De um total de 1.098 amostras coletadas em 138 municípios, ou seja, 10% de nove estados do Semiárido, foram identificados transgênicos em 34% das amostras; resultado representa vulnerabilidade das espécies e ameaça à biodiversidade e à segurança alimentar
Por Adriana Amâncio, na ASA Brasil
A presença de genes transgênicos, ou seja, geneticamente modificados, nas sementes de milho crioulo do Semiárido é significativa. De um total de 1.098 amostras coletadas em 138 municípios de nove estados, o que corresponde a 10% dos estados da região, foram encontrados transgênicos em 34%. Na prática, isso significa que quase quatro de cada dez sementes analisadas estavam geneticamente alteradas, o que representa mais de um terço da amostra total.
Os dados são de uma pesquisa realizada pela Embrapa em parceria com a Articulação Semiárido Brasileiro (ASA), entre os anos de 2018 e 2021. O estudo, realizado nos nove estados do Nordeste que compõem o Semiárido, foi publicado na revista internacional Plants, especializada em efeitos não intencionais das tecnologias genéticas.
O resultado indica uma grave ameaça à biodiversidade, que garante uma diversidade de espécies adaptadas à cada região, permitindo que estas sejam resilientes aos predadores e aos efeitos das mudanças climáticas. “A gente tem milho branco, milho vermelho, alguns são bons para alimentar os animais, outros para canjica/curau, milho não é uma coisa só. O Brasil tem uma grande biodiversidade e essa contaminação por transgênicos põe em risco esse patrimônio.
As sementes crioulas são adaptadas às características de cada localidade e são mais diversas geneticamente, por isso, são mais resilientes aos efeitos das mudanças climáticas. Então essa contaminação por genes transgênicos, que ameaça essa biodiversidade, é também uma ameaça à soberania e à segurança alimentar”, explica a Engenheira Agrícola e Ambiental, que integrou a equipe técnica da ASA, Maitê Maronhas.
No Brasil, segundo a pesquisa, há , no mínimo, 23 raças de milho, que reúnem centenas de variedades crioulas. Segundo a pesquisa, foram identificadas até sete diferentes proteínas geneticamente modificadas na mesma amostra. Tornando-se padronizadas geneticamente, as espécies se atacadas por insetos ou afetadas por grandes secas ou enchentes, por exemplo, podem ser mais facilmente exterminadas.
O resultado disso é a perda da capacidade de produção alimentar. Um bom exemplo desse fenômeno é a Fome da Batata da Irlanda, ocorrida em 1845. Cultivadas como clones, essas espécies eram geneticamente iguais. Ao sofrer um ataque em larga escala de um fungo, o cultivo do legume em toda a Europa foi comprometido, provocando fome, doenças e emigração em massa.
O avanço da transgenia junto ao milho crioulo também deve afetar o agronegócio. Para se tornar mais eficiente, o setor busca nas sementes crioulas características diversas para melhoramento das sementes comerciais. Se as espécies se tornarem semelhantes, as características diversas, que permitem criar espécies mais fortes, irão se perder.
Para muitas famílias agricultoras do Semiárido, a presença de componentes transgênicos no milho crioulo é desconhecida. “Agricultoras e agricultores camponeses, povos e comunidades tradicionais, não têm acesso a recursos para fiscalizar a presença de contaminação por transgênicos em seus cultivos e o Estado brasileiro também não oferece mecanismos para a realização desta fiscalização”, observa Maitê.
A pesquisa foi realizada com base em testes imunocromatográficos, que possuem maior taxa de sensibilidade e oferecem o resultado na hora. Para evitar a proliferação dos componentes transgênicos no milho crioulo, uma das soluções apontadas pelo estudo é dar prioridade ao cultivo de sementes do milho crioulo em áreas cuidadosamente protegidas, evitando o contato com outras espécies geneticamente modificadas.
Com a extinção da modalidade PAA Sementes, após a criação do Programa Alimenta Brasil, que substituiu o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), as famílias que produziam sementes crioulas para comercializar junto ao governo já não poderão mais fazê-lo. Além disso, as sementes crioulas, antes adquiridas através do PAA, não serão mais distribuídas pelo Governo Federal, o que pode potencializar a disseminação do milho transgênico no Semiárido.
No próprio Semiárido, algumas iniciativas empregadas pelas famílias agricultoras guardiãs de sementes têm contribuído com o resgate e a conservação das espécies crioulas. Essas iniciativas estão organizadas em cultivos livres de transgênicos, bancos e casas de sementes, que abrigam espécies adaptadas melhoradas centenáriamente e guardadas nas comunidades.
Essas iniciativas deram origem ao Programa de Formação e Mobilização Social para a Convivência com o Semiárido: Manejo da Agrobiodiversidade – Sementes do Semiárido, criado pela ASA, em 2015, com o objetivo de incentivar o resgate e a conservação de sementes crioulas através de casas comunitárias de sementes e da organização de rede. O projeto também teve atuação nos demais 8 estados do Semiárido brasileiro, deixando como legado uma rede de mais de 1000 casas e bancos comunitários.
No estado da Paraíba, por exemplo, o projeto fortaleceu a Rede de Sementes do Polo da Borborema, composta por cerca de 60 bancos comunitários de sementes. Esta rede criou estratégias comunitárias coletivas de proteção do milho crioulo, vinculadas aos bancos de sementes.
Outra iniciativa para evitar a disseminação do milho transgênico nas comunidades foi a campanha “Não Planto Transgênicos para não apagar a minha história”. A ação consiste em monitorar as sementes que chegam à comunidade, vindas de outras fontes, e oferecer espécies crioulas em troca, após realizar uma sensibilização do agricultor sobre a importância de preservar as sementes crioulas. “A campanha levou ao reconhecimento de três comunidades livres de sementes geneticamente modificadas, os assentamentos Oziel Pereira e Irmã Doroty, e a comunidade Lagoa do Jogo”, orgulha-se Euzébio Cavalcanti, coordenador da Rede de Sementes da Paixão do Pólo da Borborema, no semiárido paraibano.
Ainda no Semiárido, vem germinando uma semente que deve dá origem a uma Política Nacional de Preservação do Milho Crioulo no âmbito do Programa Inova Social, um projeto que conta com a participação da ASA e é desenvolvido pela Embrapa, com financiamento do Banco Nacional de Desenvolvimento Social (BNDES) e apoio da Fundação Eliseu Alves.
Na etapa atual, o Inova traz um componente específico de proteção do milho crioulo no Semiárido. “É uma experiência piloto, que abre caminho para essa experiência mais ampla de criação de um Programa Nacional de Proteção do Milho Crioulo.”, explica o agrônomo e membro da ASA, Luciano Silveira.
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Foto: Giorgia Prates.