Plano Diretor instituiu Lago do Maicá como área de expansão portuária sem considerar impactos sociombientais para comunidades tradicionais
Povos indígenas, quilombolas, pescadores artesanais, ribeirinhos e comunidades tradicionais que moram às margens do Lago do Maicá, em Santarém (PA), tiveram uma importante vitória para garantia de seus direitos e pela preservação ambiental. No dia 27 de julho o Tribunal de Justiça do Pará proibiu o município de Santarém de conceder autorizações para novas construções portuárias na área do Lago do Maicá. A decisão é resultado de ação movida pela Federação das Organizações Quilombolas de Santarém (FOQS) e pelo Conselho Indígena Tapajós e Arapiuns (CITA).
A decisão considera que o processo de aprovação do Plano Diretor da cidade, ocorrido em 2018, violou o direito à participação dos povos tradicionais da região e que a nova condição portuária estabelecida não contou com os estudos de viabilidade técnica para prever os impactos e a degradação ambiental trazidas pelos portos.
A decisão também determina que a Câmara de Vereadores de Santarém disponibilize para as comunidades e sociedade civil todos os documentos do processo legislativo que instituiu o novo Plano Diretor, garantindo a transparência e possibilitando que as comunidades e a sociedade civil entendam como se deu o processo. Assim como a Casa Legislativa deve apresentar e publicar na internet os estudos, mapas, relatórios e quaisquer outros documentos que serviram de base para que vereadores e prefeitura realizassem a mudança da área do Lago do Maicá – de Área de Proteção Ambiental (APA) para área de expansão portuária. O prazo estabelecido para cumprimento da decisão pela Câmara foi de 30 dias sob pena de multa de 100 mil reais por mês, caso a decisão não seja cumprida.
O Plano Diretor – texto que rege o ordenamento urbanístico da cidade – foi modificado pela Câmara dos Vereadores e apreciado às pressas na última sessão legislativa de 2018, contrariando decisão popular validada em Conferência Municipal de novembro de 2017 que estabelecia a necessidade de consulta prévia, livre e informada aos povos tradicionais da região antes de qualquer projeto ou obra no Lago, seguindo princípios da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
A mudança violou o direito ao território, participação social e à consulta prévia de povos e comunidades tradicionais da região, que a partir disso acompanharam a consolidação de empreendimentos no Lago. A instalação das obras tem afetado os seus modos de vida e o meio ambiente.
Onde antes era uma área de proteção ambiental com grande diversidade de espécies da fauna e flora, forte atividade pesqueira tradicional e turismo comunitário, hoje passa a contar com a presença de estruturas portuárias e movimentações de navios de cargas e descargas que já afetam a profundidade das águas, provocando o assoreamento de braços do rio e igarapés, como observam as comunidades. Além disso, os moradores também convivem com a constante ameaça de vazamentos de óleo dos carregamentos e contaminações, uma vez que já há um porto de exportação de combustível no local.
Para a assessoria jurídica da Terra de Direitos, a decisão da Justiça do Pará representa um importante avanço para luta coletiva dos movimentos e comunidades tradicionais. “Nesses dois anos a gente percebeu como os portos vêm se instalando no Lago do Maicá e vem impactando as comunidades tradicionais por conta da soja e da dragagem do Lago. E agora os povos indígenas e quilombolas conseguiram essa decisão tão importante, que parte de uma avaliação e articulação política coletiva feita pelos movimentos”, avaliou. A Terra de Direitos contribuiu na assessoria jurídica da ação.
A decisão torna-se ainda mais importante considerando que em maio deste ano, a 6ª Vara Cível e Empresarial de Santarém proferiu decisão contrária as comunidades tradicionais, considerando que não havia elementos indicativos de que a aprovação do novo Plano Diretor pela Câmara de Vereadores havia violado o direito à participação e consulta prévia aos povos e, portanto, mantendo a possibilidade de chegada de novos empreendimentos na área do Maicá. (Leia mais na reportagem do Tapajós de Fato)
Esta decisão da Justiça de Santarém também foi contrária ao parecer feito pelo Ministério Público do Estado do Pará em março de 2022. A manifestação aponta que a a ausência de participação popular na formulação, execução e planejamento das cidades implica na ilegalidade do processo. “A provação de um Plano Diretor que desconsidera a vontade popular fere o princípio da gestão democrática das cidades e se mostra avesso às disposições do Estatuto das Cidades e da Constituição Federal.”, destaca o documento.
Essa violação do direito à participação da população em todas as etapas do processo de instituição do Plano Diretor foi um dos argumentos utilizados pela desembargadora Luzia Nadja Nascimento na decisão contra o município, proferida nos últimos dias. A desembargadora afirma que, mesmo realizadas as audiências públicas e discussões o direito das comunidades não foi efetivado uma vez que os encaminhamentos validados sofreram alterações. “Tenho que a potencial falta de transparência no processo legislativo, mesmo com a realização prévia de audiências públicas, pode evoluir para o reconhecimento da inconstitucionalidade da norma”, declarou a desembargadora.
A nova decisão pelo Tribunal de Justiça do Pará, em 2º grau, que suspende as concessões de autorização para novos portos pela Prefeitura é compreendida pelas comunidades como bastante significativa. Isto porque, os povos indígenas, quilombolas e populações tradicionais de Santarém historicamente lutam pela preservação do meio ambiente e pela manutenção de seus modos de vida. “Essa decisão fortalece o movimento. Mostra que nós não estávamos equivocados em mostrar para a sociedade que essa área não é uma área portuária, ela é uma área de preservação e precisa ser avaliado isso”, afirma a Federação das Organizações Quilombolas de Santarém (FOQS), que representa as 12 comunidades quilombolas do município.
O Conselho Indígena Tapajós e Arapiuns (CITA), também pontua que essa decisão representa anos de luta dos povos originários e tradicionais e a conquista de direitos. “Quando paralisa a concessão desses portos a gente vê que a gente consegue lutar e conquistar esse direito. Então a gente espera mesmo que a decisão seja respeitada. Que seja respeitado o meio ambiente, que seja respeitado os estudos de impactos sociais e ambientais. Que seja respeitado o direito a consulta prévia, livre e informada”.
Irregularidades na revisão do Plano Diretor
Iniciado em julho de 2017, o processo de revisão do Plano Diretor de Santarém contou com a realização de audiências públicas, oficinas nas comunidades urbanas e rurais, e com a Conferência Municipal de Revisão do Plano Diretor. Todas essas etapas deveriam garantir a participação efetiva das populações tradicionais e, consequentemente, a realização da consulta prévia, livre e informada antes das alterações e aprovação do novo texto, como estabelece o Estatuto da Cidade. No entanto, não foi isso que aconteceu.
Coordenado pela Secretaria Municipal de Desenvolvimento Econômico (SEMDEC) e pelo Governo do Estado do Pará, o processo possuiu um curto calendário de 6 meses – de agosto a dezembro – que deveriam incluir todas as etapas de formulação, discussão e aprovação do texto. Apesar disso, as comunidades e movimentos sociais santarenos se articularam e conseguiram ampla participação nas atividades, atuando com sugestões e argumentos sobre as mudanças propostas e sendo contrários, principalmente, quanto a alteração da área de proteção ambiental do Lago do Maicá.
De um lado estavam as comunidades e movimentos na defesa pela preservação do meio ambiente e manutenção da vida, subsistência e culturas tradicionais das mais de 1.500 famílias que residem nas proximidades do Maicá. De outro lado, empresários do agronegócio da região.
A FOQS conta que os embates e as discussões sobre a destinação do Lago do Maicá foram acirrados. As comunidades tradicionais tiveram que lidar até com discursos preconceituosos. “E até havia piadinhas que as pessoas falavam: voltem para as terras de vocês e vão comer folhas. Mas a gente tem uma visão: quando a gente fala em folhas, tá falando em árvores, em preservação. A gente tá falando do meio ambiente. E normalmente os empresários não tem essa visão que nós temos, essa preocupação com a população que está dentro desses territórios”, declarou.
Após os debates, o texto aprovado na Conferência Municipal e encaminhado à Câmara foi o validado pelas comunidades, mantendo a área de preservação ambiental do Maicá. No entanto, a decisão popular e as alterações que deveriam constar no novo Plano Diretor representaram entraves para empresários do segmento do agronegócio, que já tinham planos e contavam com a instalação de novos portos no Maicá para alavancar seus empreendimentos.
Durante todo o ano de 2018 a apreciação do novo texto ficou travada na Câmara Municipal. Enquanto isso, empresários do setor do agronegócio de Santarém realizaram reuniões fechadas com vereadores – fora dos ritos processuais do Plano Diretor – e conseguiram assegurar que o Lago do Maicá entrasse no novo ordenamento urbanístico de Santarém como área de expansão portuária.
Foi assim que em dezembro de 2018, sem o devido anúncio para a sociedade civil e populações tradicionais – e na última sessão legislativa do ano – os vereadores de Santarém incluíram emenda a minuta do Plano Diretor permitindo a implantação de terminais de uso privado e estações de transbordo de cargas no Lago do Maicá, área antes considerada de preservação ambiental. O Plano Direito foi sancionado pelo prefeito Nélio Aguiar pela Lei 20.534, de 17 de dezembro de 2018, resultando na violação dos princípios do Estatuto da Cidade, que garante a participação da sociedade nas decisões sobre a política urbana.
O avanço da atividade portuária
Antes mesmo do novo Plano Diretor, as populações do Lago do Maicá já lutavam contra o projeto do Porto da Embraps (Empresa Brasileira de Portos de Santarém). Previsto para ser instalado na “boca” do Lago, o Porto iniciou o processo de licenciamento da obra sem considerar a existência de povos indígenas, comunidades quilombolas e tradicionais.
O projeto do Porto da Embraps era uma alternativa para escoamento da produção graneleira na região do Planalto Santareno, processo que foi impulsionado na região pela chegada de um outro porto: o da empresa multinacional Cargill, que com grande capacidade de escoamento trouxe o agronegócio para região e modificou a paisagem do Oeste do Pará com o avanço das grandes fazendas de monocultura de soja e milho.
Assim como a Embraps, o processo de licenciamento e instalação da Cargill foi permeado de irregularidades e violações de direitos humanos das comunidades tradicionais santarenas. A Embraps, no entanto, tem enfrentado a intensa e persistente resistência dos movimentos e comunidades tradicionais que denunciam suas irregularidades em defesa da preservação ambiental do Lago do Maicá.
As obras do porto da Embraps estão suspensas pela Justiça Federal desde 2016 em decisão na Ação Civil Pública movida pelo Ministério Público Federal (MPF) e Ministério Público Estadual (MPPA), que acolheu as denúncias feitas pelas comunidades. A paralisação se mantém até que a empresa comprove a realização da consulta prévia, livre e informada das comunidades quilombolas e povos tradicionais afetados pelo empreendimento, conforme prevê a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, da qual o Brasil é signatário.
Com a instituição do Plano Diretor em 2018 e o novo “aproveitamento” da área do Lago do Maicá para atividades portuárias os problemas socioambientais das famílias residentes nas proximidades do Lago, que já existiam por conta de outros portos, se intensificaram.
“A gente já viveu muito o que esses grandes portos graneleiros trazem para a população e para o meio ambiente. Esses empreendimentos chegam sem respeito ao povo, sem levar em consideração o protocolo de consulta, a consulta prévia livre e informada. Sem respeitar os direitos dos povos indígenas e populações tradicionais, bem como o direito a natureza”, pontua o CITA.
Em 2019, a abertura do Lago para expansão portuária trouxe para o próximo das famílias um novo tipo de empreendimento: a empresa amazonense Atem Distribuidora de Petróleo. O porto de combustíveis para embarcações está localizado na beira do Rio Amazonas, próximo ao Rio Saracura (um braço do Rio Amazonas) e em frente à boca do Maicá, o canal de água que abastece o Lago Maicá.
Da mesma forma que nos casos anteriores, a resistência e persistência na defesa de seus direitos e da vida feita pelas comunidades tradicionais e quilombolas levaram as denúncias das irregularidades e dos impactos da obra a público. O processo de licenciamento ambiental da obra foi facilitado porque a empresa omitiu que o terminal serviria para transporte e armazenamento combustíveis, considerado carga perigosa.
Porém no caso da Atem’s, mesmo com uma decisão favorável à paralisação dada em resposta a Ação Civil Pública movida pelo Ministério Público Federal em 2020, as obras continuaram (em meio a pandemia) a partir de decisões judiciais a favor da empresa e hoje – mesmo com dois processos em andamento – a empresa está consolidada na região com os impactos as comunidades se intensificando a cada dia.
O assédio de grandes empreendimentos segue sendo uma ameaça constante para as populações tradicionais. Isso aparece refletido como foco de planos previstos para o município, como apontou o Prefeito Nélio Aguiar em reunião do Grupo de Gestão Integrada para o Desenvolvimento Regional Sustentável da Secretaria Municipal de Planejamento, Desenvolvimento Econômico, Industria, Comércio e Tecnologia (Semdec), em 2021.
“Uma oportunidade, onde a gente junta os principais investidores do agronegócio e da logística nacional, juntamente com órgãos do governo federal, estadual e municipal, tratando de um assunto, uma pauta, que vem crescendo geometricamente nos últimos anos pelo aumento da produção de grãos, soja e milho, e precisa de porto, precisa de ferrovia, precisa de rodovia, para escoar toda essa produção e ganhar o mercado internacional” destacou o prefeito.
A recente decisão do Tribunal de Justiça do Pará, de acordo com a assessoria da Terra de Direitos, garante seguridade jurídica até a finalização do processo e reconhecimento dos direitos das populações tradicionais do Lago do Maicá – e de maneira geral de Santarém – de serem consultadas antes de qualquer instalação de empreendimentos que possam vir a afetar seu modo de vida.
“Não é que os quilombolas sejam contra o desenvolvimento, pelo contrário. Nós somos super a favor do desenvolvimento, mas um desenvolvimento sustentável. Um desenvolvimento em que não apenas uma minoria se beneficie. Porque nós precisamos entender que existem famílias aqui pra dentro [do Maicá] que dependem, e dependem muito, dos lagos e dessa área de preservação para que eles possam sobreviver”, declara a FOQS.
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Lago do Maicá, lar de povos indígenas, quilombolas, ribeirinhos e pescadores tradicionais (Foto: Tay Silva)