Por que defender a quebra de patentes na OMC

Iniciativa orquestrada pela África do Sul e Índia, que sofre forte resistência dos países ricos e da indústria, deve ir além da covid. Poderá garantir que o Sul global tenha autonomia para produzir fármacos e não depender da benevolência do Norte

Por Gabriela Leite, em Outra Saúde

Desde 2020 está em debate, na Organização Mundial do Comércio (OMC), um acordo de suspensão de direitos de propriedade intelectual sobre medicamentos e vacinas que ajudam no tratamento da pandemia de covid. A quebra de patentes seria crucial para países de renda média e baixa enfrentarem a crise sanitária. Outra Saúde acompanha o debate ao longo dos últimos meses, com destaque para o último fato importante: um vazamento do rascunho de um documento que selaria um acordo considerado muito insuficiente. A OMC funciona por consenso, e o processo vem se arrastando por tanto tempo que pode chegar tarde demais. Mas duas matérias recentes mostram que é preciso insistir nessa batalha.

Em uma entrevista publicada no site da Fundação Medico International, a professora da Universidade da Cidade do Cabo, na África do Sul, e integrante do Peoples’ Health Movement, Lauren Paremoer, discorre sobre a importância de um acordo que favoreça a quebra de patentes. Segundo sua análise, a nova versão parece ter sido criada a partir de uma combinação das posições dos Estados Unidos e da União Europeia: a concessão da quebra de patentes apenas para vacinas e a flexibilização de poucas restrições de importação. Não sobrou muito da ideia inicial proposta pela África do Sul e Índia, que incluía a liberação de direitos autorais, desenhos industriais e segredos comerciais para medicamentos e testagem, além dos imunizantes. De outro modo, o acordo apenas criaria mais uma camada de qualificação em termos de quem é elegível para quebrar patentes – dificultando o processo.

“Uma vacina tem patentes em diferentes subcomponentes e pode ser posta não apenas na substância, mas no processo. Então, por exemplo, quando há uma patente sobre métodos para produzir uma vacina de mRNA, isso pode ser aplicado a qualquer vacina de mRNA. Se alguém desenvolver uma vacina contra a tuberculose ou uma vacina contra o HIV usando essa tecnologia, isso pode se tornar um conflito legal”, explica Lauren. Segundo ela, a solução da Covax, iniciativa da Organização Mundial da Saúde (OMS) que organizou países europeus para doarem vacinas à África, foi bastante frustrante. “Definitivamente há um sentimento de desilusão nas tentativas de forjar solidariedade por meio desses mecanismos multilaterais, no sentido de que a Covax, em particular, falhou. Talvez seja por isso que tem havido tanta ênfase na transferência de tecnologia.”

“Um problema maior e mais sistêmico”, continua Lauren, “é se isso se tornar o precedente para todas as futuras pandemias. Muitos estados e movimentos sociais pediram uma disposição de que os Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (Trips) sejam automaticamente suspensos durante emergências de saúde pública de interesse internacional, o que seria uma intervenção muito mais ampla”. 

O especialista em saúde pública e direitos de propriedade, o catalão Jaume Vidal, concorda com esse ponto de vista, em artigo publicado no site da Fundação Rosa Luxemburgo. Mas ele vê, na iniciativa articulada pela África do Sul e Índia na OMC, um fato muito importante. E tem esperança de que seja o começo de uma mudança: “Ao obter o apoio de outros governos e da sociedade civil organizada, os esforços de mobilização e divulgação dos últimos 17 meses cimentaram, na opinião pública, partidos políticos e outras partes interessadas, a noção de que há uma profunda necessidade de uma grande revisão de como o acesso às tecnologias de saúde é gerida e moldada. Uma conversa e discussão que continuará por muito tempo depois que a pandemia for declarada encerrada”.

Jaume finaliza: “Embora as discussões sobre a isenção do Trips possam ter mostrado os limites da diplomacia e o declínio do apelo do multilateralismo, também oferecem um exemplo valioso de como uma coalizão de governos, sociedade civil e cidadãos trabalhou em conjunto para uma resposta à crise guiada por uma bússola moral e não lucros econômicos de curto prazo ou ganhos políticos. Não foi a primeira vez e certamente não será a última”.

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