A resposta da bebé ao desembargador do TJ-AM. Por José Ribamar Bessa Freire

No TaquiPraTi

“Por favor / Pare agora! / Senhor juiz / Pare agora!”.
(Versão de Wanderléa. A. Resnik / K. Young. 1965)

Por que Maluzinha, com seis meses de idade, choramingou durante audiência virtual no Tribunal de Justiça do Amazonas (TJ-AM) na segunda-feira (22)? Que choro era aquele? O que ela estava querendo dizer? Por que o desembargador Elci Simões deu um esporro na mãe, a advogada Malu Borges Nunes, de 29 anos? O magistrado comparou o choro da criança com latido de cachorro e exigiu sua retirada do ambiente, alegando que o “barulho” atrapalhava o julgamento. Ele atribuiu a categoria de “ruído” a uma fala, a um som humano. Desrespeitou aquilo que é sagrado. Sequer suspeitou que se tratava de um diálogo entre mãe e filha. Não entendeu bulhufas.

Tentarei explicar, embora desconheça a teoria do choro. Não sou carpidólogo, mas responderei às perguntas baseado em dados empíricos da vivência pessoal. Sou o sexto de 13 irmãs e irmãos e acompanhei de perto a criação de pelo menos seis que nasceram depois de mim. Aperfeiçoei a reflexão com alunas que amamentavam bebés, enquanto eu dava aula. Além disso, a pós-graduação em chorologia com sobrinhas e netas me ensinou que o choro é uma linguagem, através da qual nenéns não falantes expressam o que sentem.

É preciso decodificar o tipo de choro para entender a mensagem, que pode indicar, pelo menos, as seguintes situações, segundo um saber empírico: fome, cólica, cansaço, tédio, calor e desconforto, ou fralda suja. Tem ainda o choro sem motivo aparente. Em qual dessas categorias se enquadra o choro da Maluzinha na sessão do Tribunal?

Choronas e chorões

Asseguro, de saída, que fome não era. A Maluzinha acabava de ser amamentada, estava de bem com a vida. O choro de fome é outro: escandaloso, cadenciado e monocórdio, como o da minha irmã caçula Maria do Céu, quinze anos mais jovem que eu. O meritíssimo veria o que é bom pra tosse, se ouvisse o berro faminto da Céu, que consolida o ditado popular “quem não chora não mama”. Ainda hoje, pedagoga gabaritada, ela geme e resmunga, quando faz dieta obrigatória restritiva em carboidratos.

Não. Definitivamente, de fome não era. Também não era anúncio de dores de cólica, sofridas pelo meu irmão Domingos Sávio, que aos três anos morreu afogado no igarapé do Mindu. Seu uivo intenso e bombástico competia com a eletrola da Leonor, nossa vizinha, e ressoava lá na Escadaria da Xavier. O berro agudo só parava quando dona Elisa o deitava de barriga pra cima, dobrava suas perninhas até ele soltar peidinhos fedorentinhos, que seriam educativos se fossem na cara do meritíssimo.

Ou será que a Maluzinha chorava de cansaço ou desconforto? Não. Necas de pitibiribas. Ela estava tranquila e descontraída. Conheço choro de fadiga. É um pranto manhoso, anasalado, com coçadas no olho, tal qual o praticado por minha irmã Bambi, hoje professora na Faculdade de Farmácia da UFAM. Nada que uma boa soneca não resolvesse. Não foi o caso na audiência virtual no TJ-AM.

Podia então ser um lamurio de tédio? Isso existe sim. A Celeste, minha irmã que é assistente social, balbuciava inquieta para chamar a atenção da mamãe e das irmãs, retinha o fôlego, bocejava e ia aumentando gradualmente a intensidade da respiração, só cessava quando recebia um carinho. No entanto, está comprovado: a Maluzinha não estava entediada. Absolutamente.

Seria então um choro repetitivo, sem lágrimas, como a fungada da Preta? No calor, era buáááá. Com suor no couro cabeludo, unhééééé. Com brotoejas no pescoço, snif, snif como nas histórias em quadrinhos traduzidas do inglês. Nenhuma dessas formas de expressão foi usada pela Maluzinha. Mas a Pretinha, chamada de Liten Svart por uma sobrinha deslumbrada com Estocolmo, reza para o meritíssimo poder decifrar a linguagem da criança. Minha irmã é um ser especial. Embora abomine o Coiso e os seus quatro zeros, diariamente reza por eles por considerá-los “criaturas de Deus”.

Fralda suja

O último chorão da lista fraterna é o Cado, que abria um berreiro cada vez que urinava ou sujava a fralda. “Quem não chora como o Cado, fica todo cagado” – dizia a mãe caprichando na rima certa. Ele odiava tanto odores pestilentos que, já adolescente, foi fazer exame de fezes e inutilizou o “produto”, porque despejou na latinha gotas de Royal Briar, “o perfume que deixa saudades”. Questionado pela mãe, gaguejou: – Eu não podia entregar cocô fedorento para a moça da recepção, tão bonitinha.

Finalmente, existe choro sem motivo aparente como o de um sobrinho, publicitário de profissão, que hoje explode de alegria, mas na infância, “transbordava oceanos e mares” como no samba “O pranto que eu chorei” de Arlindo Cruz, gravado por Beth Carvalho. Às vezes, a mãe já deitada, ele afastava seu cabelo da orelha e para não ter dúvidas de que seria escutado, durante horas sapecava no ouvido dela, a meio centímetro de distância: anh anh anh anh. Diante disso, minha avó Filó sempre encontrava um motivo:

– Essa criança está com sede. Dá água pra ela.

E não é que funciona! Aprendi que quando não se consegue entender o que a criança quer dizer com seu choro, dar de beber sempre acalma, praticamos assim uma das obras de misericórdia.

Não foi o caso no TJ-AM. Mas se lá não era choro desmotivado, fome ou cólica, cansaço ou tédio, nem calor ou fralda suja, o que, afinal, queria dizer Maluzinha na audiência em  home office? O bom jornalismo ensina que é preciso ouvir o outro lado. Fizemos isso. Ouvimos o desembargador, depois a criança (ver link abaixo). O que ocorreu não chegou a ser um choro, mas um chorinho álacre que Pixinguinha adoraria musicar, um pio de passarinho, um trinado, um gorjeio, quase um canto.

Embargador de choro

Por isso, houve um protesto generalizado contra o “embargador de choro” – como foi classificado com propriedade pelo sociólogo Lúcio Carril, para quem houve violência manifestada na “ideologia opressiva de gênero e de classe”. Na Assembleia Legislativa, o deputado Serafim Corrêa (PSB) repudiou o “momento de rara infelicidade” do desembargador. A OAB/AM e a OAB/SC se solidarizaram com a advogada. Nas redes sociais, o fato repercutiu negativamente em âmbito nacional.

– O choro do bebezinho de seis meses não veio atrapalhar um julgamento, mas aumentar o coro daquelas e daqueles que não suportam mais cenas de misoginia e de aversão à condição da mulher – diz a nota de repúdio da Procuradoria da Mulher do Senado, assinada pela senadora Leila Barros (PDT-DF), que chamou a atenção para atos semelhantes ocorridos em outros espaços e até dentro das próprias universidades.

Há cerca de três ou quatro anos, no curso de pedagogia da UERJ, um professor botou pra fora da sala de aula uma aluna que amamentava o filho, alegando que o desconcentrava. Todas alunas e alunos se levantaram e realizaram uma manifestação ruidosa de protesto nos corredores e decidiram nunca mais assistir as aulas do docente, que era muito competente. Pronto. Deixou de haver “barulho” na sala, mergulhada no silêncio. Ele era meu amigo e não gostou por ter eu me solidarizado com a aluna e apoiado a manifestação. Afinal, nessas horas costuma funcionar o corporativismo de juízes, professores, médicos.

No caso da advogada, que fazia trabalho remoto e amamentava sua cria, ela teve negado seu pedido de prioridade na audiência, ao contrário do ocorrido recentemente no Superior Tribunal de Justiça (STJ), quando o ministro Mauro Campbell Marques, em sessão por ele presidida, deu prioridade ao advogado Felipe Cavallazzi, que cuidava do filho de 1 ano e 10 meses.

– Ser mulher na sociedade não é tarefa fácil, imaginem para as mães em um ambiente “dominado” por homens – declarou a advogada Malu.

Por isso, é importante ouvir a criança. Sua linguagem foi clara: – “Mãe, esses chatos não entendem nada”. Seu trinado dirigido aos “irmões Simões” dizia que barulho mesmo quem fez foi Yedo Simões, o outro desembargador, irmão de Elci, há seis meses, quando no trabalho remoto em sua residência participava de sessão do Tribunal. Yedo se mexeu bruscamente na cadeira, esbarrou na biblioteca, que caiu com um estrondo, mostrando que a prateleira cheia de livros atrás dele era fake, era um painel cenográfico, que imitava uma estante. Não possuía sequer um livro, que ele nunca leu.

Naquela ocasião, o mano Elci Simões não reclamou do barulho. Isso sim, era barulho, não o gorjeio infantil.  Maluzinha, imitando Wanderléa, cantora da Jovem Guarda de 1900 guaraná com rolha, pediu para o juiz parar. Foi só isso.

P.S. – https://www.youtube.com/watch?v=cORvRFb_pRE

 

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