Não há uma relação fechada entre evangélicos e Bolsonaro. Por Nilza Valeria Zacarias

Irmã Cida, eleitora de Bolsonaro em 2018, crente fiel da Assembleia de Deus, percebeu que votou errado. A ficha caiu quando ela viu Bolsonaro imitando as pessoas que morriam de Covid. Ela percebeu que não havia cristianismo nele. Não há uma relação fechada entre evangélicos e Bolsonaro. E aqui entra nosso trunfo. É possível fazer a disputa. É possível acenar com a realidade e com uma leitura bíblica contextualizada

No Diplomatique Brasil

Minha escola de jornalismo é antiga. Daquelas em que vou maturando o texto, pensando, ruminando, até o momento final de escrever. Quando está em cima do prazo, coloco tudo no papel. É, de certo modo, como fui ensinada. A hora de fechar, a hora de colocar o ponto-final no texto. Isso, óbvio, encontra abrigo no meu jeito de ser. De gostar da pressão. De funcionar no limite.

Toda essa volta é para dizer que este texto estava quase pronto. Quase. Uns poucos ajustes e seguiria para a redação do Le Monde Diplomatique Brasil com poucas horas de atraso, para manter esse charme de que estou muito ocupada, fazendo mil coisas ao mesmo tempo. O tema demandado, dentro da minha área de conforto, é para falar de eleições e evangélicos. E por que tantos de nós ainda seguem Bolsonaro, e com disposição para votar nele outra vez.

Na versão original eu ia dizer que a categoria evangélica não existe de forma isolada. Ninguém é somente evangélico. Ser evangélico deveria ser, tão somente, quem tem fé no Cristo como sua esperança – seja nesta vida, seja num possível mundo vindouro, onde a vida triunfará sobre a morte.

É nesse ponto que as coisas mudam, e mudo o texto. Acordo com a notícia de mais uma operação policial em uma favela do Rio de Janeiro, na Vila Cruzeiro, e a conta inicial era de onze mortos. Passo o dia naquela tristeza habitual, de quem sabe que isso não é normal, tantas mortes por diversos policiais que se juntaram para tocar o terror.

Saio para trabalhar. Sim, eu faço mil coisas ao mesmo tempo. Nessa, me distraio das notícias. Quando paro para um café, dou uma olhada nas mídias sociais e o número de mortos subiu para 22. Percebo, de forma muito nítida, que o algoritmo tenta me ocultar o que aconteceu lá.

A proposta das redes sociais é a da diversão. Aparecem vídeos de receitas, dancinhas, lojas de vestido que acertam meu gosto para os modelos amplos. Só que a mente já não aguenta mais. Eu penso na Vila Cruzeiro. Não adianta fazer textão. Nem explicar mais que estamos vivendo a barbárie. Que operações policiais como essa não cabem dentro do estado democrático de direito. Tudo com a bênção de um governo que desafia o bom senso, ostentando relações promíscuas com a milícia, com a fé, com os aliados, com os adeptos do bolsonarismo. Servindo a morte como prato principal no tradicional almoço de domingo da família brasileira.

Foram 22 mortos na Vila Cruzeiro. O presidente Bolsonaro parabeniza a operação. Diz que os policiais do Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar do Rio de Janeiro (Bope) são guerreiros. Ele tem alguma razão. Essa guerra ao tráfico mata mais do que algumas guerras entre povos e nações ao redor do mundo. E aqui há algo que quero destacar: o policial crente que mata o filho da irmã de oração que vive no alto da comunidade, igualmente crente como ele. Guarde isso.

São mais de 666 mil mortes pela Covid no Brasil. Checo o número e ele, curiosamente, é o associado à besta apocalíptica. Isso me remete ao dia em que a besta humana imitou como morriam pessoas sufocadas com falta de ar. Trago à memória pessoas que conheci desde criança, na igreja batista em que fui criada – lugar em que meus pais eram membros e meus avós foram fundadores da comunidade de fé –, e que morreram sufocadas pela ação do coronavírus em seu organismo. Um deles tinha a minha idade. Outros, a idade dos meus pais, que perderam amigos e irmãos. Muitas das mortes, dizem os estudos, seriam evitadas se a vacina chegasse antes, bem antes, do que chegou.

Nós, evangélicos, de acordo com o Censo 2010 e as pesquisas realizadas pelo Datafolha, devemos ser – pelo menos – 30% da população brasileira. Dizem que os evangélicos vão superar o número de católicos no país em 2030. Então, reservo-me o direito de acreditar que há algo errado com os números. Se vamos ser maioria em menos de dez anos, somos mais do que 30%. Muito mais. Ou as projeções estão erradas. Mas não podem estar.

Outro dia, enquanto tomava café da manhã em casa, antes de entrar na rotina alucinante de trabalhar para tentar fazer o mundo ser um lugar melhor, na maior emissora de TV do país, um cantor gospel falava do seu sucesso – uma música bem bobinha, que narra uma história bíblica: a necessidade de Joquebede, a mãe de Moisés (o libertador do povo hebreu da escravidão egípcia), colocar seu filho num cesto de vime, para escapar do genocídio que o faraó estava promovendo contra os meninos. Claro, a música não fala de genocídio nem de escravidão. A canção apenas alenta a mãe de que seu bebê sobreviverá. Virou dancinha no TikTok.

Quero dizer que a cultura evangélica assola o país. Virou cultura popular. Se antes a cultura da rua reinava absoluta, agora não mais. “Abençoado” virou um termo comum, um jeito simpático de o vendedor ambulante chamar o cliente. Ou de tratar colegas de trabalho. E “o sangue de Jesus tem poder”? Diante do mistério assombroso, a expressão é tão usada quanto o sinal da cruz ou o beijo no amuleto.

Pedi que guardassem o fato do policial crente. Tem um grupo da polícia chamado PM de Cristo. E, em um país como o nosso, só Cristo mesmo. Ele é invocado pelo policial que não quer virar estatística, como seus colegas mortos em serviço; ele é invocado pelo traficante (que me recuso a chamar de evangélico) que foi criado na igreja e sabe que a vida dele não vale nada. Mas o Cristo que me interessa é o que é invocado pela mãe do policial e pelas mães dos que morreram na Vila Cruzeiro.

Faço questão de distinguir esses Cristos. E isso tem a ver com Bolsonaro, que tem invocado um Cristo qualquer para legitimar seu governo promotor de ódio, miséria e fome. O Cristo que Bolsonaro invoca me lembra o Cristo invocado pelos traficantes que dizem ser de Jesus e empunham a bandeira de Israel como se fossem o povo escolhido de Deus, em clara confusão entre pertencimento religioso e geopolítica.

Claro, me lembra também (sem generalizar) os policiais que oram e fazem seu trabalho com as mãos sujas de sangue. E, mesmo que não matem o corpo, andam a matar a dignidade no esculacho, matam a liberdade com a opressão. Faz algum tempo que a imprensa noticiou sobre a Igreja do Bope. Como pode ser normal isso? Lembro que o pastor que estava lá celebrando o culto parecia orgulhoso. Considerando o Cristo em que acredito, só consigo conceber a ideia de um pastor falando para policiais do Bope se for para proferir palavras como faziam os profetas do Antigo Testamento: denunciar a opressão, a iniquidade, a injustiça, a morte fora de tempo. Lançar os matadores no fogo ardente.

Pastores e policiais do Bope juntos dizem muito sobre um país que caiu nas mãos de Bolsonaro. Engraçado é que pastores assim, volta e meia, puxam lamentos e contam os mortos, explicitando as incongruências de um Evangelho, que são as boas novas de Deus aos homens. Ignoram as boas novas, são oportunistas, com um tipo de canalhice conveniente. Ou seja, as boas novas viraram algo que nada têm a ver com Deus, mas com a ganância dos homens por dinheiro, visibilidade ou poder.

Nem cheguei a mencionar os pastores que, descaradamente, abusam das fragilidades humanas e vão para as rádios e TVs vender boas novas, vender consolo, vender cura, vender segurança, vender paz, vender Cristo. Vendem e ganham, como os comerciantes que o próprio Cristo, em fúria, expulsou da porta do templo em Jerusalém. Engraçado que a Reforma Protestante, no século XVI, foi contra isso. Talvez seja tempo de uma nova reforma, que reforme a fé reformada. Que traga o Cristo para o centro da Igreja.

O fato, inconteste, é que a Igreja evangélica existente no Brasil era terra fértil para fazer Bolsonaro brotar. Evangélicos que aprendem mais sobre o medo e sobre o castigo do que sobre a graça que sustenta a vida. O resultado, óbvio, é a moralidade estabelecida como dogma: não pode beber, não pode fumar, não pode transar, não pode dançar, não pode ser LGBTQIA+, não pode interagir na cultura, não pode chorar – se for homem. Se for mulher, pode trabalhar, pode ser arrimo de família, pode enterrar os filhos e o marido mortos pela violência cotidiana, pode ser mãe solteira, não pode abortar, pode cuidar dos pais idosos, pode fazer os serviços de limpeza na igreja, pode fazer comida para vender na cantina para construir um novo templo suntuoso, pode cuidar das crianças e dos doentes, pode se reunir com outras irmãs em oração – mas há de ser submissa. Não ouse nunca ser senhora de sua própria história nem fazer escolhas que não contemplem a comunidade.

Quando a mulher de Bolsonaro vai orar em línguas (uma prática pentecostal de usar línguas estranhas para orar ou receber revelações, baseada em texto bíblico com diferentes interpretações: por isso os evangélicos históricos não usam falar em línguas, e os pentecostais, sim), ela sabe o que isso causa em parte do segmento evangélico. E, curiosamente, ela é membro de uma igreja batista – como a de que faço parte – que não pratica esse costume. Ah, o oportunismo disfarçado de espiritualidade…

Como sabem jogar para a plateia! Assim foi a oração da Michelle, assim foi a Damares Alves no Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, assim foi o Milton Cunha, o pastor presbiteriano que anda armado e quase causou uma tragédia no Aeroporto de Brasília, no Ministério da Educação. As distorções evangélicas da Igreja brasileira deram régua e compasso para a corja que se estabeleceu no Palácio do Planalto desde janeiro de 2019. Desculpa, Gilberto Gil, pela licença nada poética ao citar trecho de “Aquele abraço”.

Mas eu, em algum lugar deste texto, disse que ninguém é somente evangélico. E não é mesmo. Eu sou evangélica, jornalista, mãe, trabalhadora, negra, e tudo isso me constitui. Minha mãe, que é diaconisa batista, é professora de língua portuguesa e literatura e funcionária pública aposentada. Uma grande amiga é crente e funcionária de um sindicato. Um amigo é crente e assistente social. Outro é mecânico de avião, como meu irmão (de sangue), que também é crente, mas anda cansado da igreja – como muitos crentes.

O atravessamento de tudo que somos mostra – a mim – que o problema no Brasil não são apenas os evangélicos. Não somos a única terra fértil. Somos mais cultivados, admito. Mas constituímos, com tantas outras pessoas, de diversos credos, isso que chamamos de Brasil. Um povo que sente saudades da escravidão, mas que é capaz de jurar por todos os santos que a empregada negra faz parte da família. E essa declaração hipócrita é a senha para sonegar os direitos devidos. Os donos da casa, se bobear, não sabem o nome completo da empregada, mas ela é da família. O nome dela é Bá.

Bolsonaro entendeu muito bem o que significa ter fé em um país em que ter fé é um atravessamento que garante pessoalidade. O sujeito não é nada, tem um emprego ferrado, ganha mal, é maltratado pelo chefe, sofre o racismo estrutural em que nem sequer consegue reconhecer que é vítima. Mas chega o domingo e ele está na igreja. Vestido com terno, que é sua melhor roupa. Mesmo que a maior parte desse grupo categorizado como evangélico, o grupo dos pobres, esteja vestido como típicos palhaços litúrgicos, pela combinação cafona da gravata com o paletó de tecido barato. Não importa. Naquele espaço, ele é irmão. É igual. A força disso é imensurável. E nem vou entrar aqui na dimensão do sagrado, da mística, do transcendente. Essa dimensão é a que verdadeiramente importa, ou os evangélicos não cresceriam. Ninguém fica onde não há ganho.

Bolsonaro e sua turma souberam usar desses elementos para mobilizar esses votos em 2018. Superaram os atravessamentos. Colocaram a pauta moral na mesa. E, cá entre nós, a questão moral não é um problema único dos evangélicos. Não venha me dizer que a sociedade brasileira é igual à holandesa, defensora ferrenha de todas as liberdades. Somos tão tacanhos a ponto de celebrar o sangue no lençol para atestar a virgindade da filha da vizinha. A gente ainda esconde o gay no armário. Eles é que não se deixam esconder mais.

O fato é que dona Cida, irmã Cida, eleitora de Bolsonaro em 2018, crente fiel da Assembleia de Deus, percebeu que votou errado. A ficha caiu quando ela viu Bolsonaro imitando as pessoas que morriam de Covid. Ela percebeu que não havia cristianismo nele. Tenho conversado com muitas pessoas que mudaram de ideia. Agora há pouco, no mercado, a atendente de caixa me falava como ela e as amigas conseguem, no máximo, ganhar R$ 1.800 com horas extras. E que isso não dá para segurar a família, que está difícil. Ela quer que outubro chegue para virar o jogo. Crente ela.

Não há uma relação fechada entre evangélicos e Bolsonaro. E aqui entra nosso trunfo. É possível fazer a disputa. É possível acenar com a realidade e com uma leitura bíblica contextualizada.

Para isso, nós, que estamos puxando essa luta (evangélicos ou não), temos que compreender a importância de reconhecer que o identitarismo pode ser uma armadilha. Acusamos os evangélicos de uma união, já que possuem características comuns, de pleitear políticas para seus grupos. Com a benesse de Bolsonaro. Para a civilidade vencer a barbárie, talvez tenhamos que abandonar a forma de nos posicionarmos, a partir da ênfase em nossos grupos, nossas posições, nosso jeito de olhar para o mundo. A fixação no nosso lugar de fala quebra pontes com outros grupos – sobretudo essa massa chamada de evangélicos.

O identitarismo vai dando espaço para essa direita, cada vez mais tipo Bolsonaro. Aprendi muito sobre isso lendo Armadilha da identidade: raça e classe nos dias de hoje, de Asad Haider (Veneta, 2019). Ele defende, com toda razão, que identidade (nossos atravessamentos pessoais, como mencionei) não deve ser confundida com políticas identitárias.

Quando penso em eleições, em Bolsonaro e no destaque dos evangélicos nestes últimos anos, tenho certeza de que as lutas políticas não podem ser espaços fechados, sem garantir a aproximação com o outro, inclusive considerando a fé como importante para esse outro. Não podemos encarcerar os evangélicos e dar a chave da prisão para o Bolsonaro. Não podemos julgar nossas identidades, ou subjetividades, como superiores.

Para quebrar a relação de Bolsonaro com os evangélicos (não digo com os líderes e pastores empresários, mas com os fiéis – gente como a gente), deve-se destacar que a fé, como qualquer outro atravessamento da vida, é perpassada pelas questões atuais, pelo lugar de cada um na sociedade. Então, por isso, a estratégia para minar a relação eleitoral de Bolsonaro com os crentes é uma só: a linguagem.

*Nilza Valeria Zacarias é jornalista, uma das coordenadoras da Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito e produtora de programa de rádio, entre tantas outras coisas.

Manifestação contra Bolsonaro em Belo Horizonte da Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito, em outubro de 2020 Créditos: Thiago dos Anjos

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