Nos desentendimentos, primeiro ofende-se. Xinga-se gritando e cuspindo de braços abertos e peito estufado, como se briga fosse coisa de pombo. Só depois de réplicas e tréplicas de ofensas que os corpos se tocam, inaugurando a troca de empurrões, bofetadas, socos e chutes desengonçados. Mas com Jerônimo não é assim. Ele não xinga. Avança sobre o desafeto sem nada dizer. De surpresa. Como um tigre que solta explosivo sobre a jugular da vítima.
Não é louco, ainda que, às vezes, pareça. Nem briga à toa, mas pelos mesmos motivos e do mesmo jeito que qualquer um, só não diz nada antes. Não anuncia a raiva que tem. Explode. Vai direto do sentimento ao ato, sem palavras ou palavrões. Não por astúcia. Nem frieza. Ao contrário. Faz de cabeça quente. Tão quente que não consegue falar, nem xingar. É como panela de pressão sem válvula de escape do vapor.
Ele tem um problema. Não consegue dar nome ao que sente. E não importa se o que sente é bom ou ruim. Ama, mas não sabe que ama. Não daquele jeito de saber que quando sabemos conseguimos explicar para os outros. Jerônimo é ignorante de si mesmo. Guarda no peito o que sente até que explode.
Dr. Carlos fala bem. Deputado de muitos mandatos e infinitos discursos. Não há um só assunto para o qual não tenha palavras eloquentes. Fala inflamado e inflama quem o escuta. E muitos o escutam. Nas redes sociais, posta três, quatro, oito vídeos por dia, a depender da criatividade para arranjar assunto. Fala com coragem. Parece homem de ação. Mas apesar de tudo dizer, nada faz. Vai do sentimento à palavra, sem ato. Dos seguidores, manipula sentimentos com palavras. Quase sempre, sentimentos ruins. Incita ao ato. Excita espíritos de sentimentos tumultuosos a ações insensatas.
Em um país com pobreza, fome e morte, seus discursos são sobre conspirações estapafúrdias e ameaças irreais às famílias. Falas oportunas construídas sobre medos e ignorâncias. Não age para mudar a sociedade e corrigir suas mazelas. Fala para dar vida aos males nas mentes de quem ouve. Tudo pelo que mais importa: ele mesmo.
Ronilson agora é professor. Daqueles que em sala vão além da matéria. Incentiva os alunos a superar a maçante rotina de estudos contando histórias. Fala de coisas que viveu e sentiu quando era policial. Jovens que sentem vontade de viver como policiais antecipam em seu imaginário o sonho, por enquanto, só sonhado. Eles gostam.
Conta com entusiasmo sobre as pessoas que matou. Pessoas que não eram pessoas porque eram bandidos. Em lugar onde criança pode tomar tiro porque lá não é criança, é filho de bandido. Nas suas aulas, tortura é matéria e racismo é sabedoria. Sempre foi homem de ação. Agora é homem de palavras. Do ato perverso à palavra cruel, ensina maldades a uma juventude embrutecida.
Gente de palavra distorcida. De sons e ideias ocas de sentimentos e razões. Não ligam sentimentos ao pensar. Nem pensam nos sentimentos dos outros porque são dos outros. São sentimentos que não sentem. De outros que não veem como gente. Cuja palavra não escutam por demais distraídos que estão em buscar prazeres no imenso vazio de si mesmos.
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Ilustração: Mihai Cauli