Um jogo de regra e exceção

Por Jessica Santos, editora de relacionamento da Ponte

Depois da frase do comandante da Rota sobre a diferença de uma abordagem a depender do se é uma localidade rica ou pobre, tudo já deveria ter ficado bem claro para todos. Mas nunca é demais reforçar: há uma política de morte para corpos e bairros vulneráveis, uma regra em forma de alvo para pretos, mulheres, indígenas, LGBTs quando se deparam com forças policiais. A regra é a da bala, da porrada, do palavrão, do autoritarismo.

Basta ver como o motoboy Reginaldo foi tratado pela PM ao se desesperar por ver seu sustento lhe ser tirado por conta de problemas com seus documentos e habilitação. Não teve nenhum “licença”, “senhor”, nenhuma gentileza, nada. Apenas o clássico um monte de fardados a luz do dia contendo um homem que está desempregado e tem uma esposa doente em casa.

Uma mãe está no beco onde seu menino foi morto, ele é a regra. As roupas dela estão manchadas com o sangue de quem ela botou no mundo. Se aproximam os PMs responsáveis pela maior chacina dos últimos anos e ela expressa a dor que não tem nome, grita. O tratamento destes servidores do Estado é ameaçar a dar a mãe o mesmo destino do filho. “Sua piranha. Vagabunda. Vou te matar também, sua puta!”.

A regra é oprimir. Deixar marca de bala na parede, invadir casa em nome da operação, lavar o beco de sangue e bala. É preciso que eles tenham respeito e medo, que não se esqueçam que, de 1888 para cá, só mudou o fato de que agora ganham uns trocados e tem esse tal de direitos humanos para reclamar quando a regra é cumprida.

 Mas o ditado diz que para toda regra há uma exceção e ela é branca, mora no Jardins, é filha de autoridade. Quem goza da exceção é chamado de “senhor”, “senhora”, “doutor”, tem tapete vermelho estendido e o poder de desacatar quem quer que seja sem que a regra seja aplicada em seu rigor.

Isto não é um devaneio. Esta semana, a filha de uma juíza deu aquela carteirada: “você sabe com quem está falando” durante um chilique comum a espécie por não ter o que queria quando queria. O vídeo é mais claro do que a pele da personagem: um PM a ameaça com prisão por desacato quase implorando para não ser obrigado a tal e ela não se amedronta. “Me prende, pode me prender. Tu não é macho?”, ela brada ciente de seus privilégios. Pode entrar na viatura a seu bel prazer e fazer acontecer sob as bençãos de sua exceção.

Na nota enviada para o UOL, a PM de Minas Gerais, onde o fato se aconteceu, deu a seguinte resposta ao ocorrido: “Utilizando a técnica policial de verbalização, os policiais militares, juntamente à sua amiga, condutora do veículo, conseguiram convencê-la a se retirar da viatura policial, não sendo necessário o uso de força”.

Façamos um exercício de imaginação: troque a moça branca por uma mulher negra que seja corajosa o suficiente para romper seu lugar como regra e escolha agir como se fosse uma exceção. Você consegue imaginar a mesma cena acontecendo? Consegue imaginar a mesma tolerância e técnica de sei lá das contas ser usada com ela? Por cavalheirismo, os PMs provavelmente “só” iriam xingá-la de início daquela forma educada e pacificadora que costumam fazer. Se ela seguisse em revolta, levaria um tapa ou seria contida como se fosse uma escrava fujona. A violência é a arma que fará com que ela entenda que não é e nunca será a exceção. E talvez pague com a vida por tentar ser.

A política de morte está dada desde que o primeiro colonizador resolveu usar um corpo outro como mercadoria e, desde então, a regra do jogo é esta, sempre foi. Talvez sempre seja se não fizermos algo para parar e mudar. Acredito que estamos em um ano ideal para isso. O Estado de exceção, violência e privilégios tem que acabar e nós podemos ser responsáveis pelo seu fim. Podemos ser autores de um Estado de democracia, de pão e de igualdade. Se não for para que nós o desfrutemos, que deixemos como legado que a regra é a justiça e paz.

Frases como “o seu voto cheira a sangue” e “não acredite em contos de fardas” foram escritas pela artista Ana Letícia Penedo como forma de marcar uma semana do massacre na comunidade de Paraisópolis, em 2019. Foto: Cleston Teixeira

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