Empresa aérea suspeita de prestar serviço a garimpos tem contrato com a Funai

Investigação do MPF mostra que Piquiatuba Táxi Aéreo fez ao menos 182 voos em área de exploração ilegal na Amazônia; advogado nega irregularidades

Por Bruno Abbud, em O Globo 

Fundada por um empresário acusado de ser dono de garimpos no Pará, a Piquiatuba Táxi Aéreo assinou contratos com o governo federal que, somados, chegam a R$ 16,1 milhões. Um deles foi firmado com a Fundação Nacional do Índio (Funai) para levar agentes do órgão e insumos como medicamentos a territórios indígenas. Ao mesmo tempo, segundo o Ministério Público Federal, aviões da empresa também são usados para transportar garimpeiros e alimentos a áreas de exploração ilegais encravadas na floresta amazônica.

A Funai contratou por meio milhão de reais os serviços da Piquiatuba em julho do ano passado. O acordo prevê o uso de até 100 horas de voo em dois aviões, um com nove lugares e outro com cinco, para atender às demandas de transporte aéreo da Coordenação da Frente de Proteção Etnoambiental Cuminapanema, no norte do Pará. O órgão é responsável por fiscalizar a mesma área onde fica o garimpo do Limão, cujo ouro, segundo o Ministério Público Federal do Pará, foi explorado ilegalmente pelo fundador da Piquiatuba, o empresário Armando Amâncio da Silva. Uma investigação apontou que aeronaves da empresa realizaram ao menos 182 voos entre 2015 e 2018 à região.

Amâncio morreu em 2020, em decorrência de um câncer, dias depois de uma operação da Polícia Federal ter apreendido 44 quilos de ouro em um cofre em sua casa, em Santarém (PA). O material foi avaliado em quase R$ 15 milhões.

De acordo com a PF, as barras de ouro seriam provenientes de garimpos ilegais abertos dentro da Reserva Biológica Maicuru, no Pará, de onde, segundo as investigações, Amâncio extraiu a fortuna que o alçou como empreendedor do ramo da aviação. Depois da morte do empresário, seus filhos herdaram o comando da Piquiatuba.

Procurado, o advogado Paulo Emílio Catta Preta, que defende os donos da empresa, nega que a Piquiatuba preste serviços de apoio logístico a garimpeiros e afirma que as aeronaves são utilizadas exclusivamente para o transporte de pacientes e de servidores da Funai.

Durante uma investigação aberta pela Funai, em conjunto com o Exército, indígenas disseram ter reconhecido um avião da empresa de táxi aéreo como sendo o mesmo usado por garimpeiros que exploram as regiões dos rios Mucajaí e Couto Magalhães, que atravessam o território Ianomâmi, em Roraima. Segundo relatório do caso, ao qual o GLOBO teve acesso, em agosto de 2019 um avião da Piquiatuba aterrissou na aldeia Sikamabiú enquanto militares interrogavam mulheres da comunidade.

“Pousou hoje, por volta de 10:00h um avião do tipo PT contratado da SESAI, para trazer e levar pessoal e material. Nos foi informado que esta empresa de transporte aéreo é nova (foi contratada recentemente) e a comunidade indígena de Sikamabiú afirma que esta mesma empresa faz transporte logístico para os garimpos da região. A aeronave foi identificada com o prefixo: PR-BAP, de cores branca e azul. O nome da empresa é ‘Piquiatuba'”, descrevem os servidores num trecho do relatório.

Questionado pelo GLOBO, o Ministério da Justiça, pasta à qual a Funai está vinculada, afirmou que antes da contratação da Piquiatuba Taxi Aéreo “foram consultadas todas as certidões públicas vinculadas à empresa” e que as buscas não incluíram pesquisa sobre os sócios, “o que inviabiliza a informação a respeito da investigação dos empresários”. “Não compete ao órgão a realização de investigações criminais de empresários supostamente vinculados às empresas contratadas pela Administração Pública”, diz a nota.

Com uma frota de 17 aeronaves e lucro de R$ 1,2 milhão, a Piquiatuba firmou também seis contratos com a Secretaria Especial de Saúde Indígena do Ministério da Saúde (Sesai) — cinco dos quais por meio de dispensa de licitação justificada pela pandemia de Covid-19. Entre março de 2019 e fevereiro deste ano, o órgão do governo federal utilizou aviões da empresa para transportar insumos, servidores, pacientes e “cargas perigosas” a comunidades indígenas de Roraima, Amazonas e Amapá.

O maior dos contratos, assinado em agosto de 2019, vigorou por seis meses e previu o pagamento de R$ 8,6 milhões à empresa para atender o Distrito Sanitário Especial Indígena Yanomami (DSEI-Y), em Roraima. No trajeto para as aldeias há vários garimpos, principalmente ao longo do rio Mucajaí.

Procurado, o Ministério da Saúde informou que, no momento da assinatura do contrato, a Piquiatuba “cumpria todos os requisitos legais”. “Para garantir a assistência prestada aos povos indígenas, em decorrência da urgência da contratação e relevância da ação, a empresa apresentava todos os ditames legais.”, afirma.

Perdido na selva

Ex-funcionário da Piquiatuba, o piloto Antônio de Sena passou 36 dias na selva amazônica após um acidente aéreo no início do ano passado. Na época, em depoimento à PF, ele admitiu ter feito um pouso forçado ao tentar transportar 600 litros de óleo diesel para um garimpo localizado em uma área do Pará.

Depois do episódio, ele escreveu um livro sobre a experiência na floresta e traduziu a publicação para o francês. Com 44,5 mil seguidores no Instagram e autor de palestras, hoje ele nega relações com o garimpo.

– Trabalhei na Piquiatuba por quatro anos, até 2016. Conheço os filhos do Seu Armando [Amâncio da Silva], conheci o Seu Armando, mas nunca soube de coisas ilícitas que ele tenha feito. Nunca vooei para nenhuma área deles de garimpo, que eles tinham, não sei se ainda têm. Nunca vi nada que fosse relacionado à atividade garimpeira.

Imensa cratera aberta pelo garimpo na região do rio Uraricoera, Terra Indígena Yanomami | Divulgação

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