“O Brasil passa por retrocesso de direitos”, diz primeira defensora pública indígena

Por Eduardo Velozo Fuccia, na Conjur

Primeira defensora pública indígena do Brasil, Aléssia Pâmela Bertuleza Santos assumiu recentemente o cargo. Da comunidade Tuxá, do município de Rodelas, no norte da Bahia, ela tem 29 anos e, entre os mais de 8,8 mil candidatos inscritos para a disputa de 18 vagas, ela obteve o quinto lugar na classificação geral, tendo obtido a segunda maior nota na prova oral.

Orgulhosa de sua origem, a defensora pública mostra preocupação não apenas com a situação dos povos indígenas no país, mas também com a de outros “grupos vulnerabilizados”. Segundo ela, o Brasil passa por um “processo de retrocesso de direitos” e o Estado brasileiro é ineficiente para garantir os direitos assegurados tanto na Constituição quanto nas normas internacionais que ratificou.

Quanto ao marco temporal, Aléssia Bertuleza Tuxá o considera uma das principais demandas judiciais da atualidade sobre direitos dos povos indígenas. A sua esperança é que o Supremo Tribunal Federal não o aprove, “porque se trata de uma verdadeira aberração desprovida de qualquer fundamento jurídico”. Mas, para além de uma análise técnica sobre o tema, a defensora pública faz questão de lembrar: “Antes de ser Brasil, esse território era aldeia”.

Leia a entrevista:

ConJur — Embora fizesse jus, a senhora foi aprovada sem precisar do sistema de reserva de vagas de 2% para a população indígena, conforme lei estadual da Bahia. A senhora acha que esse tipo de reserva deve se estender para carreiras de outros órgãos e de outros estados?

Aléssia Pâmela — Ao falar sobre política de reserva de vagas é importante sempre, de início, lembrarmos que não se trata de uma benevolência, não se trata de um benefício, é uma medida de reparação histórica. É um direito, assegurado por lei, com o objetivo de viabilizar a presença de grupos vulnerabilizados em espaços dos quais foram historicamente excluídos, e nesse caso “historicamente” corresponde a centenas de anos. Então, sim, a reserva de vagas para indígenas em concursos públicos é uma medida necessária que deve ser adotada por outras instituições, inclusive do sistema de Justiça. Se soa desconfortável a constatação de que só agora temos a primeira indígena defensora pública, deve ser ainda maior o desconforto decorrente do fato de que as outras instituições sequer adotaram medidas para suprir essa lacuna em seus quadros. Nos concursos para defensoras e defensores públicos dos estados a reserva de vagas para pessoas indígenas já vem acontecendo.

ConJur — A senhora iniciará a carreira designada para atuar em alguma área em prol da defesa dos direitos dos povos indígenas?

Aléssia Pâmela — Após a solenidade de posse, que no meu caso ocorreu no último dia 20 de junho, teve início o nosso curso de formação. Nessa fase, que é a que estou vivendo com os demais colegas atualmente, ainda não sabemos qual será a nossa lotação, comarca ou área de atuação. No entanto, atuar na defesa dos povos indígenas, para mim, não é uma questão de escolha ou oportunidade profissional, é a luta da minha vida, é defender o meu próprio direito de existir e isso independe da minha atribuição institucional. Mas a Defensoria Pública da Bahia tem fortalecido a sua atuação na defesa dos direitos dos povos e comunidades tradicionais. Já existem medidas em andamento no âmbito da instituição para expandir a atuação institucional na defesa dos povos indígenas e a nossa chegada, como membros, serve para enriquecer os debates e contribuir na construção desses mecanismos.

ConJur — Podemos dizer que o momento atual é o de maior vulnerabilidade dos índios no Brasil? A situação na Bahia é a mesma que se verifica na Amazônia, em especial em relação aos garimpeiros e madeireiros. O que pode ser feito no âmbito da DPE?

Aléssia Pâmela — Se tomarmos como marco inicial a invasão do território brasileiro pelos portugueses, verificamos que há mais de cinco séculos os povos indígenas sofrem ataques que vão desde a invasão do nosso território, passam pela tentativa de assimilação e negação da nossa cultura e desaguam em algumas tentativas declaradas de extermínio dos povos indígenas. O momento atual não é fácil, o Brasil está passando por um processo de retrocesso de direitos e isso atinge toda a sociedade brasileira — mesmo aqueles que não perceberam ainda —, mas alcança de modo mais intenso os grupos historicamente vulnerabilizados. Com relação aos povos indígenas, certamente estamos vivendo uma das fases de maior ineficiência do Estado brasileiro na garantia dos direitos assegurados tanto na Constituição quanto em normas internacionais que o Brasil ratificou. Porém, considerando que a resistência é a nossa marca, seguimos firmes e unidos na luta pela defesa dos nossos direitos, inclusive o direito de existir, e pela responsabilização de todos os sujeitos (particulares ou agentes públicos) que violam ou tentam violar esses direitos. As dimensões continentais do Brasil são proporcionais à diversidade cultural dos povos indígenas deste país e essa diversidade não pode ser ignorada, sob pena de cairmos num discurso simplista e estereotipado. Em todo o território brasileiro, os povos indígenas enfrentam dificuldades para ter acesso aos seus direitos mais fundamentais, como o direito ao território, à educação e à saúde. Com relação ao território, tanto há o problema da injustificada falta de demarcação como, no caso de territórios demarcados, das tentativas ilegais e exploração indevida dos recursos naturais por terceiros (garimpeiros ilegais). Considerando que a Defensoria Pública recebeu da Constituição Federal a função de ser a guardiã dos direitos das pessoas em situação de vulnerabilidade, bem como que se trata de instituição em clara expansão, que chega às cidades do interior dos estados, percebe-se a sua grande possibilidade de atuação na defesa dos povos indígenas, seja por meio de ações coletivas, seja em casos individuais. Nesse ponto, é válido lembrarmos que essa atuação da Defensoria não se restringe a processos judiciais, podendo ela atuar extrajudicialmente e tendo como uma das suas funções a promoção da educação em direitos.

ConJur — A senhora pode fazer uma pequena retrospectiva da sua vida estudantil e acadêmica?

Aléssia Pâmela — Eu venho de uma família na qual educação sempre foi prioridade. Os meus pais sempre falaram sobre a importância de estudar e como esse era o único bom caminho disponível. Desde o ano de 2011, o estado da Bahia possui a carreira do professor indígena e nesse período a educação escolar diferenciada, ministrada nas escolas situadas nas aldeias por professores indígenas, cresceu muito. No entanto, há 20 anos não era assim. Então, eu estudei em escolas convencionais da rede pública municipal ou estadual. Durante quase toda a faculdade, eu estagiava e conciliava com a atividade de bolsista em programas de pesquisa, extensão ou monitoria acadêmica. Em razão de ter sido aprovada no exame da OAB ainda no nono semestre da faculdade, logo que me formei fui advogar. Depois da advocacia, eu fui servidora da Defensoria Pública da Bahia, do Tribunal de Justiça do Estado e também trabalhei como professora de universidades privadas.

ConJur — A sua família continua vivendo na comunidade Tuxá? Como foi recebida a notícia de sua aprovação como defensora pública no núcleo?

Aléssia Pâmela — A minha família continua na comunidade Tuxá e sempre a visito. A notícia da minha aprovação foi recebida com muita alegria, não apenas pelo meu povo como por outros povos indígenas também, porque nós sabemos que essa conquista é fruto da luta de muitas mulheres e homens indígenas. Essa conquista não é só minha, ela é dos povos indígenas do Brasil e evidencia que, apesar de todos os obstáculos, das constantes violações dos nossos direitos e da tentativa de invisibilização das nossas lutas, estamos avançando, nos fortalecendo e conquistando espaços dos quais fomos historicamente excluídos.

ConJur — Tem consciência de que a sua história já virou exemplo, inspiração e motivação para que outros indígenas almejem o ingresso na Defensoria ou em outras carreiras públicas?

Aléssia Pâmela — Eu já ouvi alguns relatos assim e fico feliz porque se um dia eu pude sonhar em ocupar esse cargo, é porque eu tive pessoas que me inspiraram e me fizeram acreditar que seria possível. Eu me lembro bem que na época do vestibular/início da graduação estava acontecendo perante o Supremo Tribunal Federal o julgamento do caso Raposa Serra do Sol, que tinha como advogada Joênia Wapichana. Ver uma mulher indígena advogada ocupando aquela tribuna me fez acreditar que o sistema de Justiça também era um espaço para nós. Então, se hoje a minha posse inspira outros indígenas, eu fico feliz e quero deixar bastante claro que é possível, sim, ocuparmos qualquer cargo que almejarmos porque, apesar dos obstáculos serem maiores, eles podem ser ultrapassados e o meu objetivo é contribuir para a redução desses obstáculos e aumento de oportunidades.

ConJur — A questão do marco temporal, em discussão no STF com repercussão geral, é a principal demanda dos povos indígenas no país? Qual a sua posição sobre o tema?

Aléssia Pâmela — O julgamento do marco temporal, que foi retirado da pauta de julgamento do STF, é uma das principais demandas judiciais da atualidade sobre direitos dos povos indígenas, porque os seus efeitos podem ser extremamente nocivos. Caso essa tese venha a ser adotada pelo STF, o que sinceramente eu acredito que não acontecerá, porque se trata de uma verdadeira aberração desprovida de qualquer fundamento jurídico, estaríamos diante do maior retrocesso da história daquela corte. A tese do marco temporal busca estabelecer que, para fins de demarcação, só seria considerada terra indígena aquela que estivesse ocupada pelo povo que a reivindica em 5/10/1988, quando a Constituição Federal foi promulgada ou, se não estivesse ocupada naquela data exata, só seria considerada terra indígena se restasse comprovado que o povo indígena que a pleiteia havia saído de lá por motivos contrários à sua vontade — como um conflito com não indígenas, por exemplo. Ora, primeiramente, é necessário relembrar que a própria Constituição Federal não traz esse requisito temporal ao tratar sobre o direito dos povos indígenas ao território tradicional. Além disso, o vínculo de um povo com o seu território é baseado na ancestralidade, no sagrado. A nossa história não começa em 1988. Na verdade, a nossa história não começa nem em 1500, mas desde aquela época, quando se iniciou o processo de invasão e exploração disso que hoje chamamos de Brasil, os ataques contra o nosso direito ao território sagrado são constantes — isso, mais uma vez, evidencia o quanto a tese de marco temporal é desprovida de fundamento, afinal, nenhum povo saiu do seu território por livre e espontânea vontade. A história do Brasil, desde a invasão, é de constantes tentativas de expulsão dos povos indígenas do seu território tradicional e organizadas lutas pelo nosso direito de existir e existir em plenitude, com o respeito à nossa vida, à nossa cultura e ao nosso vínculo sagrado com o território. É sempre bom lembrar: antes de ser Brasil, esse território era aldeia.

Aléssia Pamela Bertuleza Santos, Tuxá de Rodelas, foi a primeira indígena aprovada em concurso da Defensoria Pública da Bahia. Foto: Ascom/DPE Bahia

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