A Casa do Índio: uma história esquecida. Por José Ribamar Bessa Freire

No TaquiPraTi

Era uma casa mui desgraçada / Não tinha teto, não tinha nada /
Ninguém queria entrar nela não / lá dentro havia bicho-papão”.
(Paródia. Vinicius de Moraes. A Arca de Noé. 1980)

Durante mais de meio século, cerca de 30 mil indígenas foram albergados na Casa do Índio criada pela ditadura, em 1968, na Ilha do Governador, no Rio, no contexto da estrutura policialesca instalada no Brasil pelo AI-5, com três aparelhos repressivos centrados em Minas Gerais: a Guarda Rural Indígena (GRIN) que policiava as aldeias, o Reformatório Krenak, em Resplendor, e a Fazenda Guarani, perto da Serra do Cipó, para onde índios com “conduta desviante” eram presos e conduzidos “dentro de uma vagão de carga que nem animais” e lá submetidos à tortura e a trabalhos forçados.

No caso da Casa do Índio, qual a sua finalidade? A presença daqueles internos com doença mental consta nos registros. Um relatório de 1980 informa que da média de 40 assistidos mensalmente, 14 deles se relacionavam a transtornos mentais, a tal ponto que a instituição ficou conhecida como um espaço para abrigar indígenas com deficiência mental ou como um manicômio indígena, demonstrando que esta face complementar marcou o seu funcionamento.

Se sua finalidade era, entre outras, acolher enfermos com algum tipo de transtorno mental, qual o tratamento dado a eles? Precursora de 40 outras casas, por que apenas a Casa do Rio permanece e abriga, ainda hoje, 11 indígenas? Qual o lugar da psicologia dentro dela e de que forma conta a trajetória dos saberes Psi no Brasil? Essas são algumas questões formuladas por André Sant´Anna na tese de doutorado defendida nesta quinta-feira (28) no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da UERJ.

Fábrica de esquecimento

A busca de respostas levou o autor a visitar a Casa do Índio para entrevistar a sua fundadora Eunice Cariry que, apesar de exonerada em 2009, lá permanece numa espécie de limbo jurídico, sem nada mudar, enquanto as demais casas já foram convertidas em Casas de Apoio à Saúde Indígena (CASAIS). Para assegurar o controle dos registros dos que ali estiveram, Eunice, a guardiã dos documentos, vedou o acesso de André aos prontuários mantidos em arquivos de aço em cômodos com correntes nas portas. Meio século passou. Completará cem anos de sigilo? 

– O silêncio sobre a Casa do índio e o desconhecimento sobre ela são sintomas de um esquecimento programado, não se trata de uma falha de processos cognitivos ou arquivísticos, mas de uma política deliberada que visa apagar aquilo que a estrutura do poder não quer que seja lembrado. O esquecimento, nesse caso, é uma fabricação. Já o  resgate da memória é um ato de enfrentamento para que as narrativas não permaneçam tuteladas na sombra do autoritarismo – escreveu o doutorando.

Ele saiu para o embate, consciente de que o arquivo é um campo de batalha, onde o que está em disputa não é apenas a memória, mas também aquilo que se pretende ocultar. Driblou a proibição da Cariry e acessou os documentos por outra via. Com o apoio do Laboratório de História e Memória da Psicologia Clio-Psyché, procurou o Serviço de Gestão Documental (SEDOC) da FUNAI, em Brasília, e lá consultou cópias da documentação composta de 849 páginas enviada pela Casa do Índio para aquela Fundação, incluindo os relatórios anuais desde 1968. 

Outra fonte consultada foi Pharã Kaxtirore Darashé: pelos mutirões da vida, livro de difícil acesso escrito em coautoria com a jornalista Bia Porto, com relatos de Eunice, hoje com 87 anos, contando sua própria versão sobre a trajetória da Casa do Índio, assim como notícias na mídia e depoimentos de médicos, militares, professores, funcionários, mas não de índios. Foi possível acessar também o inquérito que corria em sigilo sobre a situação irregular de indígenas em situação de vulnerabilidade.

Meus doentes mentais

O que o doutorando encontrou na documentação por ele analisada com olhar crítico mostra que a Casa foi um espaço de controle psicossocial de indígenas, “onde esses eram marcados pelo poder de normalização, que definia não apenas quem era doente ou sadio, mas ainda apresentava a gradação entre o normal e o anormal”. Qual era a legitimidade que tinha para tal diagnóstico e em que se diferenciava do Reformatório Krenak onde índios envolvidos em conflitos de terra ficavam encarcerados por serem identificados com “comportamento desviante”?

Posto que o espaço da Casa, desde sua inauguração, se caracterizou como lugar destinado a receber indígenas portadores de patologias na área de saúde mental como distúrbios psicoafetivos e esquizofrenia, era necessário – diz o pesquisador – verificar a presença de médicos e psicólogos e o modo como foram administradas medicações psiquiátricas, assim como indagar sobre a formação e os conhecimentos de Eunice no campo da saúde mental, como ela acessou o conhecimento psicológico e como o utilizou para ordenar condutas individuais e coletivas.

Além de analisar os discursos de Eunice Cariry, nascida no subúrbio do Rio em 1935, filha e mulher de militar, a tese reconstituiu a sua formação para compreender suas práticas na Casa do Índio, procurando evitar as armadilhas comuns no uso de biografias como fonte. Eunice seguiu vários cursos na área da segurança: de Polícia Feminina Auxiliar; de Especialização em Problemática Carcerária e de Organização, Investigação e Prática Policial, chegando a atuar como professora no curso supletivo para internos da Penitenciária Milton Moreira.

Seu currículo foi mais detalhado, quando ela recebeu da Assembleia Legislativa o título de cidadã benemérita do Estado do Rio de Janeiro. Lá se observou que a dirigente da Casa seguiu um curso de férias de Introdução à Psicologia Junguiana, de 12 a 26 de julho de 2006, na Universidade Estácio de Sá e cursos de extensão na Universidade de Valença, onde figurava, entre outras, a disciplina de Psicologia. Isso foi tudo.

Eunice Alves Cariry Sorominé – esse é o seu nome completo – foi candidata a vereadora no Rio de Janeiro nas eleições de 2016 pelo PP (Partido Progressista), o partido de Jair Bolsonaro no qual ele permaneceu mais tempo (de 2005 a 2016). Ela obteve apenas 266 votos e não foi eleita.

Num dos relatórios citados na tese, Eunice demonstra sua visão sobre a questão ao usar imagem similar à de Bolsonaro sobre “meu exército”, quando se referiu aos “meus doentes mentais tão queridos que, apesar de suas ´imbecilidades´ e das asneiras que praticam a todo instante, me recompensam com gestos e olhares carinhosos”.

Casa de Horrores

A tese conclui que “A Casa do Índio foi um hospital, um manicômio, uma escola, um quartel, uma fábrica, dependendo do enquadramento com que for olhada. Espaço hibrido voltado para a saúde, mas também para a segurança, tentou fabricar índios dóceis ao longo de sua história”, à semelhança da colônia penal indígena do Reformatório Krenak, para onde eram conduzidos, para serem “reeducados”, índios presos pela GRIN porque na luta pela terra “criavam desordem e subversão” nas palavras do capitão Pinheiro, responsável por treinar a guarda rural indígena.

Segundo André, a Casa é também “um espaço importante para a história da psicologia, visto ser organizada como um recinto de controle de condutas indígenas que buscavam tratamento de saúde na cidade”, alguns deles monolíngues como José, um índio Pacaás Novos de Rondônia: “Ninguém entendia nada, não conheciam o idioma de sua tribo” – afirmou Eunice, o que nos leva a pensar sobre o tipo de tratamento por ele recebido.

– “A Psicologia Social tem uma contribuição fundamental para pensar sobre os modos como se exerceu um controle psicossocial dos índios no Brasil” – concluiu André, apoiado em duas publicações do Conselho Regional de Psicologia de São Paulo: “Psicologia e Povos Indígenas” e a outra “A procura do bem viver”, com artigos de autores indígenas sobre os saberes tradicionais usados na busca por saúde mental. Recupera ainda artigos sobre o tema de Roquete Pinto (1917) e de Emilio Mira y Lopes em coautoria com Alice Galland de Mira (1949).

Talvez a definição mais apropriada da Casa do Índio tenha sido dada pelo antropólogo José Carlos Levinho, então diretor do Museu do Índio, entrevistado em 2015 pelo autor da tese:

– “É uma casa de horrores, um depósito de indesejados”.

Efetivamente, a instituição que teve seu auge nos tempos do DOI-CODI, “permanece hoje como um fóssil de outra época, que reflete como os indígenas foram tratados na história, mas também como seguem sendo vistos, ou seja, não vistos”.

P.S. André Luís de Oliveira de Sant’Anna: “Casa do Índio: uma narrativa sobre o controle psicossocial de indígenas na ditadura empresarial-militar”. Tese de doutorado. Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGPS/UERJ). 2022. Banca: Ana Jacó (orientadora), Alexandre Castro (CEFET), Joana D´Arc Ferraz (UFF), Pedro Gabriel Delgado (UFRJ) e José R. Bessa (Uerj-Unirio).

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