Agenda Mais SUS, defendida pelo think-tank de Armínio Fraga, não deveria surpreender. Expressa posições de um setor refinado do privatismo – que quer o SUS fortalecido, para apoiar seus negócios sobre ele
Por Sonia Fleury, em Outra Saúde
No boletim do Outra Saúde do site Outras Palavras, foi publicada, em 12 de julho a nota abaixo sobre o lançamento da Agenda Mais SUS, cujo tom de perplexidade se inicia com o título de estranha adesão a uma agenda democrática e termina afirmando que este está desafiando os que lutam pela saúde pública. Como discordo desse entendimento, faço abaixo da nota as minhas considerações sobre o que considero deva ser analisado como uma estratégia democrática limitada. Repito aqui a nota do Outra Saúde:
“A estranha adesão do “Mais SUS” a uma agenda democrática
O Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS), em parceria com a associação civil Umane, lançou na semana passada um conjunto de propostas para o que entende como melhorias no SUS. Dirigidas aos candidatos à Presidência, elas visam, segundo os autores, maior eficiência e qualidade nos serviços prestados hoje pelo sistema — que já fez 85 bilhões de atendimentos e está presente em 100% dos municípios brasileiros. Parte delas coincide com a agenda do movimento sanitarista. Mas por que o IEPS, um instituição criada — e ostensivamente dirigida — pelo banqueiro neoliberal Armínio Fraga as estaria lançando? O enigma está desafiando os que lutam pela Saúde Pública.”
O que está em discussão é um enigma ou uma estratégia? Meus argumentos para clarificar esta questão são:
1. A defesa do SUS e da democracia não deve e não pode ser restrita aos movimentos sociais que impulsionaram a reforma sanitária e a criação do SUS, mesmo quando eram vistos como utópicos e pouco pragmáticos. Se queremos retomar o caminho democrático, interrompendo a barbárie que estamos vivendo, precisamos contar com todas as forças comprometidas com a as instituições democráticas e com a justiça social. A defesa do SUS, no pós-pandemia, tornou-se parte de uma ampla relação de forças que reconhecem o avanço civilizatório que o SUS representou, ao afirmar o direito à saúde como dever do Estado. Alguns, no entanto, relutam em cumprir o ditame constitucional que reza que qualquer prática de saúde é de relevância pública, sobrepondo-se aos interesses lucrativos que a tratam apenas como mercadoria. Uma nova correlação de forças, ampla e inclusiva, em defesa da saúde como democracia é fundamental para enfrentarmos o desmonte efetuado em todas as políticas de proteção social. Portanto, não há estranheza que acadêmicos, banqueiros, artistas, profissionais, políticos, gestores, formadores de opinião, passem a engrossar as fileiras junto aos movimentos sociais que construíram e defenderam o SUS desde a Constituição de 1988 até agora, contra todos os governos que implementaram políticas de austeridade econômica, impondo limitações à consolidação da mais igualitária e democrática política pública, o SUS.
2. Não há estranheza em relação à consistente defesa, feita no documento Agenda Mais SUS, em relação à importância do fortalecimento da Saúde Pública, para o qual propõem um rol de princípios do qual não se pode discordar: a saúde como direito fundamental; orientação pelos princípios do SUS para concretizar o direito à saúde; a saúde como dever do Estado em um sistema universal financiado por impostos; equilíbrio entre equidade e eficiência; considerar os determinantes sociais para reduzir as desigualdades; participação social e transparência para exercício de cidadania e democracia. Em relação às medidas propostas para efetivar tais princípios, arrolam: 1- Ampliar recursos públicos e orientar o financiamento para induzir a universalização do SUS chegando a 6%do PIB em 2030; 2 – Expandir a Atenção Primária com qualidade para garantir um SUS universal, eficiente e resolutivo convertendo modelos de atenção primária tradicionais para a Estratégia de Saúde da Família até atingir 100% da população; 3 – Fortalecer os mecanismo de governança regional do SUS por meio da elaboração de um plano nacional de investimentos para reduzir disparidades regionais; desenvolvimento da capacidade institucional das Secretarias Estaduais de Saúde; avaliar diferentes inciativas e modalidades de organização regional; 4 – Garantir a disponibilidade e efetividade de Recursos Humanos no SUS por meio reformulação da regulação do ensino, reestruturação da educação permanente, fortalecimento de equipes multiprofissionais e ampliação do escopo da atuação da enfermagem na atenção primária; 5- Valorizar e promover a Saúde Mental por meio do monitoramento e fiscalização, aprimoramento da rede de atenção psicossocial, treinamento e valorização dos profissionais, retomar e avançar na reforma psiquiátrica; 6- Fortalecer o SUS para enfrentamento de emergências de saúde pública por meio de instrumentos de governança, aumento da capacidade de resposta, estratégia nacional de comunicação, valorização dos profissionais.
3. Trata-se de uma importante defesa da Saúde Pública, fundamentada em princípios do SUS e em propostas de melhorias, várias das quais fazem parte das lutas e experiências que gestores e trabalhadores vêm desenvolvendo ao longo da trajetória do SUS. É, pois, louvável essa convergência, além de desejável para o acúmulo de forças na conjuntura política atual. Será imprescindível que atores políticos de vários matizes e especialidades, que em alguns momentos estiveram até em campos opostos, se aproximem dos princípios do SUS e façam sua defesa na arena pública. Precisamos dessas forças políticas para derrotar o populismo autoritário e diversionista, mas temos que discutir os limites de sua agenda para a saúde. O principal limite da proposta atual é a identificação do SUS com a saúde pública, concebida como o nível primário de atenção à saúde. Seria importante deixar claro neste debate a relação entre o setor público e o privado na saúde. Quando concordamos que a saúde é dever do Estado, por que não enfatizar que as ações de saúde são de relevância pública, não importa se a propriedade é pública ou privada? Este compromisso é essencial face ao comportamento egoísta de provedores privados, por exemplo, durante a pandemia.
4. É sabido que na América Latina, dado o nível de pobreza e desigualdade, as camadas médias altas e os mais ricos representam uma mínima parcela da população. É importante para o setor privado ter um SUS fortalecido, como estratégia de sua sobrevivência, já que o SUS funciona como um resseguro de todos que perdem seus planos privados de saúde (que nunca ultrapassaram pouco mais que 25% da população). O SUS fortalecido, resolutivo, eficiente e universal, porém reduzido a cuidados primários de saúde física e mental é essencial para garantir a continuidade da extrema lucratividade dos planos e seguros de saúde, que operam na atenção diagnóstica, secundária e terciária, disputando fundos públicos escassos e drenando para suas redes recursos que deveriam ser investidos em melhorias de serviços laboratoriais, diagnósticos, hospitais e especialistas do setor público. Desta forma, perpetuam a dependência do SUS em relação à rede privada, ao invés de lutarem por sua emancipação da perspectiva de mercantilização da saúde. O mercado da saúde deve ser uma opção, não uma criação de políticas públicas por meio de renúncias fiscais, subsídios e compra incondicional de serviços. A redução do SUS a serviços primários de saúde pode ser interessante para o mercado de serviços de saúde, mas não é uma opção política para o país, para a democracia e para a cidadania.
4. Portanto, a agenda peca mais pelo que não é dito do que pelo que é dito. Senão vejamos: Quando fala do aumento do financiamento do SUS por que não defende a extinção do teto de gastos, responsável pela perda de bilhões de recursos do orçamento da saúde desde que foi instituído? Por que não defende acabar com as emendas do relator, ou orçamento secreto, fonte de clientelismo, corrupção e inviabilização do planejamento da política pública?
5. Ao tratar especificamente a Atenção Primária de Saúde, com várias propostas importantes, por que não reivindicar a revogação do modelo de gestão financeira da APS, cuja forma de pagamento por população cadastrada foi acompanhada de abertura para que a atenção primária possa ser privatizada?
6. Ao falar sobre Recursos Humanos no SUS o texto remete aos primórdios da luta pela Reforma Sanitária, quando hoje as demandas neste campo são muito mais complexas, apresentando tanto evidências científicas quando reivindicações políticas sedimentadas em toda a trajetória do SUS. Não são abordadas questões fundamentais como a desorganização na gestão de pessoas promovida pela introdução da OS como forma de contratação de serviços e gestão privada nos serviços de saúde, cujas atuações coadunam-se aos instrumentos de política fiscal como a Lei de Responsabilidade Fiscal, mas que ferem os princípios da participação ao não se submeterem aos controles democráticos do SUS. A pergunta que fica é por que não discutir o estabelecimento de carreiras públicas da Saúde?
Muitas outras questões poderiam ser debatidas e aprofundadas com o intuito de convidar os formuladores da Agenda Mais SUS a um debate no qual possamos fortalecer nossas posições comuns e tornar explícitas nossas propostas no sentido de ir muito além de um SUS fortalecido como primeiro pilar de uma atenção à saúde que se completaria com pilares secundário e terciários privados, competindo por recursos públicos.
A constatação de que a rede atual do SUS é insuficiente é uma obviedade que não justifica a proposta de institucionalização de um sistema especializado em que o público cuida da atenção primária (até agora) e o privado dos outros níveis de atenção. Se o diagnóstico é correto, ele não trata das causas, pois assume que é uma situação irremediável, quando sabemos que a drenagem de recursos públicos para o setor privado está na raiz do problema. Tal proposta parece desconsiderar a experiência internacional seja do pluralismo estruturado que fracassou na Colômbia, seja as evidências recentes de que a privatização de serviços do NHS, no Reino Unido, aumentou o risco de falta de atenção de qualidade, provocando mesmo mortes.
Quando a Frente pela Vida propõe um SUS 100% público, pode ser tomada como uma utopia e falta de pragmatismo de movimentos sociais, mas, afinal, não é esta a origem do SUS que hoje todos defendemos?