Cimi lança nota técnica apontando inconstitucionalidade da resolução ANTAQ Nº 81, de 6 de julho 2022

Por Rodrigo de Medeiros Silva[1]

É fato público que o Presidente e o seu governo possuem apreço ao período ditatorial, anterior a redemocratização ocorrida na década de 80. Isto fica claro, nas inúmeras referências elogiosas que fez ao torturador Brilhante e Ustra[2], ou quando, ainda candidato, disse que seu objetivo seria fazer o Brasil semelhante ao que era “há 40, 50 anos”[3]. Sem falar que todos os anos o seu governo celebrou o golpe de 64[4].

Com a questão indígena não é diferente, sendo contra a demarcação de seus territórios[5], exaltando o garimpo[6] e o desmatamento[7]. Por isso, também se coloca a favor do marco temporal[8], que prejudica os indígenas, como alerta a APIB[9]. Nas diversas áreas a postura se repete, como é no caso da saúde, precisando, recorrentemente, buscar-se o Poder Judiciário para tentar se garantir este direito fundamental[10][11].

Agora, por meio da RESOLUÇÃO ANTAQ Nº 81, DE 6 DE JULHO 2022, o Governo retoma a concepção, já superada, de tutela sobre os indígenas. Tal entendimento estava disposto no Código Civil de 1916, declarando os indígenas relativamente incapazes (artigo 6º, IV). Essa resolução da Agência Nacional de Transporte Aquaviário tem como objeto estabelecer direitos e deveres no transporte regular na navegação interior interestadual, internacional, em diretriz de rodovia federal, ou realizada entre portos brasileiros e fronteiras nacionais (artigo 1º).

O problema encontra-se no artigo 30, o qual trata da identificação do passageiro “índio”. Em viagens nacionais exige autorização expedida pela FUNAI ou outro órgão. E nas viagens internacionais submete a pessoa indígena a procedimentos específicos da FUNAI e da Polícia Federal. Flagrante é o desacordo com a atual ordem constitucional, que superou as concepções integracionistas e de tutela. A Constituição Federal dá autonomia aos povos originários, garanti-lhes todos os direitos fundamentais, como de ir e vir (artigo 5º, XV), e direitos específicos, dispostos no artigo 231, tais como à organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam. Da mesma forma, os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, não necessitando tutela de ninguém (artigo 231).

O Governo Federal recria as condições de reeditar o que ocorria durante a Ditadura, quando queriam controlar as viagens dos indígenas:

Além de proibir os indígenas de irem às assembleias ou de punir os que houvessem delas participado, ou mesmo de espioná-las, a ASI/Funai também agiu para impedir que as reuniões acontecessem. Foi o caso da 7ª Assembleia dos Chefes Indígenas, que ocorria em Roraima, na aldeia Surumu, em janeiro de 1977. A Polícia Federal, a pedido da Funai, interrompeu a realização do evento. À imprensa, o presidente da Funai, general Ismarth de Araújo Oliveira, dizia que a reunião era “ilegal” e que a presença de visitantes como o então presidente do CIMI, Dom Tomás Balduíno, não tinha sido autorizada. “Guerra é guerra”, declarou o general Ismarth à imprensa sobre o episódio (BRASIL, 2014, p. 250[12]).

Rememora-se logo o fato ocorrido com Mário Juruna, em 1980, que, quando foi participar do Tribunal Bertrand Russell, na Holanda, que tratava dos crimes contra os povos indígenas, quase foi impedido pelo Regime Militar. Naquela época foi preciso impetrar habeas corpus , com fundamento no direito de ir e vir do indígena, ferindo a Constituição Federal, o Estatuto do Índio e os Direitos Humanos[13].

O Conselho Indigenista Missionário, então, lança nota técnica (em anexo), também subscrita pela Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares (RENAP), na qual conclui que a Resolução em questão é inconstitucional. Ela é incompatível com os artigos 231 e 232 da Constituição Federal, como também com a Convenção nº 169 da OIT, ratificada pelo Brasil.

Notas:

[1] Advogado, membro da Rede Nacional de Advogadas e Advogados Populares (RENAP)

[2] VEJA. Bolsonaro afirma que torturador Brilhante Ustra é um “herói nacional”. Disponível em: https://veja.abril.com.br/politica/bolsonaro-afirma-que-torturador-brilhante-ustra-e-um-heroi-nacional/ . Acesso em: 11 jul 2022. Publicado em: 08 ago 2019.

[3] GIELOW, Igor; FERNANDES, Talita. Objetivo é fazer Brasil semelhante ao que ‘era há 40, 50 anos’, diz Bolsonaro. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/10/objetivo-e-fazer-brasil-como-era-a-40-50-anos-atras-diz-bolsonaro.shtml. Acesso em: 11 jul 2022. Publicado em: 15 out 2018.

[4] DW. Gestão Bolsonaro celebra golpe de 64 pelo quarto ano seguido. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/deutschewelle/2022/03/31/gestao-bolsonaro-celebra-golpe-de-64-pelo-quarto-ano-seguido.htm?cmpid=copiaecola. Acesso em: 11 jul 2022. Publicado em: 31 mar 2022.

[5] HIRABASI, Gabriel. “Não demarcarei um centímetro quadrado a mais de terra indígena”, diz Bolsonaro. Disponível em: https://oglobo.globo.com/epoca/expresso/nao-demarcarei-um-centimetro-quadrado-mais-de-terra-indigena-diz-bolsonaro-23300890#ixzz7YlpzfZs0. Acesso em: 11 jul 2022. Publicado em: 05 dez 2018.

[6] ESTADÃO CONTEÚDO. Na defesa do garimpo, Bolsonaro cria programa de apoio à mineração artesanal. Disponível em: https://www.istoedinheiro.com.br/na-defesa-do-garimpo-bolsonaro-cria-programa-de-apoio-a-mineracao-artesanal/. Acesso em: 22 jul 2022. Publicado em: 14 fev 2022.

[7] G1. Ministro do Meio Ambiente defende passar ‘a boiada’ e ‘mudar’ regras enquanto atenção da mídia está voltada para a Covid-19. Disponível em: https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/05/22/ministro-do-meio-ambiente-defende-passar-a-boiada-e-mudar-regramento-e-simplificar-normas.ghtml. Acesso em: 11 jul 2022. Publicado em: 25 maio 2020.

[8] ROMERO, Felipe; SOARES, João Victor. Bolsonaro volta a falar em não cumprir decisão do STF sobre Marco Temporal. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/politica/bolsonaro-volta-a-falar-em-nao-cumprir-decisao-do-stf-sobre-marco-temporal/. Acesso em: 11 jul 2022. Publicado em: 27 maio 2022.

[9] APIB. A LUTA CONTINUA! Nota adiamento do julgamento do Marco Temporal. Disponível em: https://apiboficial.org/2022/06/05/a-luta-continua-nota-adiamento-do-julgamento-do-marco-temporal/. Acesso em: 11 jul 2022. Publicado em: 05 jun 2022.

[10] APIB. Apib recorre ao STF para garantir vacinação de indígenas. Disponível em: https://apiboficial.org/2021/01/29/apib-recorre-ao-stf-para-garantir-vacinacao-de-indigenas/. Acesso em: 11 jul 2022. Publicado em: 29 jan 2021.

[11] MPF. STF confirma que União deve prestar atendimento de saúde a indígenas de terra ainda não demarcada no Pará. Disponível em: http://www.mpf.mp.br/pa/sala-de-imprensa/noticias-pa/stf-confirma-que-uniao-deve-prestar-atendimento-de-saude-a-indigenas-de-terra-ainda-nao-demarcada-no-para. Acesso em: 11 jul 2022. Publicado em: 31 maio 2022.

[12] BRASIL. Comissão Nacional da Verdade. Relatório: textos temáticos / Comissão Nacional da Verdade. – Brasília: CNV, 2014

[13] CORREIO BRASILIENSE. Justiça assegura viagem de Juruna. Disponível em: https://documentacao.socioambiental.org/noticias/anexo_noticia/42969_20170925_130608.PDF. Acesso em: 11 jul 2022. Publicado em: 28 nov 1980.

Crédito da foto: Thiago Gomes/Agência Pará

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