Como a SBPC enxerga o pós-bolsonarismo

Ao término da 74ª reunião da entidade, uma de suas diretoras frisa importância de manifestações em favor da democracia e das pautas ambientais. Sustenta: temos instituições científicas no nível das melhores do mundo – falta superar negacionismo

Marimélia Porcionatto em entrevista a Alessandra Monterastelli, no Outra Saúde

O maior evento científico da América Latina foi marcado por uma semana intensa de encontros presenciais e online sediados na Universidade de Brasília. Sob o tema “Ciência, independência e soberania nacional”, em alusão ao ano que marca o bicentenário da Independência do Brasil, a 74ª Reunião da SBPC recebeu os candidatos à presidência para que pudessem apresentar suas propostas para à ciência. Jair Bolsonaro recusou o convite. Lula compareceu na quinta-feira (29), e recebeu de Renato Janine Ribeiro, presidente da SBPC, a publicação Projeto para um Brasil Novo, que reúne diretrizes em prol da Ciência, Educação e da soberania nacional para serem aplicadas no próximo governo.

O petista criticou a PEC do Teto de Gastos, usada pelo atual governo para bloquear verbas aos ministérios da Ciência, Tecnologia e Inovações e da Educação. Apresentou como proposta a reconstrução do Sistema Nacional de CT&I, com o objetivo de conectar políticas públicas com demandas sociais. “Precisamos recuperar as agências federais de fomento, como a Finep (Financiadora de Estudos e Projetos) e a Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), e trazer novos investimentos, com recursos do Fundo Social do Pré-Sal”, destacou.

O ex-presidente também defendeu a relação entre ciências e as questões ambientais, com programas específicos de incentivo à pesquisa para os biomas brasileiros, com destaque à Amazônia. Lula criticou a visão conservadora de que a ciência é um “gasto” para o Estado. “A gente tem que parar de ver as coisas como ‘tal coisa gasta isso’, e ver o quanto custou para o país não fazer as coisas no tempo certo. Quanto custou para esse país ser o último a abolir a escravidão? A fazer a reforma agrária há apenas 50 anos? Em fazer a sua primeira universidade somente em 1920? Ciência e Tecnologia não são gastos públicos, são investimentos para a soberania do país”, concluiu. 

O financiamento à ciência apareceu como primeiro passo para qualquer avanço na área durante os encontros promovidos pelo evento.  Em entrevista para o Outra Saúde, Marimélia Porcionatto, professora de biologia molecular da Unifesp, presidenta da Sociedade Brasileira de Biologia Celular e a tesoureira da SBPC, falou sobre as perspectivas da entidade a partir de 2023. 

O evento iniciou com um manifesto a favor das urnas eletrônicas. Além disso, durante a reunião, o tema da democracia apareceu em diversos debates. Por que esse tema é tão caro à SBPC?

Desde sua fundação, a SBPC sempre participou da defesa da democracia e, atualmente, estamos todos muito preocupados com as ameaças que o sistema democrático brasileiro tem recebido. A SBPC defende a segurança das urnas eletrônicas e quis dar visibilidade a esse tema na programação científica da reunião anual. É fundamental que informações corretas sejam difundidas, para combater as notícias falsas que tentam incutir dúvidas e incertezas na população, gerando insegurança que pode ameaçar a democracia no país.

As mudanças climáticas, a questão ambiental e a proteção de terras indígenas no Brasil foram temas centrais dessa 74ª reunião. Quais são as expectativas da comunidade científica brasileira no sentido de tomada de ações concretas para esses temas tão urgentes?

Infelizmente, neste momento, a expectativa da comunidade científica de que ações concretas para conter o avanço das mudanças climáticas sejam realizadas é baixa, pois muitos tomadores de decisão no governo federal negam a existência de tais mudanças, além de rejeitarem o fato de que o meio ambiente e seus diversos ecossistemas estejam ameaçados. Na questão indígena, também há uma enorme preocupação com relação à segurança dos povos originários, constantemente ameaçados, seja pela violência quanto pela precariedade do atendimento ao seu direito de acesso à saúde, entre outras agressões e perseguições. Não há indícios de que atitudes de proteção aos povos indígenas e seus territórios sejam tomadas no presente ou num futuro próximo, se não houver mudanças significativas na composição da gestão federal.

A retomada de projetos científicos com colaborações internacionais também foi um tema importante. Essa seria uma via para garantir a inovação tecnológica no Brasil? 

As colaborações internacionais são de grande importância para toda a comunidade científica, não somente para a inovação. Todos os níveis de pesquisa, da fundamental à aplicada ou inovadora, em todas as áreas de conhecimento, se beneficiam de trocas com pares internacionais. E isto não se aplica apenas ao Brasil, as colaborações internacionais devem ser proveitosas para todos os atores. Não podemos pensar em desenvolvimento, fundamental para soberania nacional, sem estímulos à pesquisa em todas as áreas do conhecimento, em todos os níveis. As colaborações internacionais devem resultar em trocas entre todos os agentes/parceiros envolvidos e nunca devem resultar em ganhos unilaterais.

Existe a possibilidade de o Brasil se projetar no exterior como um país em desenvolvimento líder em pesquisas científicas? Como ele é visto hoje? 

O Brasil é líder internacional em diversas áreas do conhecimento, vide por exemplo, pesquisas sobre doenças negligenciadas, como doença de Chagas, malária e outras doenças infectocontagiosas. Mantém institutos de pesquisa como a Fiocruz e o Instituto Butantã, para citar apenas duas instituições de grande protagonismo internacional. É importante que o sistema de CT&I do país continue fomentando as pesquisas científicas de todas as áreas do conhecimento e em todos os níveis, para que mais cientistas e instituições mostrem seu potencial para o protagonismo internacional.

O evento promoveu conversas com os candidatos à presidência. Segundo a SBPC, quais são medidas urgentes e necessárias que o próximo governo deverá tomar para o avanço da ciência no país?  

Medidas urgentes incluem o reconhecimento de que recursos para CT&I são investimentos no presente e no futuro do país, não são gastos e, portanto, não podem estar cortados ou bloqueados; recomposição dos recursos do FNDCT; instalação de mecanismos de proteção para que recursos destinados à CT&I não estejam sujeitos a cortes e bloqueios ao bel prazer dos governantes do momento.

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