Newsletter da Ponte, por Fausto Salvadori
No glorioso ano de 2022, como é que os jornalistas celebram o Dia Nacional da Liberdade de Imprensa? Do mesmo jeito que faziam em plena ditadura militar: se juntando para resistir ao arbítrio e para lamentar pelos companheiros que tombaram. Na semana que passou, o lamento foi pelo jornalista inglês Dom Philips e pelo indigenista Bruno de Araújo Pereira, que desapareceram no Vale do Javari, no Amazonas, num trabalho jornalístico que o ocupante do Planalto chamou de “aventura”.
Parece que o Brasil de 2022 não é tão diferente do país de 1977, quando ocorreu a ação que inspirou a criação do nosso Dia da Liberdade de Imprensa: a divulgação de um manifesto assinado por 3 mil jornalistas contra as perseguições à categoria, menos de dois anos após o assassinato de Vladimir Herzog pelos militares, ocorrido em 1975. E nem poderia ser diferente. Afinal, o Brasil de hoje é o que escolheu arrancar da presidência uma mulher que havia lutado contra a ditadura e pouco depois colocar no lugar dela um homem que celebrava o regime militar e as torturas praticadas contra essa mesma mulher. O que poderia dar errado?
Os jornalistas que assinaram o manifesto em 1977 foram corajosos, já que o país ainda vivia embaixo da bota do AI-5 e muitos censores trabalhavam dentro das redações. Como também é corajoso quem se dispõe, hoje, a fazer jornalismo de verdade. Atenção para o “de verdade”. Sim, porque não é todo jornalismo que exige coragem, nem compromisso com os direitos humanos, muito menos caráter — só o jornalismo de verdade. Se existe o jornalismo que se opõe ao arbítrio, também sempre houve máquinas de propagandas, disfarçadas de jornalismo, que se aliam ao poder como cúmplice dos piores crimes.
É muito conveniente celebrar a ideia romântica de que jornalistas e artistas no geral lutaram contra a ditadura militar. Pena que não é verdade. No caso dos artistas, se a gente teve um monte de Caetano, Gil, Chico, Nara Leão, também teve os lambe-botas de coturnos, como Dom e Ravel e Rachel de Queiroz — do mesmo jeito como, hoje, a gente tem, por exemplo, de um lado, Emicida e Elza Soares, e, do outro, nomes como Gusttavo Lima ou Sérgio Reis.
No caso do jornalismo, a relação talvez tenha sido até mais desfavorável. Se de um lado Herzog e as redações de Pasquim, Movimento, Opinião, Lampião e tantas outras, do outro havia os grandes veículos que apoiaram o golpe de 1964 e, em maior ou menor grau, continuaram a dar sustentação à ditadura fardada enquanto puderam. No livro Cães de Guarda: Jornalistas e Censores, do AI-5 à Constituição de 1988, a historiadora fala desse lado nada glorioso do jornalismo que tantos prefeririam esquecer. Ela conta que empresários como Victor Civita, dono da editora Abril, firmaram acordo com a Polícia Federal para melhorar o trabalho de censura aos jornalistas, e que a Folha da Tarde, do grupo Folha de S.Paulo, era tão alinhado com a ditadura que noticiava a morte de ativistas presos antes mesmo de eles serem executados pelo regime e tinha tantos “tiras” trabalhando na redação que ficou conhecido como “o jornal de maior tiragem” da época.
Na repetição histórica de parte das sombras daquele período, como farsa ou como rima, que passamos a ver nos últimos anos, dá para notar que continuamos a ter dois jornalismos, com posturas bastante diferentes diante do arbítrio. De um lado, aquele “jornalismo” que apoiou com entusiasmo o golpe parlamentar de 2016 e que, diante do governo Bolsonaro, se divide entre os meios que se deixam usar alegremente como porta-vozes do regime fardado e aqueles que até adotam uma bem-vinda linha crítica, mas volta e meia relativizam os abusos proclamando, por exemplo, a existência de “escolhas difíceis” entre um defensor da tortura e um político de centro-esquerda, ou clamando que um governo fascista pode estar “na direção correta.”
Do outro lado, está aquele jornalismo que sempre denunciou os abusos cometidos contra os direitos humanos, venha de quem vier, sem rabo preso com quem quer que seja. A Ponte escolheu esse caminho e sempre soube que seria difícil. Nesta semana que deveria ser de celebração pela liberdade de imprensa, não há ninguém entre nós, e mesmo das nossas famílias, que não tenha ficado mexido ao saber dos companheiros que tombaram na Amazônia.
Sabemos que fazer o trabalho que fazemos, nos dias que correm, é arriscado. Sabemos que precisamos de apoio, principalmente do seu. Mas também sabemos, acima de tudo, que não poderíamos viver em paz com a gente mesmo se estivéssemos fazendo outra coisa da vida nesse momento.
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Fausto Salvadori é diretor de redação da Ponte.
Ilustração: Junião / Ponte