com indígenas que viveram esse período (atualmente apenas uma segue viva), a antropóloga colheu descrições detalhadas da história. 

Foi quando se firmou uma parceria dos irmãos Pazzanese para instalar a Fundação Bradesco na Fazenda Canuanã que, em 1973, os Ãwa não puderam evitar ser incorporados à força pela sociedade branca. 

“O Estado brasileiro representado pela Funai fez um contato forçado para interesses privados”, sintetiza Kamutaja.  

Mãe de Kamutaja, a então menina Kaukamy, filha de Tutawa e Taego em 1973, na Fazenda Canuanã logo após a captura / Klaus Gunther

 O contato forçado e a captura 

Se não o tivesse feito, talvez os Avá-canoeiro integrassem os 28 grupos confirmados no Brasil que são chamados pelo Estado de indígenas isolados. São aqueles que, refugiados em áreas remotas, optam por não ter contato regular ou significativo com a sociedade dos colonizadores.  

Referidos também como “autônomos”, “resistentes”, “livres”, “ocultos” ou “em isolamento voluntário”, o maior número desses indígenas no planeta está na Amazônia brasileira.  

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O contato forçado com esses povos foi especialmente impulsionado durante os governos militares. Era chamado de “atração”. Apesar de os Ãwa, de longe, não terem sido atraídos. 

Em novembro de 1973, sob comando do sertanista Apoena Meireles, a Frente de Atração da Funai, acompanhada de quatro índios Xavante, localizou o acampamento dos Ãwa e entrou atirando. Uma criança de cerca de 10 anos foi baleada e morreu dias depois. Parte do grupo conseguiu fugir, outros foram capturados e amarrados.  

O líder e pajé Tutawa, avô de Kamutaja, ao ver a esposa com o filho pequeno sob o poder dos indigenistas, se entregou. “Minha mãe tinha uns 10 ou 12 anos. Tinha se escondido num toco. Quando viu os que se entregaram, foi também. Assim como meu tio-avô Tuxi”, conta Kamutaja.   

“Eles foram levados para a Fazenda Canuanã e foram postos em exibição, numa casa cercada. Vieram muitas pessoas da região conhecer os ‘temidos caras pretas’”, relata Kamutaja, se referindo a um dos apelidos dados regionalmente aos Ãwa.  

“Meu povo era tratado com muita hostilidade e preconceito. Diziam que pegavam crianças, roubavam mulheres, matavam pessoas. Era uma forma de tentar colocar a sociedade contra os povos indígenas”, diz.  

“Os agentes públicos que haviam caçado, capturado, amarrado e aprisionado os índios em uma espécie de jaula a céu aberto foram associados pelos espectadores presentes a domadores de animais”, descreve Patricia Mendonça no verbete sobre os Avá-canoeiro do Instituto Socioambiental (ISA). Nele, ela cita uma matéria publicada no Globo, de dezembro de 1973, em que se usa justamente o termo “domados”.  

A exibição pública a que os Avá-Canoeiro do Araguaia recém capturados foram submetidos, em 1973 / Klaus Gunther

“Eram 14 avá-canoeiro que viviam na Mata Azul. Três foram assassinados antes da captura, uma foi morta na captura. Dos 10 capturados, cinco morreram de doenças. Os cinco que restaram foram incorporados pelos Javaé como cativos de guerra”, expõe a antropóloga.  Entre as violências praticadas pelo regime militar contra a população indígena, a história do povo Ãwa foi considerada emblemática no relatório da Comissão Nacional da Verdade

“Esperança como povo” 

Na perícia antropológica da TI Taego Ãwa, o professor da Universidade Federal do Tocantins (UFT) André Demarchi salienta como, apesar da dramática história dos Avá-canoeiro desde o início da colonização, eles têm “lutado contra a desumanização por meio da reafirmação de sua identidade cultural nos espaços em que habitam e circulam”. Exemplo disso são os projetos de revitalização da língua Ãwa, do grande tronco linguístico Tupi, em parceria com a Universidade Federal de Goiás (UFG).

Mas mais que isso, as histórias, tradições, visões cosmológicas e espirituais Ãwa não deixaram de ser passadas de geração em geração, mesmo entre os poucos sobreviventes do genocídio. Kamutaja, que carrega o nome de sua bisavó, conta como sua família usa constantemente as pinturas corporais específicas do povo Ãwa, ensinadas a ela por Tutawa.  

O líder e pajé Tutawa, fotografado em 1973 / Klaus Gunther

“Meu avô ficou bastante feliz com a esperança de voltar para o território. O processo de identificação trouxe esperança para a gente como um povo”, diz Kamutaja.  

Tutawa faleceu em 2015. Mas foi graças à sua resistência que depois de séculos – e mesmo sob o governo de um presidente que chegou a ser denunciado no Tribunal Internacional de Haia por genocídio indígena – seu povo está cada vez mais perto de voltar para casa. 

Edição: Daniel Lamir

Cena do documentário Taego Ãwa, dirigido por Henrique Borela e Marcela Borela, lançado em 2017 – Vinicius Berger / Divulgação / Vitrine Filmes

 

Comments (1)

  1. Poxa, que narrativa desta desumanidade ferrenha contra este belo Povo Avá Canoeiro… Crueldades e mais crueldades… O reconhecimento deste Território para os atuais Ãwa não mais do que um obrigação, um dever, uma imediata e necessária demonstração de pedidos de desculpas do Governo e Sociedade Brasileira, ao Belo Povo de Kamutaja… parabéns a Dra. Patrícia Mendonça, Procuradores e a esta Reportagem muito bem feita…

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