Assassinato de Bruno e Dom ocorre em meio à destruição da FUNAI

Análise traz contexto de violência e ameaças contra direitos indígenas e faz parte de uma série que será publicada sobre o assassinato de Bruno Pereira e Dom Phillips

Por Janelson Ferreira*, na Página do MST

Na noite desta quarta-feira (15), foram confirmadas as mortes do indigenista Bruno Pereira, 41 anos, e do jornalista Dom Phillips, 57 anos. A Polícia Federal informou que Amarildo da Costa de Oliveira, conhecido como “Pelado”, confessou o assassinato de ambos. O homem está detido pela polícia desde o último dia 7. 

Segundo o delegado Eduardo Alexandre Fontes, superintendente regional da PF, Pelado assumiu que teria matado e enterrado a dupla. O local do crime fica em uma área de difícil acesso no Vale do Javari, terra indígena que fica no extremo oeste do estado de Amazonas, na divisa entre o Brasil, Peru e Colômbia. O irmão de Pelado, Osaney da Costa Oliveira, conhecido como “Dos Santos”, também foi detido nesta terça-feira (14) por suspeita de envolvimento no crime. Ele não confessou sua participação. 

No dia 5 de junho, Dom Phillips e Bruno Pereira foram vistos pela última vez, quando deixaram a comunidade São Rafael, localizada às margens do Rio Itaquaí. Eles estavam na região coletando depoimentos sobre a ocorrência de crimes ambientais. Ambos saíram rumo à Atalaia do Norte, por volta das seis horas da manhã. A viagem, que deveria percorrer um trajeto de 70 km pelo leito do rio e durar cerca de 2h em um barco. Contudo, eles nunca chegaram ao destino final. 

Após a confissão do assassinato, Pelado, que, segundo seu próprio depoimento, é pescador há mais de 30 anos mora em São Rafael há dez, levou agentes da Polícia Federal até o local do crime. De difícil acesso, a localização está a 3 quilômetros mata adentro, a partir do Rio Itaquaí. Os remanescentes humanos encontrados estão em Brasília para perícia e, em seguida, serão restituídos às famílias, assim que comprovada a identidade. 

“O contexto atual na Amazônia é de terror”, afirma Claudelice da Silva Santos, liderança agroextrativista e coordenadora do Instituto Zé Cláudio e Maria, organização para preservação ambiental, localizada no Pará. Segundo Claudelice, o assassinato de Bruno e Dom não é um fato isolado, mas uma situação que se intensifica após a eleição de Bolsonaro. 

Para a coordenadora, antes do governo Bolsonaro, havia um certo controle e fiscalização sobre as atividades ilícitas praticadas na floresta. “No entanto, com este governo, este controle simplesmente, deixou de existir. Então a garimpagem, grilagem, pistolagem tomaram uma proporção muito grande”, denuncia. 

Claudelice coordena o Instituto que leva o nome de seu irmão, José Cláudio Ribeiro dos Santos, e de sua cunhada, Maria do Espírito Santo. Ambos foram assassinados em 2011 por denunciarem a grilagem de terras e exploração ilegal de madeira na floresta Amazônica. “Apesar de 11 anos separarem os dois casos, eu vejo muitas semelhanças, e a principal delas é a completa omissão do Estado”, explica. 

Para ela, Bolsonaro nunca se preocupou em proteger a Amazônia. “Várias vezes ele já defendeu garimpeiros, madeireiros, é alinhado com diversos políticos que são completamente contra indígenas e as populações que lutam pela terra e pelas águas”, lembra Claudelice. 

O governo federal dá “carta branca” à grilagem de terras, extração ilegal de madeira, garimpagem ilegal e apoia as ameaças e violências contra defensores de defensoras de direitos humanos, não punindo quem as pratica. É o que afirma Jesus Gonçalves, advogada e militante do Setor de Direitos Humanos do MST. 

“Na Amazônia, todo aquele que se contrapõe a esse projeto de morte posto pelo capitalismo e denuncia o que aqui ocorre, acaba, em algum momento, sendo ameaçado”, explica Gonçalves.

Bolsonaro orquestra ação de destruição da Funai

Durante sua campanha para presidente, Bolsonaro chegou a afirmar que, se dependesse dele, não demarcaria nenhum centímetro de Terra Indígena (TI). E sua promessa foi cumprida. No comando do governo, nomeou como presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai) Marcelo Augusto Xavier da Silva. Delegado da Polícia Federal, Xavier foi afastado das operações policiais em 2014, sob a suspeita de proteger não-indígenas na TI Marãiwatsédé, localizada no Mato Grosso. Desde que o delegado assumiu o comando da autarquia, a Funai não demarcou nenhuma nova TI, além de emperrar o andamento de processos de várias outras. 

Em uma audiência pública realizada no Mato Grosso do Sul, o delegado chegou a afirmar que ele estava no principal órgão indigenista do país para atender aos interesses de fazendeiros. “Eu quero aqui trazer o recado a todos vocês, que confiem no presidente da Funai”, afirmou Xavier.

Conforme explica Claudelice da Silva Santos, Bolsonaro, simplesmente, destruiu órgãos que realizam alguma proteção à Amazônia. “Como considerar quem age desta forma alguém interessado em proteger a floresta?”

“A Funai é um caso gritante da prática de destruição de políticas que foi acionada em nível federal no Brasil durante o ciclo governamental 2019-2022”. É o que afirma o dossiê Fundação Anti-indígena: um retrato da FUNAI sob o governo Bolsonaro”, publicado neste mês de junho e elaborado pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos, Inesc, em conjunto com a associação Indigenistas Associados, INA, que representa servidores do órgão federal.

Segundo o documento, há uma série de estratégias que são colocadas em prática para desmontar a autarquia. A primeira delas é a destruição de agências especializadas, o que acaba neutralizando o saber específico. Como parte desta destruição está a perda da atrbuição do órgão de identificar e delimitar as terras indígenas, função que agora cabe à Secretaria Especial de Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, historicamente sob o controle da bancada ruralista.  

A segunda forma de desmonte está ligada à supressão de recursos orçamentários para a temática indígena. Ao realizar uma análise do Orçamento Geral da União em 2021, o Inesc demonstra que, ainda que não seja possível verificar um corte muito significativo do orçamento destinado ao órgão, percebe-se uma distorção no que diz respeito à aplicação final do recurso. De acordo com a publicação, “os recursos executados na ação orçamentária que deveriam garantir a proteção territorial e fazer avançar a demarcação de terras indígenas têm sido utilizados para beneficiar os invasores dessas terras”. 

Na prática, o que o órgão está fazendo é destinar cerca de 45% dos recursos que deveriam ir para ações de proteção dos territórios indígenas (como fiscalização, monitoramento e pagamento de diárias de servidores) para indenizar benfeitorias de invasores de Terras Indígenas. Somente em 2020, foram pagos mais de 12 milhões para benfeitorias realizadas por invasores sobre TI.  Enquanto isso, apenas 58 mil reais foram voltados para identificação e delimitação de TIs. 

Já a terceira estratégia para desmontar a Funai diz respeito à perseguição a servidores de carreira e a sua substituição por profissionais sem experiência alguma na área. Esta substituição acabou gerando um processo de militarização do órgão federal, de modo que das 39 Coordenações Regionais do órgão, apenas duas são chefiadas por servidores civis – outras 24 são coordenadas por oficiais das Forças Armadas e policiais militares ou federais. 

O órgão, ao mesmo tempo que é aparelhado por militares, sofre com a defasagem de funcionários. Tendo em seu quadro o número total de 1.700 funcionários efetivos, em 2020, a autarquia possuía 2.300 cargos vagos.

Mesmo sendo um dos melhores quadros da Funai, Bruno foi exonerado

É neste contexto que o indigenista Bruno Pereira foi afastado de suas funções na Funai. Ele era considerado um dos maiores especialistas em povos isolados ou de recente contato do Brasil. Servidor da Funai desde 2010, ele ingressou a partir de um dos últimos concursos públicos realizados pelo órgão.

Bruno foi coordenador regional da Funai no Vale do Javari até 2016, quando, após um conflito entre indígenas isolados, foi exonerado. Em 2018 ele passou a assumir a coordenação geral dos povos isolados, em Brasília. Foi durante sua coordenação que a Funai realizou o maior contato com indígenas nesta condição em 20 anos.

Em setembro de 2019, em parceria com o Ibama e a Polícia Federal, Bruno coordenou uma operação para conter o avanço de dragas de garimpeiros ilegais que avançavam sobre o Vale do Javari. A operação, que foi considerada um sucesso, destruiu 60 balsas de garimpo.

No entanto, um mês após a operação, Bruno foi exonerado da Funai. A autarquia justificou a exoneração como natural, devido à troca da presidência do órgão. Após sua exoneração, assumiu a função de consultor da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja). Foi neste mesmo período que as ameaças de morte começaram contra o indigenista. 

“O governo Bolsonaro é o grande incentivador de todos os tipos de crimes ambientais que ocorrem hoje na Amazônia”, afirma Jesus Gonçalves. A advogada ainda assinala que o caso de Bruno não é isolado. “O que aconteceu com o Bruno ocorre diariamente com quem tenta cumprir seu papel como servidor público de alguns dos órgãos fiscalizadores – ICMBio, FUNAI, Ibama, INCRA – nesta região”, ressalta. 

Ilustrando o que afirma a advogada, Bruno não foi o único que esteve na coordenação da operação contra o garimpo ilegal e que foi exonerado de suas funções públicas. Em abril de 2020, Hugo Loss, coordenador de operações de fiscalização do Ibama (Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis) também teve o mesmo destino.

Para Claudelice da Silva Santos, este tipo de ataque aos funcionários públicos afeta diretamente as comunidades atendidas. “Isto vai na ferida das comunidades que precisam do trabalho destes funcionários comprometidos”, explica Claudelice. “Lógico que este tipo de funcionário não ficaria, porque esse governo quer funcionários alinhados com o crime. E Bruno enfrentava isso”, lembra.

O assassinato de Bruno e Dom não foi o primeiro caso de violência contra servidores da Funai alocados na região. Em setembro de 2019, Maxciel Pereira dos Santos, que era servidor da Funai, foi assassinado em Tabatinga, AM. Na época, Maxciel trabalhava no Vale do Javari e foi baleado com dois tiros na cabeça. Até hoje o crime não foi solucionado

Dois meses após a morte de Maxciel, Bruno e outros servidores da Funai alertaram a Defensoria Pública da União sobre a insegurança na região. Na notificação, era relatado que a base de Ituí, que fica na região, já havia sido atacada 8 vezes em 12 meses.  

Ameaças contra Bruno se intensificaram após ações contra crimes ambientais

A partir da realização de operações contra o garimpo ilegal junto com indígenas, Bruno passou a receber uma série de ameaças. Uma destas ameaças foi feita por meio de carta, destinada à Univaja. Na carta, o autor afirma saber que Beto Marubo, membro da Univaja, e Bruno eram os responsáveis pelas apreensões de seus motores e peixes. “Se continuar desse jeito, vai ser pior para vocês”, segue em um outro trecho. “Se querem dar prejuízo, melhor se aprontarem”, finaliza o autor da carta. 

Em 2021, a partir da organização de equipes de vigilância e proteção, formadas por indígenas matises, kanamaris, mayorunas, kulinas e marubos, o indigenista coordenava ações de prevenção a crimes ambientais na Terra Indigena. Ao ser assassinado com Dom Phillips, ele levava uma série de provas contra estes crimes. 

Em abril deste ano, Bruno fez parte de um grupo que realizou um mapeamento do Vale do Javari, buscando idenficar os casos de pesca ilegal. O trabalho foi entregue à Polícia Federal e ao Ministério Público Federal (MPF). De acordo com este mapeamento, Pelado e dos Santos estavam envolvidos em crimes na região ligados à pesca ilegal. 

Bruno também relatou ao MPF que estava recebendo ameaças de grupos criminosos que atuavam no Vale do Javari. Uma das hipóteses levantadas acerca do assassinato de Bruno e Dom é que a morte deles pode ter sido motivada por estas ações de combate à pesca ilegal coordenadas por Bruno. 

“Trabalho lá há 11 anos e nunca vi uma situação tão difícil. Os indígenas dizem que hoje a quantidade de invasões é comparável à do período anterior à demarcação. Por isso é absolutamente necessário que os indígenas busquem suas formas de organização, montando um esquema de monitoramento capaz de frear conflitos violentos”, afirmou Bruno ao MPF. 

“Bruno hoje é o grande exemplo, infelizmente, mas não é o único. Os órgãos estão todos sucateados, sem orçamento e permissão para ações mais efetivas”, destaca Jesus Gonçalves. 

“Esta é uma tentativa de silenciamento antiga, mas, no governo Bolsonaro está especialmente cruel, nos rasga a carne”, finaliza Claudelice da Silva Santos.

* Esta é a primeira parte de uma série que será publicada na página do MST sobre o assassinato de Bruno Pereira e Dom Phillips. A série buscará abordar elementos que destaquem o cenário político, social e econômico que o Brasil vive atualmente e que estão conectados com as mortes do indigenista e do jornalista.

*Editado por Fernanda Alcântara

Foto: Evaristo Sá/AFP

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