Para o presidente uma caneta vale menos que uma arma
Depois que tudo isso acabar – e uma hora ou outra isso tudo vai acabar, vai ter de acabar –, o que terá sido da imagem da velha caneta BIC? Ela, com seu corpo em plástico transparente sextavado, sua tampinha azul, quem é que vai resgatá-la do lixo da História? O uso insistente e ofensivo que o presidente da República vem fazendo da pobrezinha, existirá saída para tamanho enxovalho?
Que destino dilacerante foi sobrar para ela. A toda cerimônia oficial, essas que são emolduradas pelo mármore branco do Palácio do Planalto, com as cores do Brasão da República ao fundo, ou ao lado, ou acima, ou abaixo, lá vem o sujeito espalhafatoso e falastrão, arreganhos como se fossem sorrisos, sacando uma BIC do bolso para assinar isto e mais aquilo, diante de todo mundo. Tem sido assim com tanta frequência, com tanta desfaçatez, que a gente morre de dó, de constrangimento e de vergonha.
Incrível que ninguém tenha protestado contra o sequestro. Lá está ela, indefesa, no noticiário de todo dia, emprestando sua tinta inocente para atos contra as florestas, contra os povos originários, contra a paz, todo tipo de atrocidade. Que tristeza. Logo ela, que não tinha nada que ver com isso. Justo ela: não é justo.
Deveríamos pensar mais sobre o assunto. Pouca coisa diz tanto sobre o esgoto brasileiro como a usurpação serial da velha esferográfica. Por que o chefe de Estado resolveu tomá-la por prolongamento fálico? O que ia em sua cabeça, onde nada vai de bom? A resposta é simples, embora desoladora.
A BIC é uma ferramenta perfeitamente fungível. É a pena desprovida de individualidade, mais ou menos como um hambúrguer de fast food ou um pedaço de giz. Ninguém herda uma BIC do pai. Ninguém guarda uma BIC de lembrança, pois não há nada nela que a diferencie de qualquer outra igual a ela. A BIC é como botijão de gás. Um casco de cerveja. Se três pessoas misturam suas BICs numa reunião, nenhuma delas saberá direito qual era a sua.
O mais intrigante é que, graças à sua fungibilidade, sua impessoalidade extrema, ela fez muito pela escola. Ajudou a alfabetizar pessoas, tornou a escrita, de algum modo, um pouco mais acessível: a promoção das crianças que aprendiam a escrever a lápis e, depois, podiam passar para a caneta ficou mais em conta. E como era solene desenhar as letras a tinta, mesmo que a tinta fosse de uma BIC. Como era bom ir com a mesma BIC até o fim da carga. Quando ela falhava, bastava aproximar a esfera de uma chama de palito de fósforo, com cuidado para que a ponta não derretesse. Dava certo.
Surgiram marcas de imitação. Ruins. Houve, também, um tempo em que lançaram inovações de alto luxo, como a BIC Clic, mas nada superou a original. A BIC era boa porque era de todos. Pobres e ricos escreviam com ela. Se havia um objeto que atravessava as classes sociais sem incomodar nenhuma delas, esse objeto era a BIC. Padres usavam BICs. Presidiários. Advogados. Prostitutas. Adolescentes. Até analfabetos. Usava-se o tubinho da BIC para traqueostomia e salvar vidas. Usava-se o mesmo tubinho para cuspir bolinhas de papel mastigado nos colegas de classe. A BIC era democrática – isso antes de a democracia entrar em implosão de dentro para fora.
Então, veio este tipo aí – este mesmo em quem você pensou, este que aí está, este aí. Por que ele escolheu a BIC para Cristo? (Voltemos à pergunta, que ficou esquecida lá atrás.)
Não, não foi pelo que ela tinha de barato e de bom, mas pelo que ela tinha de barateado e de vil. Ele a escolheu para mostrar que nunca, jamais, em nenhum momento, nenhum dia, nenhuma tarde, nunca mesmo, a afeição lhe passou pela caligrafia. Ele não teve uma superstição com canetas. Nem mesmo simpatia ele teve, tem ou terá. Ele não sabe o que é isso. Nem saberá. Outros podem gostar de sentir a pena da tinteiro deslizando sobre a rugosidade do craft ou do canson. Ele, não. Outros podem achar que autografar um livro com aquela mesma ponta porosa vai dar sorte. Ele não (vai sem vírgula). Outros podem pressentir no dorso de uma roller antiga as digitais ainda quentes de um escriba que já se foi. Ele não.
Sempre assim: ele não, ele não, ele não. Para ele, a escrita é vazia de simbólico e de espírito – e a BIC é uma forma de declarar que a caneta vale menos que uma arma de fogo. Em se tratando de armamentos, o tal deve distinguir modelos, deve ter preferências e até estimações; deve saber a diferença entre fuzil, cartucheira, carabina, rifle e espingarda. Quanto às canetas, para ele, são todas indistintas: tudo a mesma porcaria, todas BICs, todas genéricas. Ele assina os decretos como quem desfere um tapa na cara de alguém que preze a cultura, pois vê a cultura como um entulho descartável, como uma caneta descartável. Ele escolheu a BIC para dizer que descarta a cultura.
Onde a BIC significava simplicidade, ele inventou a representação do desprezo, e com seu desprezo humilha as letras, o saber, a compaixão, a democracia e a criança que a gente é até hoje, quando pergunta: o que vai ser da nossa BIC?
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*Eugênio Bucci é professor titular na Escola de Comunicações e Artes da USP. Autor, entre outros livros, de A superindústria do imaginário (Autêntica).
Publicado originalmente no jornal O Estado de S. Paulo.
Reprodução da obra “Bolsonaro”, do alemão Frank Hoppmann, publicado originalmente no jornal Paradox, de Israel, e um dos vencedores do concurso internacional de caricaturas, cartum editorial e desenhos de humor da World Press Cartoon (WPC)