MPF pede que Estado do RS, Funai e União sejam responsabilizados por ação violenta da polícia contra indígenas Kaingang em Passo Fundo em 2018

Ação civil pública pede, além de indenização por danos morais e coletivos, uma série de medidas e protocolos para orientar a ação dos agentes do Estado em relação a indígenas no RS

Ministério Público Federal no Rio Grande do Sul

O Ministério Público Federal (MPF) ajuizou uma ação civil pública em Passo Fundo em que pede a “responsabilização solidária do Estado do Rio Grande do Sul, da Funai e da União, pelos danos morais individuais e coletivos, causados ao povo Kaingang no RS”.

O MPF destaca que em 15/02/2018 houve uma “violenta expulsão, sem ordem judicial, e de forma ilegal e abusiva, protagonizada pela Brigada Militar, com omissão e negligência da Fundação Nacional do Índio (Funai), de área pública que o grupo indígena pretendia ocupar com a finalidade de exercer seu direito de manifestação e de postular por direito indígena”.

Na ação, além de pedido de responsabilização pelos danos morais individuais causados aos indígenas Kaingang que participaram diretamente da ocupação, requer-se também que o Estado do RS, a União e a Funai sejam condenados a arcar entre si com o valor de uma indenização de R$ 4 milhões por danos morais coletivos, a serem revertidos em investimentos de políticas públicas destinadas ao povo em questão, preferencialmente na aquisição de terras para acomodar a comunidade atingida.

Contexto
Na manhã de 15/02/2018, um grupo de cerca de 12 famílias Kaingang, composto por aproximadamente 30 a 40 pessoas, entre homens, mulheres, crianças e idosos indígenas, tentou ocupar uma área localizada às margens da rodovia BR-285, nas proximidades do entroncamento com a Avenida Perimetral, em Passo Fundo, no RS. O grupo tinha como objetivo pressionar os órgãos e autoridades responsáveis pela demarcação de terras indígenas.

Na ocasião, os indígenas acabaram ultrapassando a faixa de domínio da rodovia federal, de propriedade do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit), que, naquele local, possuía 35m de largura, e ingressaram em uma área contígua à rodovia, denominada “Fazenda da Brigada”, cuja propriedade pertence ao Estado do RS e é administrada pela Brigada Militar (BM).

Ao saber disso, a própria Brigada, ainda naquela manhã, mobilizou cerca de 30 policiais militares e oficiais integrantes do 3º Regimento de Policiamento Montado e, “sem amparo em nenhuma decisão judicial e de forma ilegal e abusiva, a Brigada Militar expulsou com violência o grupo indígena”, informou o MPF.

O comando da Brigada na ocasião, ao perceber que se tratava de indígenas, solicitou a presença de representante da Funai, mas esta não compareceu, ainda que o tempo de deslocamento entre a sede do órgão em Passo Fundo e o local onde houve o incidente seja de apenas 20 minutos. “A Brigada Militar efetuou 173 disparos de munição antimotim e lançou 19 granadas durante o confronto com o grupo indígena”, documenta o texto da ação civil pública, que se valeu de informações prestadas pelo próprio órgão policial.

A investida da BM resultou em indígenas feridos, alguns gravemente, como um idoso de 78 anos que afirmou ter desenvolvido problemas auditivos em consequência de um disparo de bala de borracha que recebeu no ouvido. Há relatos ainda de um Kaingang espancado até desmaiar e mais dois atingidos por munição letal (um em uma das pernas, outro numa das mãos). Registre-se que “mulheres e crianças indígenas presentes no evento também sofreram com a violência dos policiais militares”, e que o mesmo idoso atingido por uma bala de borracha no ouvido foi levado para a Delegacia de Polícia Civil de Passo Fundo, onde foi mantido algemado por mais de 6h, sem água ou comida, submetido a agressões físicas e verbais.

Relatório elaborado pelo Conselho Estadual de Direitos Humanos (CEDH-RS) em conjunto com o Comitê Estadual Contra a Tortura (CECT) revelou, além da atuação policial constituída por agressões com conteúdo de raça, e de gênero contra as mulheres, o uso de bombas de gás lacrimogêneo, tendo como alvo inicial o local onde se encontravam idosos, mulheres e várias crianças, disparos de balas de borracha a curtas distâncias, à queima-roupa e acima da cintura, inclusive na cabeça e rosto, contrariando as próprias normas internas que disciplinam o uso da força no âmbito da BM.

Pedidos da ação
Além da reparação aos danos morais individuais e coletivos, inclusive por meio de um pedido público de desculpas ao povo Kaingang por parte do Estado e da Funai, o MPF elencou uma série de outros pleitos, confira abaixo:

– que a Justiça Federal sentencie o Estado do RS a não mais efetuar reintegração ou manutenção de posse que envolva (ou possa envolver) interesse ou direito indígena sem a presença de um representante da União ou da Funai – apto a mediar o conflito – e sem amparo em decisão judicial;
– que o RS, através do seu Instituto Geral de Perícias, promova a imediata adequação dos procedimentos para utilizar e aplicar o Protocolo de Istambul e seu Manual para a Investigação e Documentação Eficazes da Tortura e Outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes, bem como o Protocolo Brasileiro de Perícia Forense, e as diretivas previstas tanto na Recomendação nº 31, de 27 de janeiro de 2016, do CNMP, quanto na Resolução nº 414, de 2 de setembro de 2021, do CNJ;
– que a União e o Estado do RS sejam obrigados a publicar, no prazo de 30 dias, ato normativo e protocolo definindo parâmetros de atuação policial em policiamento de manifestações públicas, reintegração/manutenção de posse, seja em área urbana ou rural, pública ou privada, que envolva ou possa envolver interesse ou direito indígena. O MPF pede que “qualquer ação da Brigada Militar se dê com base em prévia orientação dos órgãos competentes e que quaisquer práticas, pela Brigada Militar, de técnicas ou táticas para atuação em manifestações e protestos públicos sejam completamente revisadas, atendendo às recomendações da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e do Escritório Regional para América do Sul do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH) com adoção de Protocolo operacional que respeite o princípio da dignidade da pessoa humana e os direitos de manifestação e de protesto”;
– que a União e o Estado do RS sejam obrigados a publicar ato normativo e protocolo definindo regras e orientações para o controle e uso de armas e instrumentos de menor potencial ofensivo de acordo com os protocolos internacionais e demais disposições nacionais, no âmbito de suas atribuições, e que envolva ou possa envolver interesse ou direito indígena, vedando seu uso em situações que sabidamente envolvam crianças e adolescentes e demais segmentos de maior vulnerabilidade social;
– que os atos normativos e protocolos referidos anteriormente observem todas as especificidades de gênero, cultura, raça e etnia, idade e quaisquer outros aspectos necessários, de maneira a conferir tratamento próprio e adequado a cada caso, de acordo com as disposições convencionais, constitucionais e infraconstitucionais próprias;
– que os atos normativos e protocolos referidos acima sejam elaborados com a participação da sociedade civil, em especial de representantes das comunidades indígenas no Rio Grande do Sul, através de grupo de trabalho paritário, com a realização de prévias audiências públicas, bem como preveja a formação e capacitação dos policiais militares e civis e do Departamento de Medicina Legal do Instituto Geral de Perícias;
– União e Funai devem ser obrigados a elaborar protocolo de atuação, em prazo a ser fixado em sentença, a ser utilizado em casos de mediação de conflito entre indígenas e o poder público ou entre indígenas e particulares;
– União e Funai devem ser obrigados a promover capacitações periódicas do seu quadro de servidores no território do Rio Grande do Sul, de forma a torná-los aptos a atuarem como negociadores ou mediadores nos aludidos conflitos.

A ação civil pública pode ser acompanhada na Justiça Federal do RS através do protocolo 5005009-62.2022.4.04.7104.

Arte: Secom/MPF

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