Clarisse estranha. Por Julio Pompeu

No Terapia Política

Passava um pouco das oito quando Clarisse saiu apressada, cheirando a perfume doce e bacon. Atrasada, como sempre. Acordou às seis e meia, como sempre. Virou-se na cama, como sempre. Só mais um pouquinho, como sempre.

A rua parecia a mesma. Com os mesmos carros, caminhões e ônibus de sempre. O mesmo cheiro enjoativo de fumaça, urina e cocô de sempre. Os mesmos sons guturais de motores e estridentes de gritos de vendedores e gente irritada.

Mas apesar de tudo estar como sempre, havia algo estranho no ar. Parecia o mesmo sempre de sempre, mas estava diferente. Como se o sempre pudesse não ser mais o mesmo. Ou ao tudo se tivesse acrescentado qualquer coisa sutil o suficiente para esconder-se e, ao mesmo tempo, impactante o bastante para se fazer notar.

Reparou nas coisas, em busca da estranheza. Distraiu-se com uma senhorinha tão pequena quanto simpática que assistia espantada às notícias que passavam no telão do terminal. Que horror! Dizia com capricho na pronúncia dos erres.

Espantava-se com Covid voltando, como sempre. Mas sem números, máscaras ou sequer preocupação. Como se o risco não existisse. Ou o medo. Há quem diga que risco, de fato, nunca existiu. Que era só gripezinha mesmo. Coisa da vida. Os sufocados pela doença, provavelmente, não pensam assim. Ou pensam? Duvidou Clarisse.

Talvez, como sempre, o medo e a dor, quando insistentes, nos fazem delas acostumados. Relaxamos e não queremos nem saber do que sabemos. Como sempre, preferimos fingir que está tudo bem. Mesmo não estando aquele bem de sempre.

Tomou o ônibus já cheio, como sempre. Sentiu uma ou outra mão, coxa e quadris lhe apertarem a bunda, como sempre. Olhou feio e reclamou, como sempre. Todos fingiram que nada demais acontecia, como sempre. Daquele sempre que deveria ser nunca. Ao saltar do ônibus, percebeu a lateral da bolsa cortada. Foi roubada, como sempre. Nem perdeu tempo perguntando se alguém viu. Já sabe a resposta, a de sempre. Seria culpa sua, que deu mole, como sempre.

No trabalho, o assunto junto ao café era a vida dos outros e a falta de dinheiro. Trabalha-se muito para ganhar pouco, como sempre. E a cada mês, o pouco é ainda menos. Pensar nestas coisas a entristece. Faz lembrar das contas. E do dinheiro que não dá para todas elas.

Um colega falou sobre crimes. Como sempre, a violência passou dos limites. Passa a cada espanto. Sempre absurda. Depois, vem outro absurdo. E outro. Vira coisa banal. Violência de sempre. Polícia matando e preto morrendo, como sempre. Chacina que choca cada vez menos. Gente matando por nada e morrendo por menos ainda, como sempre.

Voltou para casa cansada como sempre. Depois de um dia inútil como sempre. Viu notícias de uma gente que não é povo. Que acha que povo é só aquele pobre meio bandido que mora longe. Naquele lugar que tem chacina, enchente e deslizamento, como sempre.

Encarou-se no espelho antes de se deitar, como sempre. Mas, desta vez, demorou-se. Olhou-se de verdade com um olhar desconcertante que não imaginava ter. Estranhou-se. Como se não se reconhecesse mais. Como se fosse outra Clarisse. Menos Clarisse de sempre. Afetada pelas inconsistências de uma vida assustada. Transformada em outra, mesmo sendo a mesma. Desfeita de si mesma pelo acúmulo de espantos. Clarisse que estranha a mesmice de uma sociedade estranha que não se estranha.

Imagem: EBC

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