Autor de novo livro sobre racismo, Edson Lopes Cardoso afirma que não é possível defender a democracia sem lutar pelo fim dos preconceitos raciais, que impactam não apenas os negros e travam o desenvolvimento do Brasil
por Edison Veiga, em DW
Coordenador do Ìrohìn – Centro de Documentação e Memória Afro-Brasileira, o letrólogo, comunicador e educador Edson Lopes Cardoso é um intelectual capaz de fazer uma análise completa do movimento negro brasileiro de um ponto de vista necessário: o de quem sempre militou pela causa dos afrodescendentes brasileiros.
“É a partir de 1988 que se pensa afro-brasileiros e indígenas como seres históricos. Antes, a história era europeia e branca”, contextualiza Cardoso. “[O Brasil é] Uma sociedade que negou historicidade aos vistos como menos humanos, onde se afirmou sempre a historicidade dos dominantes.”
Cardoso acaba de lançar o livro Nada Os Trará de Volta – Escritos Sobre Racismo e Luta Política, uma coletânea de 151 artigos escritos nas últimas quatro décadas, em que procurou analisar a maneira como a sociedade brasileira trata grupos minoritários, sobretudo aqueles que sofrem preconceito racial.
Uma discussão que, conforme ele pontua, tem tudo a ver com a democracia — e deveria estar no centro do debate eleitoral. “Um país não pode se dar ao luxo de pegar sua juventude e simplesmente jogar na vala e no lixão, como a população brasileira vem fazendo com a sua população negra há décadas. O que isso significa em termos de perda de capital humano, de possibilidades de realização e de desenvolvimento para um país?”, diz o intelectual.
“O racismo é um obstáculo para o conjunto da sociedade, não só para os negros”, ressalta em entrevista à DW Brasil. “Se discutir democracia não é isso, essa discussão é falsa, é idiota. Estamos discutindo a afirmação plena de humanidade e possibilidade de realização humana.”
DW Brasil: Como o senhor espera que as discussões sobre o racismo estrutural do Brasil permeiem o debate eleitoral neste 2022 de tanta polarização?
Edson Lopes Cardoso: Eu penso de maneira otimista. Com o governo de Jair Bolsonaro, se ampliou uma preocupação com a democracia. Há a aglutinação de forças democráticas. Como a democracia está no centro do debate, na oposição ao Bolsonaro, imaginamos que, em um país de maioria negra, o tema da hierarquização racial de uma sociedade democrática e igualitária possa ter alguma chance. Porque numa sociedade que tem dificuldade para definir ainda se todos são igualmente humanos ou não, evidentemente que o racismo é [tema] central. A meu ver essa é a questão central.
Esperamos que, com a derrota desse projeto que está aí, se abram possibilidades e se converse efetivamente sobre uma democracia. Porque o racismo e a democracia não têm como conviver, como querem aqui no Brasil. Como conviver postulados de uma sociedade igualitária com uma ideologia que hierarquiza humanos? Não pode, não pode. Se você é democrata, você é antissexista e antirracista, pois são ideologias hierarquizadoras do humano.
Nas últimas décadas o Estado brasileiro implementou medidas afirmativas para buscar inserir o negro de forma mais plena na sociedade, como as cotas raciais. No atual governo, há retrocessos?
Total, total.
Em aspectos práticos ou simbólicos?
Veja o caso que está acontecendo com os assassinatos na Amazônia [do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips]. Há cargos estratégicos na Funai ocupados por militares e policiais. Indigenistas, antropólogos, pessoas da área foram afastadas. A mesma coisa ocorre em outras áreas. Isso afeta as cotas, quando afeta a assistência estudantil. As cotas foram importantes porque, pela primeira vez, houve uma política pública que era em benefício da população negra. As cotas das universidades são a única política que eu conheço que se afirma em benefício da população negra.
Com as cotas foram ampliadas as possibilidades, e houve então a quebra de padrões de racismo muito fortes, como a ideia da inferioridade intelectual, uma pedra de toque do racismo. Isso influencia na luta. Mostra os caminhos e possibilidades que temos como população.
Um país não pode se dar ao luxo de pegar sua juventude e simplesmente jogar na vala e no lixão, como a população brasileira vem fazendo com a sua população negra há décadas. O que isso significa em termos de perda de capital humano, de possibilidades de realização e de desenvolvimento para um país? O racismo é um obstáculo para o conjunto da sociedade, não só para os negros. Se discutir democracia não é isso, essa discussão é falsa, é idiota. Estamos discutindo a afirmação plena de humanidade e possibilidade de realização humana.
Mas em que medida podemos falar que houve retrocesso?
Simplesmente os órgãos não existem. A Fundação Palmares perdeu sua função real, assim como a área da cultura. Simplesmente os órgãos não funcionam. Solapa-se o financiamento, desviam-se recursos, colocam-se pessoas que não são as adequadas para cumprir tarefas. Formalmente, o cargo está ocupado, mas você vai ver e é um militar estúpido que nada tem a ver com nada. É um momento muito delicado.
Em um dos artigos do livro Nada Os Trará de Volta – Escritos Sobre Racismo e Luta Política, o senhor traz dados estatísticos de que 70% dos jovens assassinados no Brasil são negros. O título do texto é Pouco Adianta Falar. Se pouco adianta falar, o que podemos fazer?
Você pega a política de segurança pública nesse contexto nosso e não coloca a luta contra o racismo no centro da política, então não está falando de Brasil. Precisamos fazer uma análise do quanto essa violência racial cumpre o controle da população negra no Brasil, de espalhar o terror. Nosso cotidiano é atravessado pelo terror. Esse estado é permanente entre nós, e isso não entra na política. Esperamos que, com uma representação negra mais fortalecida, esse tema possa ser discutido.
Que sociedade é essa? Que criminaliza a aparência? Porque se trata de criminalizar a aparência. Isso ocorre o tempo inteiro, o tempo inteiro, há décadas. Você está à mercê de uma violência institucional. Não é uma violência qualquer, é uma violência fardada, paga, do Estado.
“Não adianta falar” porque é preciso mais representação política?
Exatamente. Não se trata só de denunciar, é preciso ação efetiva. Os partidos precisam dar conteúdo real a suas belas palavras sobre democracia, comunidade. Não se pode continuar falando de sociedade brasileira sem enxergar esse viés desumanizador dessas hierarquizações.
Em uma sociedade igualitária não seria preciso nem de movimento negro, certo? Seria uma sociedade com políticos negros de todos os espectros…
Concordo. Quem vê a cor da pele como decisiva é o racismo. Se você vive numa sociedade em que o racismo não dá as cartas, a cor da pele não diz de uma pessoa. Cor da pele e nada é a mesma coisa. Cor da pele não significa nada no ser humano, é adaptação ecológica e só. No racismo é que ela é essencial. A sociedade para qual eu luto é aquela em que a cor da pele não tenha significado nenhum. A transformação social é lenta. Mas essa eleição vai trazer avanços.
Nas últimas décadas, houve uma transferência da data mais importante para o povo negro no Brasil, antes o 13 de maio, da abolição da escravatura, para o 20 de novembro, da morte de Zumbi dos Palmares, da Consciência Negra. De que forma Palmares representa a ideia de formação identitária do negro brasileiro?
É a partir de 1988 que se pensa afro-brasileiros e indígenas como seres históricos. Antes, a história era europeia e branca. [O Brasil é] uma sociedade que negou historicidade aos vistos como menos humanos, onde se afirmou sempre a historicidade dos dominantes. Zumbi é o resgate de uma história, é a afirmação de que somos seres históricos, e seres históricos lutando contra a escravidão. Zumbi tem um significado de afirmação coletiva e, ao mesmo tempo, impulsionadora de humanidade. Porque há um limite de Zumbi e de Palmares. Eles não aceitam voltar à escravidão. Zumbi é uma página da história humana, o ser humano que, entre a morte e a escravidão, prefere a morte. Ali é um grande momento de afirmação humana. Não há nada ali que seja não digno de evocação, evocação coletiva.