Porteira aberta: governo Bolsonaro reconhece 250 mil hectares de fazendas em Terras Indígenas

  • Em 16 de abril de 2020, a Funai publicou a Instrução Normativa nº 9, que permite o registro de imóveis rurais em Terras Indígenas ainda não demarcadas no Brasil.
  • Desde então, o Governo Federal já certificou e registrou mais de 250 mil hectares de fazendas em territórios de 49 povos indígenas ao redor do Brasil.
  • O Maranhão é o estado mais afetado, com 145 mil hectares de fazendas reconhecidos dentro de reservas indígenas; só a TI Porquinhos, onde habita o povo Apãnjekra Canela, teve 69 mil hectares impactados.
  • A normativa da Funai, associada ao discurso de campanha de Jair Bolsonaro, de “não demarcar nem um centímetro de Terras Indígenas” resultou numa crescente de invasões até em estados com territórios regularizados, como Mato Grosso, Pará e Roraima.

por Caio de Freitas Paes, em Mongabay

Um documento no Sistema de Gestão Fundiária do Governo Federal revela bem mais que uma disputa pela posse de cerca de 11 mil hectares no Cerrado do Maranhão. Desde 22 de março passado, o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) apura suspeitas em torno do registro de uma fazenda a 500 km da capital São Luís, no município de Fernando Falcão (MA). “Solicito cancelamento da referida parcela [fazenda], pois está sobrepondo ao imóvel do meu cliente”, pede uma das partes, como mostra o sistema do governo federal.

O problema é que o embate se refere a 11 mil hectares— equivalentes a quase três Parques Nacionais da Tijuca, no Rio de Janeiro — em terras declaradamente indígenas. No caso, a Terra Indígena (TI) Porquinhos, dos Apãnjekra Canela, em processo de demarcação pela Fundação Nacional do Índio (Funai) há 22 anos.

Se fosse antes do governo Jair Bolsonaro, o sistema federal teria bloqueado automaticamente registros como esse, pelo fato de se sobreporem a território indígena. Mas desde 16 de abril de 2020, quando a Funai publicou a Instrução Normativa nº 9, latifundiários podem obter certificados de registros federais de imóveis em qualquer Terra Indígena não demarcada do Brasil.

Foi graças a essa medida que, em 10 de dezembro de 2021, os donos da fazenda em solo Apãnjekra Canela conseguiram sua certificação pelo Governo Federal.

Os efeitos práticos da normativa da Funai impactaram este e mais outros 48 povos indígenas, segundo um relatório inédito obtido pela Mongabay. A análise, feita a partir do cruzamento de dados da Funai e do Incra, revela uma possível perda de Terras Indígenas maior que o dobro do município de São Paulo só nos últimos dois anos.

O relatório da consultoria GeoPrecisa, especializada no sistema federal de certificações e registros de imóveis, mostra que o governo Bolsonaro reconheceu mais de 250 mil hectares de fazendas dentro de reservas indígenas em demarcação, do norte ao sul do país, desde abril de 2020.

145 mil hectares de fazendas em solo indígena no Maranhão

A demarcação da TI Porquinhos é contestada na justiça desde 2009 pelas prefeituras de Barra do Corda, Fernando Falcão, Formosa da Serra Negra e Mirador, municípios maranhenses por onde se espalham os 220 mil hectares da Terra Indígena declarada pela Funai naquele ano.

Pouco depois, em 2014, o Supremo Tribunal Federal (STF) interrompeu a demarcação com base no marco temporal – tese pela qual os povos indígenas teriam direito apenas às terras que ocupavam até a data de promulgação da Constituição, em 1988. Nem a peregrinação de lideranças Apãnjekra Canela por gabinetes de ministros do STF, em 2019, serviu para resolver o impasse.

Por outro lado, as intrusões na reserva aumentaram – especialmente após a Normativa nº 9. Entre 16 de abril de 2020 e a mesma data em 2022, o governo certificou e registrou mais de 69 mil hectares de fazendas na Terra Indígena, segundo dados do Incra. A TI Porquinhos foi a mais impactada pela normativa da Funai em todo o Brasil no período.

As outras duas reservas mais atingidas são a TI Kanela/Memortumré, com 53 mil hectares potencialmente perdidos, e a TI Bacurizinho, com outros 23 mil hectares. As três ficam próximas, espalhadas em áreas remanescentes de Cerrado no Maranhão.

Ainda segundo o relatório da GeoPrecisa, oito dos dez maiores latifúndios beneficiados pela normativa da Funai em todo o país também ficam no estado, entre Cerrado e Amazônia. Uma região marcada pelo avanço da soja, onde grileiros, multinacionais e ruralistas disputam terras com comunidades tradicionais e povos indígenas.

“Na prática, o governo está dizendo que estas áreas não são Terras Indígenas”, diz Rafael Modesto, assessor jurídico do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) – uma das organizações que criticam a Instrução Normativa nº 9desde seu anúncio.

“O estado criou um problema para si, porque ele terá de retirar os intrusos, o que é sempre uma batalha”, afirma o assessor do Cimi.

Modesto destaca que “a Justiça Federal suspendeu a normativa no Maranhão, mas não anulou certificações e registros concedidos até então”. “Infelizmente tem sido a regra nos tribunais em todo o Brasil: suspendem a medida, mas não seus efeitos práticos”, diz.

No MS, indígenas podem ter perdido mais de 58 mil hectares

Como já foi relatado pela Mongabay, a Normativa nº 9 abalaria a luta de indígenas por suas terras no Mato Grosso do Sul. Passados mais de dois anos desde o anúncio da medida, dados da Funai e do Incra confirmam o avanço de intrusos no estado.

O Governo Federal reconheceu mais de 58 mil hectares de fazendas em áreas sob demarcação no Mato Grosso do Sul nos últimos dois anos. No mesmo período, o governo beneficiou imóveis em 20 das 26 Terras Indígenas declaradas, em estudo e identificadas pela Funai no estado.

Entre as mais impactadas está a Dourados-Amambaipeguá I, entre os municípios de Amambaí, Caarapó e Laguna Carapã. Ao todo, invasores conseguiram certificados do governo e registros de posse sobre mais de 12 mil hectares no território Guarani Kaiowá. Com mais de 56 mil hectares, a reserva fica no cone sul do estado, a menos de 150 km do Paraguai, conhecido pela violência contra indígenas.

“Infelizmente, o Mato Grosso do Sul é marcado pela força do agronegócio com o conservadorismo, algo que influencia os tribunais”, afirma Rafael Modesto, do Cimi. “Há magistrados que são grandes donos de terras, o que interfere na razão de suas sentenças.”

Também chama atenção o fato do Ministério Público Federal (MPF) ter entrado com pelo menos três pedidos na Justiça para barrar a normativa da Funai no estado. Mesmo quando aceitos, os pedidos foram derrubados em instâncias superiores, como o Tribunal Regional Federal no Mato Grosso do Sul.

“Há um processo de negação da pauta indígena muito forte no estado”, afirma o procurador Ricardo Pael, que atua junto à câmara temática do MPF voltada aos direitos dos povos indígenas. Ele aponta como, no Mato Grosso do Sul, há episódios de “indígenas retirados [de suas terras] por milícias rurais e que, em muitos casos, vão a delegacias para denunciarem, mas saem delas como investigados – não como vítimas”.

 “Muita gente invade na expectativa de que os territórios deixarão de ser indígenas”

Dois expoentes do agronegócio no Governo Federal bancaram a Instrução Normativa nº 9: o presidente da Funai, Marcelo Xavier, e o secretário especial de Assuntos Fundiários, Nabhan GarciaO órgão indigenista tem alegado que a medida serve para “corrigir inconstitucionalidades”, pois o bloqueio automático de registros em terras em demarcação impede “o usufruto pleno” dos supostos proprietários.

Na prática, a medida permitiu que fazendeiros, garimpeiros e grileiros invadissem e registrassem imóveis em terras declaradas, em estudo e identificadas pela Funai, além daquelas com restrição de uso para localização e proteção de povos isolados.

“A Normativa nº 9, associada ao discurso de campanha do governo, de ‘não demarcar nem um centímetro de Terras Indígenas’ e ‘rever demarcações’, resultou numa crescente [de invasões]até em estados com territórios regularizados, como Mato Grosso, Pará, Roraima”, afirma Ricardo Pael, do MPF.

“Muita gente invade na expectativa de que os territórios deixarão de ser indígenas”, diz o procurador, que alerta para impactos indiretos, com insegurança jurídica para “bancos e o mercado imobiliário rural”.

“Por exemplo: bancos estão em risco ao oferecerem empréstimos àqueles que usam as propriedades [beneficiadas pela Normativa nº 9] como garantia — e podem fazê-lo sem saber que aquilo será reconhecido como terra indígena”, diz Pael.

Para o MPF, a Normativa nº 9 “favorece a grilagem de terras públicas e agrava conflitos agrários”, além de “violar direitos constitucionais dos povos indígenas”. Procuradores entraram com mais de 25 processos contra a medida, mas, até o fechamento deste texto, apenas oito estados proibiram seu uso.

Focos de incêndio na TI Porquinhos (MA). Foto: Ibama/divulgação.

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