O orçamento da miséria na USP

A administração que inverte as prioridades e torna explícita sua aversão aos estudantes pobres

por Ana Paula Salviatti, Angela Sabrina Márquez Acero, Dafné Martins do Prado, Erika Guetti Suca, Juan Manuel Vidal Garcia, Lucas Antônio dos Anjos Nascimento*, na Ponte

No ano de 2021, na maior universidade pública do país, a Universidade de São Paulo (USP), metade das vagas passou finalmente a ser distribuída entre alunos de escolas públicas autodeclarados pretos, pardos ou indígenas. Entretanto, na contramão do estabelecimento de direitos, não houve a criação de meios que garantam sua execução, é o que mostram os dados do Censo da Educação Superior de 2020. A colação de grau nas universidades públicas do país teve queda de 18,8% no ano de 2019 — números ainda maiores são aguardados para os anos impactados pela pandemia. A criação de direitos sem a garantia de meios para sua execução não só fragiliza a conquista, como penaliza a quem se busca beneficiar. 

Na contramão do crescente número de vagas direcionadas aos alunos cotistas, as políticas de permanência da USP não acompanharam o evidente aumento da demanda por seus programas.  As vagas existentes no Conjunto Residencial da USP (Crusp) sofreram redução de aproximadamente 180 vagas com o fechamento de um dos seus blocos para uma reforma sem tempo determinado para terminar, sem garantias de novas instalações no Crusp ou auxílios que custeassem a mudança dos estudantes residentes do bloco, que foram retirados neste em meio à pandemia.

Segundo dados apresentados pelo anuário estatístico da USP, entre 2015 e 2020 a universidade viu sua receita aumentar em aproximadamente R$ 1 bilhão. Contudo, a universidade cortou investimentos em áreas vulneráveis no ano de 2020. Para se ter uma ideia, no ano de 2017, o valor destinado ao subsídio alimentar dos alunos foi de aproximadamente R$ 60 milhões (R$59.832.360), já no ano de 2020, o repasse foi de R$22.403.545, uma queda de 63% do repasse direcionado à alimentação dos estudantes mais vulneráveis da universidade.

É em meio a um quadro grave de vulnerabilidade alimentar que a USP não ficou atrás como exemplo de má gestão da crise sanitária instalada com a Covid-19. Logo no início da pandemia, os moradores do Crusp foram instados pela Superintendência de Assistência Social (SAS) a deixarem as habitações com a justificativa de que a universidade não teria como garantir condições sanitárias mínimas para permanência dos mesmos.

No entanto, as atividades de ensino e pesquisa rapidamente foram retomadas através da internet sem que houvesse um plano estratégico para garantir a adaptação dos estudantes que dependem da infraestrutura universitária, majoritariamente os estudantes cotistas.  No Crusp não há sinal de internet, e mesmo que houvesse sinal suficiente, grande parte dos moradores ou não possuem computadores aptos para acompanhar o ensino remoto, ou sequer possuem computadores. Metade dos alunos que entraram na Universidade de São Paulo é cotista, e são eles majoritariamente que fazem uso das políticas e dos equipamentos de permanência estudantil. 

O que se observa é uma negligência deliberada no que diz respeito à gestão dos recursos e das políticas de permanência, justamente para com os estudantes que têm desde a sua origem o acesso negado aos seus direitos. É comum que o Crusp seja chamado de periferia da USP e assim como qualquer outro espaço periférico, as reivindicações do Crusp são reivindicações de vida: alimentação de qualidade, saúde física e mental, moradia digna, dentre outros.

Desde o início, e com o recrudescimento da situação sanitária, ficou evidente que as condições de insalubridade que a moradia estudantil apresentava seriam agudizadas: os corredores da moradia universitária não têm iluminação, os tetos das habitações apresentam infiltrações de água e de esgoto, a rede elétrica é precária, não existem lavanderias e as cozinhas encontram-se sem fogões, e um longo etcétera. Vale destacar que, em pleno ano de 2022, ainda não há acesso à rede de internet estabelecida nas dependências do Crusp. Questione-se: como esses estudantes, que moram num espaço universitário, realizaram suas tarefas no ensino remoto entre 2020 e 2022?

Quem já estudava nessas circunstâncias antes da pandemia viu como suas condições ficaram ainda piores quando, com o início da emergência sanitária, as bibliotecas e salas de estudo fecharam, assim como os restaurantes universitários. A alimentação dos alunos que fazem uso das políticas de permanência universitária passou a ser feita através do fornecimento de marmitas de baixa qualidade e que, não raro, apresentaram insetos e outros tantos tipos de inconvenientes. A falta de rede de internet retardou a qualidade de ensino e pesquisa de muitos estudantes, isso quando não inviabilizou-a por completo.

Diante deste cenário: aumento de alunos ingressantes por cotas e as tristes consequências da pandemia, que no dia 25 de maio de 2021, um estudante da USP e morador do Conjunto Residencial da USP tirou sua própria vida. Ricardo Lima da Silva era estudante do curso de Geografia e morreu em meio a esse cenário que oprime e que adoece. Como não adoecer? A resposta a isso, inclusive, foi mobilizada por ex-moradores do Crusp e atuais estudantes moradores, pois as mobilizações da SAS e da universidade foram e continuam sendo nulas.

Em décadas de universidade, os recursos nunca sobraram para requalificar, garantir, tão pouco expandir o acesso à universidade pública a quem lhe é de direito. Há sempre uma nova prioridade que não a desses estudantes, como foi o caso da reforma completa do prédio que abriga os escritórios da Superintendência de Assistência Social. A prioridade a que foi destinada o aumento do repasse orçamentário às políticas de permanência estudantil foi a completa requalificação do prédio da SAS, para quando da próxima  oportunidade,  atender as necessidades dos mais vulneráveis.

A Universidade de São Paulo desenvolve uma política que não contempla os estudantes vulneráveis, pelo contrário: adotam políticas de exclusão, especialmente aos cotistas, mesmo existindo recursos para garantir o exercício do ensino superior em estrutura digna e saudável.  Esses não são fatos isolados, não são simples coincidências, a permanência estudantil é negada deliberadamente há anos.

(*) Comunal, coletivo de moradores e ex-moradores do Crusp

Estudantes e moradores do Crusp em protsto no conjunto residencial da USP contra tentativa de despejo em agosto de 2021 | Foto: Pii

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