O papel da comunicação na cobertura vacinal

Pesquisadores defendem que é preciso investir em mais campanhas, valorizar a determinação social da saúde e reduzir o foco na responsabilidade individual

Cátia Guimarães, EPSJV/Fiocruz

O grande desafio, a meu ver, é o da comunicaçăo”. A opiniăo é de Renato Kfouri, presidente da Diretoria Científica da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), e se refere à necessidade de recuperar as altas taxas de vacinaçăo que vęm despencando nos últimos anos. A questăo é que năo basta apenas informar as pessoas de que existe vacina no posto ou sobre o dia ‘D’ da campanha de imunizaçăo: a estratégia precisa levar em conta as razőes que levaram parte significativa da populaçăo a deixar de vacinar os filhos. “Essa geraçăo de pais nem sabe o que é caxumba, coqueluche, difteria, sarampo. Entăo, o grande desafio da comunicaçăo é continuar mantendo o engajamento na vacinaçăo da populaçăo a despeito de ela năo conviver mais com essas doenças”, analisa Kfouri, ressaltando que, embora várias instituiçőes e entidades científicas estejam se esforçando para dialogar com a sociedade sobre o tema, o que falta no Brasil hoje é “comunicaçăo oficial”.

A cobertura vacinal parece apenas um capítulo desse problema. A falta de investimento em campanhas educativas nacionais sobre os métodos de proteçăo contra o HIV, por exemplo, foi uma das principais queixas dos entrevistados da reportagem ‘40 anos de uma pandemia que năo acabou’, publicada recentemente na revista Poli nş 80. Já no contexto da crise sanitária atual, dados da Agęncia Pública disponibilizados via Lei de Acesso ŕ Informaçăo mostraram que, até abril de 2021, o governo federal tinha gastado R$ 5 milhőes com campanha de vacinaçăo contra Covid-19, enquanto as açőes de comunicaçăo para divulgaçăo de tratamento precoce – negado pelas evidęncias científicas – teriam custado quatro vezes mais. “O que houve foi uma política intencional de produçăo de ignorância e desinformaçăo”, analisa Tania Fernandes, pesquisadora da Casa de Oswaldo Cruz (COC/Fiocruz), que estudou o processo social que gerou a Revolta da Vacina no início do século passado e identifica muitas diferenças com o que se viu durante a pandemia de Covid-19. “O negacionismo hoje aparece como política de Estado”, diz.

De fato, mesmo quem analisa criticamente a aposta em estratégias de campanhas de saúde e comunicaçăo, como a pesquisadora do Instituto de Comunicaçăo e Informaçăo em Cięncia e Tecnologia em Saúde (Icict/Fiocruz) Janine Cardoso, hoje ressalta a falta que essas iniciativas fazem. “As campanhas tęm importância no sentido de colocar questőes na agenda pública”, diz Cardoso. E năo há dúvidas de que a baixa cobertura vacinal e o risco das doenças que já năo amedrontam a populaçăo precisam entrar na pauta.
Procurado pela reportagem via assessoria de imprensa, o Ministério da Saúde năo respondeu à solicitaçăo de entrevista, que incluía questőes sobre estratégias de comunicaçăo.

Que comunicação?

A urgęncia, portanto, é fortalecer as açőes de comunicaçăo de alcance nacional, que tęm perdido espaço năo só em relaçăo ŕ imunizaçăo. Mas a leitura crítica desse tipo de estratégia ajuda também a refletir sobre como essa retomada pode ser mais eficaz. A principal crítica sobre o modelo campanhista denuncia uma certa ilusăo de que esse tipo de iniciativa conseguiria, “quase automaticamente”, provocar uma mudança de comportamento na populaçăo. “Năo é só uma questăo de explicar direitinho, usando as palavras que as pessoas entendam”, analisa Cardoso, que desenvolveu essa análise na dissertaçăo ‘Comunicaçăo, saúde e discurso preventivo: reflexőes a partir de uma leitura das campanhas nacionais de Aids veiculadas pela TV (1987-1999)’. Ela explica que o que fica de fora quando se aposta nessa estratégia de apenas dizer o que a populaçăo deve fazer săo exatamente os aspectos relacionados ŕ determinaçăo social do processo de saúde e doença. É como acreditar que, no contexto atual, problemas como a dificuldade de acesso, a falta de formaçăo dos profissionais e o próprio medo do desconhecido que as vacinas novas costumam provocar, pudessem ser facilmente superados com vídeos, cartazes, posts e outras peças de comunicaçăo bem feitas.

O próprio negacionismo, nos seus mais variados tipos, precisa, segundo a pesquisadora, de uma abordagem que vá além da polarizaçăo entre a verdade e a mentira. “Negar o negacionismo obviamente é uma posiçăo, mas entender por que ele conquista e seduz, que tipo de dúvidas ele coloca, é uma coisa que a gente năo pode deixar de fazer”, defende. Um exemplo diretamente relacionado ao problema da cobertura vacinal, para Cardoso, săo os estudos que apontam como a sensaçăo de ser ouvido e de ter o seu saber prático do cuidado valorizado está entre as razőes que levam alguns pais a se sentirem atraídos pelo discurso antivacina.

Um desdobramento problemático de toda essa concepçăo, segundo a pesquisadora, é a naturalizaçăo da “ęnfase na responsabilizaçăo individual” nas estratégias de comunicaçăo e saúde. Ela cita como exemplo o caso das campanhas de combate ŕ dengue, que se concentram em orientaçőes prescritivas como “tire a água do seu vasinho”. “O foco é sempre na proteçăo individual. É voltado para o bom cidadăo que faz tudo: cuida do seu quintal, dos seus potinhos e culpa o vizinho”, critica. Diante de uma crise sanitária como a que foi causada pela Covid-19 e do problema estrutural que a baixa cobertura vacinal representa, os limites dessa concepçăo de comunicaçăo e de saúde se tornam ainda mais evidentes. “Existe uma dimensăo coletiva da decisăo individual de vacinar. A questăo é que essa é uma dimensăo que nunca habitou as campanhas. Qual é o apelo? ‘Vacine seu filho, proteja seu filho’”, diz Cardoso, que completa: “A gente tem um déficit no debate público sobre essa dimensăo mais coletiva”. Diante dos atuais índices de cobertura vacinal no Brasil e, particularmente, da baixa adesăo ŕ imunizaçăo infantil contra a Covid-19, talvez a realidade nunca tenha sido tăo didática.

Imagem: Marcello Casal Jr./EBC

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