A culpa. Por Julio Pompeu

Na Terapia Política

O sangue ainda estava quente e viscoso no chão, há pouco os cadáveres foram levados. Jean imaginou que aquele sangue permaneceria ali, viscoso e quente, para sempre. Ao menos, na sua mente. Nas suas piores lembranças. Em 12 anos como policial, nunca tinha visto uma cena assim, tão quente. Tão logo após. Tão perto do momento em que o caos e a barbaridade tomam conta. Não confessaria, mas ficou chocado.

Já vira corpos antes. Alguns bem piores que aqueles. Vítimas das mais genuínas e espúrias maldades. Ali, eram só baleados. Mas o chocante daquilo tudo era a história. Imagens não são tudo. Não falam por si mesmas. São só recortes no tempo. Pedaços de instantes. Nacos de uma história em que o antes e o depois é que dão significado à imagem do agora. Ciúmes, raiva, arrogância, traições, disputas de dinheiro e poder, são os enredos comuns. Desta vez, era diferente. Assassinato por intolerância política, para Jean, era inédito.

Sempre achou política coisa aborrecida. Sabe da importância. Mas também sabe que algo pode ser importante e aborrecido ao mesmo tempo. É difícil para ele imaginar alguém matando por causa de política. Entenderia, fácil, quem matasse o adversário para vencer a disputa. Mas matar quem pensa diferente, um entre milhões que pensam diferente, só para não ouvir, por um instante, quem pense diferente, lhe parece o banal mais que banal. É banalidade sem nome. Sem razão. Sem sentido.

Quem é o culpado? Seu trabalho é responder. O atirador está preso. Mas saber quem é o atirador não resolve o problema da culpa. Não para Jean. O preso é só mais uma imagem. Outro recorte do tempo. Precisa de uma história para lhe dar sentido. E aí é que está a dificuldade. Aquela barbaridade lhe parece tão sem sentido que simplesmente saber que o assassino milita por credo diferente dos assassinados lhe parece pouco. Jean precisa de uma história para entender o mal.

A culpa não está apenas no dedo que puxa o gatilho. Há também em quem põe a arma na mão de quem puxa o gatilho. E em quem o anima a atirar. Em quem criou e em quem atiça o ódio que dá sentido a matar gente que não se conhece, mas que saber que pensa diferente já é o suficiente para querer matá-la. Ódio é a questão. A culpa está onde ele estiver. Na história do ódio que leva a querer matar. Do ódio que faz amar a morte acima de todas as coisas. Do ódio que aparenta dar sentido a vidas tão sem sentido que preferem a morte à vida. Ódio que preenche o vazio da existência com uma existência vazia.

Há mais culpados deste ódio soltos por aí que cadáveres baleados naquela cena de crime. Do presidente que incita e depois nega para acalentar o monstro e depois fugir à responsabilidade pelas monstruosidades ao procurador que finge que não vê o grande monstro a se criar. Do padre que abençoa armas ao pastor que usa aleatoriamente o Antigo Testamento para abençoar o ódio. Do influencer que influencia com mentiras ao jornalista que faz coro inadmissível ao reprovável. Do policial que não respeita a lei ao miliciano que impõe, impune, a sua lei. São muitos os cúmplices. São muitas as mãos que pousam os dedos nos gatilhos. Jean sabe que terá muito trabalho ainda.

Ilustração: Mihai Cauli

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