O sertanista Sydney Possuelo conhece a Terra Indígena Vale do Javari com a palma de sua mão, o território onde vivem povos de recente contato e isolados que ele trabalhou para demarcar e homologar, em 2001. Nesta entrevista exclusiva à agência Amazônia Real, Possuelo ajuda a esclarecer circunstâncias que levaram ao desaparecimento e mortes do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips, no dia 05-06-2022, além de ressaltar a importância do conhecimento e iniciativas da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja) para os resultados obtidos até agora nas investigações sobre os assassinatos. Entre o território indígena e a sede de Atalaia do Norte, no oeste do Amazonas, existem várias comunidades ribeirinhas, muitas vezes habitadas por pessoas que contribuem com os crimes ambientais e até mesmo por narcotraficantes.
Por Cristina Ávila, publicada por Amazônia Real, no IHU
Para Possuelo, a Polícia Federal desconsiderou as informações dos indígenas e foi precipitada ao declarar o caso como encerrado antes da conclusão. “Poderiam (a Polícia Federal) ter feito referência à Univaja, que colocou tudo na mão dos policiais. E não fizeram nenhuma referência. Não disseram ao menos ‘obrigada’. Essa foi uma demonstração de desprezo e arrogância. Foi marcante”, diz.
Pertences pessoais e roupas de Bruno e Dom foram descobertos numa região de mata densa e com igapós após indígenas da vigilância da Univaja apontarem os vestígios. Os corpos do indigenista e do jornalistas foram encontrados após o pescador Amarildo de Oliveira, o “Pelado”, confessar os crimes. Nesta quarta-feira (22), a Polícia Federal comunicou que os restos mortais de Dom Phillips e Bruno Pereira serão entregues amanhã às famílias para os sepultamentos.
Perto da fronteira com o Peru, no extremo oeste do Amazonas, a confluência dos rios Ituí e Itacoaí é estratégica na Terra Indígena Vale do Javari. Mostrando o mapa hidrográfico, o sertanista Sydney Possuelo deixa claro por que escolheu o local para instalar ali uma Frente de Proteção Etnoambiental, nos anos 80. “Subindo o Itacoaí em duas horas se chega de barco a Atalaia do Norte. E por esses dois rios se alcança o coração do território”. O desenho serpenteado de um V invertido, tem no vértice o local onde ele criou a base da Fundação Nacional do Índio (Funai). Os dois rios cruzam toda a terra tradicional que é habitada por sete povos originários (entre eles um de recente contato) e duas dezenas de grupos em isolamento voluntário, mas representam também acesso a lagos e florestas exploradas ilegalmente por caçadores, pescadores e madeireiros.
“Com a Frente de Proteção Etnoambiental, fechamos o Vale do Javari”, conta Possuelo. Por algumas décadas, este ponto de vigilância da Funai conseguiu reduzir drasticamente a passagem obrigatória por ali dos barcos carregados do roubo dos recursos naturais: peixes, animais silvestres e madeira. Ele considera que hoje o local representa o “beneplácito” do saque ao patrimônio indígena, estimulado pela postura de Jair Bolsonaro (PL) com “declarações de quase guerra” aos povos originários.
Sydney Possuelo trabalhou 42 anos na Funai e em 1987 criou o Departamento dos Índios Isolados, substituído depois pela Coordenação Geral de Índios Isolados e de Recente Contato (CGIIRC). Foi presidente do órgão do governo federal entre 1991 e 1993 e uma das principais marcas deixadas por ele na política indigenista foi acabar oficialmente com os contatos com indígenas isolados pelas então chamadas frentes de atração, passando a apenas monitorá-los para proteção física e cultural.
Em 17 março deste ano, Sydney Possuelo devolveu ao governo federal a medalha e diploma de Mérito Indigenista que recebeu do Ministério do Interior em 1987, por “relevantes serviços prestados à causa indígena”. A devolução foi uma resposta à concessão da mesma honraria a Bolsonaro. “O presidente já desferiu elogios à cavalaria norte-americana por sua competência em dizimar indígenas antes de se tornarem problema para o país”, justificou o sertanista.
Eis a entrevista.
As famílias ribeirinhas, sendo a maioria de pescadores, que moram nas comunidades São Gabriel e São Rafael, viviam antes dentro da terra indígena Vale do Javari? O senhor pode nos contar como foi a desintrusão (retirada) dessas áreas?
Nem todos moravam lá. Principalmente os moradores atuais, não moravam lá. Os que moravam quando fechamos o Vale do Javari para paralisar os saques de recursos naturais, como madeiras, peixes, todos esses saques, todos foram retirados do território indígena. Quando criei a Frente de Contato Vale do Javari (atual Frente de Proteção Etnoambiental), tirei todos os moradores não-indígenas. Essas comunidades já existiam, em tamanho um pouco menor talvez, mas os que tinham permanência lá foram todos retirados. Eram pessoas egressas de outras regiões, fora do Vale do Javari, principalmente vinculadas a Tabatinga, Atalaia do Norte, Benjamin Constant. Na desintrusão não houve violência. Falávamos com eles, e iam saindo. O último, eu lembro e tenho ainda imagens, morava num flutuante, bem próximo à confluência do Ituí e Itacoaí. Fui a esse homem umas três vezes. Na última, fui com o barco, dei bom dia, fui entrando e meti o cabo pra rebocar a casa.
Como era esse homem?
Era um ribeirinho. Morava ali com a família. Como todo ribeirinho, que pode ser eventualmente um caçador, pescador e preposto de uma madeireira. Naquela época as coisas não eram tão organizadas. Subiam barcos carregando tudo salgado, carnes de peixe e de caça. Não tinham freezers e outros equipamentos de refrigeração como é hoje. Era tudo livre, entravam, pescavam, caçavam. Todo mundo entrava e saía, não tinha garimpo como hoje. Violência sempre teve, é uma região de conflito, de vários interesses. Com aquelas cidades próximas, como Tabatinga, Benjamin Constant, Atalaia do Norte, com grande parte do comércio alimentado pela madeira, caça e pesca do território indígena.
E como o Estado estava presente na região quando você foi trabalhar lá nos anos 80?
Fui administrar toda a região, o Solimões e o Vale do Javari, na Base Avançada de Operações do Alto Solimões, fixa em Atalaia do Norte. Morei lá com a família. Meu primeiro filho, Rodolfo, tinha dois anos. Fiquei lá talvez um ano ou perto disso. Estive lá por duas vezes. A primeira, nos anos 70, emprestado pela Funai à Coama (Coordenação da Amazônia) que existiu porque, naquele tempo do “Brasil, ame-o ou deixe-o”, os militares começaram a abrir várias frentes de contato para a abertura de estradas como a Transamazônica e a Perimetral Norte (BR-210). Muitos sertanistas e funcionários da Funai eram chamados para ver se haviam grupos indígenas isolados ou dar apoio às equipes de topógrafos que eram sempre as primeiras a chegar.
Os funcionários da Funai iam para fazer a segurança?
Sim. Segurança para os brancos invadirem as áreas indígenas. Tive um desentendimento com o coordenador da Coama, general Demócrito (Soares de Oliveira). Eram previstas umas três ou quatro frentes de contato que seriam abertas no roteiro da Perimetral Norte, que passaria em cima da Terra Indígena Vale do Javari. Eu estava lá. Viajei para a área, subi este rio. Naquela época era difícil ter aviões para a fiscalização, não tinham recursos financeiros, mal se tinha para barcos e combustível. Julguei que não era necessário fazer contato com os índios que na época eram isolados e viviam no Vale do Javari. O general Demócrito foi fazer uma visita na área e esteve comigo. Me perguntou: ‘você já iniciou a frente de contato?’ Eu disse que não havia necessidade. Ele ficou muito brabo comigo e me devolveu pra Funai. Posteriormente voltei à região já para fechar o Vale do Javari, com a criação da base na confluência dos rios Ituí e Itaquaí, nos anos 80. Criei ainda um outro local subordinado a essa base, um posto no rio Quixito. E criei também um sistema de comunicação com torres, vários barcos, montei a Funai no território, muito bem estruturada.
O Manoel Vitor Sabino da Costa, “Churrasco”, foi uma pessoa que morou na terra indígena? Ele é tio de Amarildo de Oliveira, o “Pelado”, que assumiu as mortes de Dom e Bruno.
Eu não sei se o Churrasco morou no território. Sei que morou numa dessas comunidades onde aconteceu esse conflito. Mas é um dos invasores constantes da terra indígena. Geralmente eles não moram no território indígena, mas hoje tem o beneplácito dessa frente etnoambiental que foi colocada exatamente para impedir a entrada de barcos na TI Vale do Javari. Como foi o caso das 40 ou 60 balsas (de garimpo) que foram destruídas (no rio Jandiatuba por ordem de Bruno Pereira poucos dias antes de ser destituído como coordenador de Índios Isolados e de Recente Contato da Funai, em 2019). Ninguém o vê entrar? Isso acontece já dentro dessa coisa bolsonarista. A TI é cheia de lagos e lagoas exploradas por pescadores ilegais. Recentemente foi morto na região o funcionário da Funai Maxciel (Pereira dos Santos, em 2019).
Nos conte como foram os outros conflitos entre indígenas e não-indígenas dessas comunidades?
Um dos conflitos foi o massacre de ribeirinhos contra os Korubo. Mataram três Korubo (em 1986, na confluência do Ituí e Itacoaí). Foram mortos na beira do rio e enterrados na areia. O rio encheu e a Funai descobriu e desenterrou os corpos. Naquela oportunidade foi instaurado inquérito, arrolados agressores. Mas ninguém foi punido. E esse é um dos poucos massacres de indígenas em que se encontram os corpos. A Polícia Federal esteve lá. Mas a Justiça não fez nada. O crime ficou impune.
Por que você resolveu fazer o contato dos Korubo em 1996?
Quando fui pra lá foi o mesmo momento em que havia um grupo de Korubo, que na época não sabíamos quem eram, que atacava, provocando várias mortes de brancos que entravam na terra indígena. Eles entravam e se confrontavam. Os índios reagiam à penetração em suas terras. A última morte foi de um homem perto do posto do rio Quixito. Depois eles atacaram uma canoa com três pessoas. Quando nós chegamos, éramos mais um dos invasores de seu território. Sabíamos que cedo ou tarde descobririam que estávamos ali e antes que nos atacassem eu descobri a maloca deles e fiz o contato, me apresentei aos índios (com tradução dos Matís que auxiliavam a equipe). Três ou quatro meses depois mataram Sobral (como era chamado Raimundo Batista Magalhães, morto em 1997), que trabalhava comigo havia 17 anos. Eu fui para fazer a logística para o contato. Se não houvesse o contato, os ataques seriam piores. Os indígenas chegaram do lado do Ituí, nós estávamos na outra margem. Já tínhamos nos encontrado algumas vezes. Nós levávamos coisas pra eles. Mas desta vez, uns quatro homens atravessaram o rio. Eles tinham se preparado, escondido várias bordunas (pedaço de madeira cilíndrico). Sobral foi morto na primeira pancada. Os Korubo têm uma força incrível e as bordunas são feitas de madeiras muito resistentes.
E qual o motivo de terem matado Sobral, se já havia sido feito o contato e havido outros encontros, com oferecimento de presentes?
Não se sabe o motivo. Teríamos que perguntar pra quem matou. Mas teoricamente. Não temos esta certeza. Se ficamos fazendo perguntas como essa, sobre quem matou, eles pensam que estamos perguntando para nos vingar. A vingança é a justiça deles. Eles não são como nós, que criamos uma parafernália imensa para buscar justiça e, assim, com tudo isso acabamos vivendo na injustiça.
As equipes da Funai estão desestruturadas. O que será dos povos isolados?
Se esse ciclo de violência, invasões e mortes não for estancado imediatamente, o que se pode prever é o desaparecimento de índios isolados que estão à mercê de invasores, escudados apenas em seus elementares meios de defesa. Os Korubo não têm arco e flecha, lutam corpo a corpo. Se não se reverterem essas ações contra os povos indígenas a tendência é o desaparecimento.
Como o senhor avalia as investigações das mortes do Dom e Bruno até aqui?
As investigações foram acompanhadas a par e passo pela Univaja. Inclusive meu filho Orlando foi quem me deu a informação do desaparecimento do Bruno (5 de junho), porque o esperava às 10h daquele dia. Os dois tinham as mesmas funções, de proteção aos indígenas e atividades correlatas. Quando viu que Bruno não chegou, pegou o barco em Atalaia do Norte e fez o mesmo percurso que deveria ser feito por Bruno, constatando o desaparecimento. Viu que alguma coisa tinha acontecido, sentindo o pior. Os indígenas estão o tempo todo denunciando violências de invasores. Se roçam, se atritam o tempo todo. Sabem como é perigosa a região.
E a pressão da PF em encerrar as investigações, sabendo que aquela região tem o crime organizado e pesca ilegal?
A ideia é que estão apressados. Esse é também meu sentimento. Quando a Polícia Federal anuncia os assassinos e diz que não há mandantes, admito que até possa não haver mandantes, mas o anúncio foi precipitado. Não houve conclusão de inquérito. Não é atitude própria das polícias. Nos aspectos operacionais, a Polícia Federal até trabalhou bem. Mas foi orientada pelos indígenas. O trabalho da polícia se deve ao conhecimento dos indígenas que começaram as buscas imediatamente quando foram avisados sobre o desaparecimento de Bruno e Dom Phillips (no mesmo dia, em 5 de junho). Isso não foi dito no encontro que a PF e outros órgãos públicos promoveram em Manaus (AM). Poderiam ter feito referência à Univaja, que colocou tudo na mão dos policiais. E não fizeram nenhuma referência. Não disseram ao menos ‘obrigada’. Essa foi uma demonstração de desprezo e arrogância. Foi marcante. São três anos da morte de Maxciel, fuzilado no meio da rua em Tabatinga. E o que aconteceu? Nada. Os bandidos se sentem protegidos permanentemente pelo presidente da República quando ele diz que a cavalaria americana foi muito eficiente por matar os índios, e o Brasil não. Essa é uma declaração de quase guerra contra os povos indígenas, um comportamento genocida. Os bandidos andam armados dentro dos territórios indígenas, mas os funcionários da Funai que trabalham nessas áreas de violência não podem ter porte de arma. A lei que criou a Funai deu à Funai poder de polícia. Era necessário a regulamentação do porte de arma. Por que não? Usar arma é inerente ao poder de polícia. Não regulamentar facilita para os bandidos. (Colaborou Kátia Brasil)
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Imagem: Sydney Possuelo no Vale do Javari. Foto: Arquivo pessoal