A fumaça de um cigarro. Por Julio Pompeu

Na Terapia Política

Não há mais como lembrar-se do tempo em que as coisas não eram assim, do jeito que são hoje. Do sempre de hoje. Aliás, falando assim, dá a impressão de que tudo aqui é rotina. Mentira. Nada é rotina. Quer dizer, nada não. O tudo é rotina. Espera, não é isso. O que eu quero dizer é que a rotina é não rotina nenhuma. Nada aqui é, porque nada permanece. Às vezes, alguém diz que política é que nem nuvem. Parece que alguém importante e inteligente disse isso, mas cada vez que me contam essa frase, muda o autor. Bom, o negócio é que quando eu escuto, penso: só a política? Nada! A vida virou nuvem. Eu ando em nuvens. Tudo muda a todo instante. Nuvem ou fumaça, sei lá… Acho que a vida toda cabe na baforada de um cigarro… Taí! É isso! Um cigarro. A vida queima e a gente se queima. Depois tudo vira guimba fedida. Eu me sinto assim, bituca fumada…

Eu nem sei mais o que está certo e o que está errado. Ninguém mais sabe. Outro dia… Ou foi ontem? Ah! Que diferença faz? Ontem, teve a história da menina de 11 anos estuprada. A lei diz que pode abortar. Tem hospital de referência pra isso. A criança vai lá e médico diz que não vai fazer, porque ele mesmo não chama aquilo de aborto, mas de antecipação de parto. E assim, se as coisas da lei não são do jeito que chamo, então não estão na lei. É tipo o ladrão dizer que não tá roubando porque ele chama o que faz de tomada forçada, entende? Aí, acontece o que? É lei, né? Então tem juiz, juíza, sei lá. E a pessoa meio que prende a menina que foi estuprada pra não abortar. Prende a vítima! É médico, juiz, promotor, todo mundo nem aí pra lei. Mas e a lei? O que ela é? O que ela vale? Ela é só fumaça. Baforada de bêbado sujo. Abortar está certo? Está errado? Ninguém sabe. Quer dizer, todo mundo diz que sabe, só que todo mundo não se entende com todo mundo. E cada um faz o que quer. E quem pode, obriga os outros a fazer o que ele quer. Tipo o estuprador que fez o que quis com a menina. E os médicos. E a juíza. Só quem não tem vontade é a menina. Nem vontade, nem lei, nem nada. Ela é guimba pisada. Todo mundo sabe da vida dela, menos ela. Todo mundo sabe de tudo. Todo mundo. Menos eu. Eu não sei merda nenhuma!

Sabe o céu? Chamam também de firmamento. Sabe por que? Porque ele seguraria a Terra. Seria a coisa que firma a Terra para ela não cair sei lá onde, entende? Mas a Terra não é firme. Ela roda e flutua no espaço. Viaja pelo espaço, que nem uma nave. Um foguete, sei lá. E a gente nem sabe direito onde está no infinito do universo. Mas se a Terra não é firme, pelo menos nossa vida nela tinha que ser, entende? E não tô falando do chão, da gravidade e tal. Mas da vida! De ter um certo e um errado. De a vida não ser essa confusão que é agora. Essa falta de chão. Falta da segurança do chão. Da verdade. Da certeza. Da moral. Da decência. De alguma obviedade, sabe? Falta da vida não ser fumaça e da minha vida não ser guimba babada e descartada da boca de um idiota poderoso qualquer… É que… Ah… Deixa pra lá… Semana que vem, mesmo horário?

“Sim”. Disse o psiquiatra, com a fleugma habitual.

Ilustração: Mihai Cauli

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

3 + dezessete =