Agroecologia: O que eu diria ao presidente Lula? Por Jean Marc von der Weid

É preciso ir além dos R$ 600: redefinir cesta básica e criar robusto programa para alimentar com qualidade nutricional os 33 milhões de famintos no Brasil. Isso exigirá taxação emergencial de grandes fortunas e vislumbrar futuro agroecológico

Em Outras Palavras

Faço parte de um grupo autointitulado “intelectuais progressistas orgânicos”, reunidos em uns 30 coletivos, coordenados pelo Fórum 21, o qual está organizando um encontro com o Lula. São mais de 500 inscritos para este encontro presencial e virtual, a ser realizado no dia 16 de setembro. A proposta é apresentar ao nosso ex e futuro presidente contribuições para a campanha e para o seu próximo governo. Trata-se de um conjunto predominantemente de veteranos militantes que também são destacados especialistas em vários campos de políticas públicas.

Entre tantos militantes e profissionais altamente preparados, possivelmente não estarei entre os que poderão expor suas ideias ao nosso futuro presidente. Lula não terá tempo para tanta gente. Por isso mesmo, estou colocando no papel aquilo que direi ao Lula se tiver a oportunidade. Se não for possível, tudo bem, as ideias estarão circulando e um dia chegarão no lugar certo, no tempo certo.

É bom esclarecer, desde logo, que não falo em nome de ninguém a não ser eu mesmo. O que tenho a dizer é fruto de 60 anos de militância política, desde antes da ditadura militar, de 40 anos de militância no movimento pela agroecologia e pela agricultura familiar e de 30 anos de participação na formulação e negociação de políticas públicas para o desenvolvimento agroecológico, dialogando com os governos dos presidentes Itamar, Fernando Henrique, Lula e Dilma. O que tenho para dizer também é fruto de intenso diálogo com os movimentos sociais do campo brasileiro, ao longo de mais de quatro décadas.

Fundei e dirigi, por longos anos, a primeira ONG de promoção do desenvolvimento agroecológico do Brasil, a hoje AS-PTA (Agricultura Familiar e Agroecologia), um dos principais vetores para a criação da ANA (Articulação Nacional pela Agroecologia) e da ABA (Associação Brasileira de Agroecologia), que organizam e representam o movimento agroecológico. Aposentado desde 2016, hoje me dedico a estudar e sistematizar as nossas experiências de desenvolvimento e as políticas públicas que ajudamos a construir. A pretensão é analisar criticamente o passado para ajudar a preparar o futuro.

1. A importância do tema da agricultura em um programa de governo:

Em geral, os governos no Brasil olharam para a agricultura com dois vieses: econômico, centrado no agronegócio, e social, centrado na agricultura familiar. A prioridade do primeiro foi uma constante em todos os governos, presidente Lula, inclusive no seu. Isto se explica pela herança deixada pelas políticas do governo do seu antecessor. O agronegócio chegou a ser apresentado como “âncora verde” do Plano Real, embora este papel seja discutível. Tudo foi feito pelos governos sucessivos para garantir que o agronegócio progredisse e continuasse a trazer divisas para a nossa economia. Não se pode questionar os resultados positivos destas políticas, sobretudo pela construção de uma substancial reserva cambial, mas há uma forte tendência a se esquecer dos custos que elas tiveram e dos efeitos colaterais que provocaram.

O favorecimento do agronegócio implicou em gigantesca renúncia fiscal, tanto sobre os produtos, como sobre os insumos, além de uma incessante ajuda nos créditos, inclusive enormes anistias e renegociações muito facilitadas de dívidas dos grandes produtores.

Quanto aos efeitos colaterais, o primeiro e mais importante foi orientar o setor mais dinâmico da nossa economia rural para as exportações. Ou melhor, enfatizar uma tendência que já existia. Hoje, o agronegócio está centrado em um pequeno número de commodities, com forte predominância da soja e do milho (50% ou mais da área cultivada anualmente) e mais açúcar, café, laranja, celulose, carnes e outros produtos de menor significação. Tudo dirigido prioritariamente para os mercados internacionais, com peso na produção para ração. Uma parte menor do agronegócio centrou seus investimentos em produtos dirigidos para a classe A, capaz de remunerar os produtores, pagando preços altos, competitivos com os das commodities dos mercados internacionais. Como o senhor sabe, presidente, esta classe no Brasil é pequena e não demanda grandes volumes de produção, representando um mercado estreito.

Adotou-se, ao longo da sua presidência, a visão de que a agricultura familiar abasteceria o mercado interno, o que contraria o viés social do olhar tradicional sobre este setor. A agricultura familiar era responsável por 70% do consumo interno de alimentos, avaliação feita nos anos 90 e que se mantém, sem ser revista, até hoje. É, ou era, verdade, mas é preciso notar que a demanda de alimentos no Brasil é limitada pela pobreza da maioria do povo. A agricultura familiar nunca chegou nem perto de produzir o suficiente para abastecer o mercado interno potencial, se todos os consumidores auferissem uma renda suficiente para comprar a cesta básica. Ou seja, tivemos sempre um mercado interno com demanda reprimida, o que também acaba afetando a oferta.

Por outro lado, os esforços para aumentar a oferta de alimentos pela agricultura familiar passaram, de FHC a Dilma, incluindo os seus dois governos, presidente, pelo favorecimento do uso de adubos químicos, pesticidas, sementes de empresas e maquinário, através de crédito altamente subsidiado e de acesso facilitado. Isto levou parte da agricultura familiar a mudar o seu modo de produzir. De propriedades com muitas culturas em consórcios e baixo uso de insumos externos, os agricultores familiares passaram a cultivar uma só cultura (lembro que o crédito não financia o conjunto das atividades produtivas, sendo dirigido a um só produto). E passaram a usar insumos que são caros e com permanente pressão de alta, mesmo quando subsidiados. O preço dos fertilizantes, por exemplo, aumentou 200% de 2020 para cá. Foi um salto muito alto, mas lembro que os aumentos vêm sendo contínuos há décadas.

O resultado destas políticas, presidente, bem-intencionadas, sem dúvida alguma, foi aumentar a margem de riscos destes agricultores, que passaram a depender de um só produto. Seus técnicos no Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) não eram bobos e pensaram em minimizar os riscos com um programa de seguro agrícola. Isto funcionou até certo ponto, mas os agricultores do Sul e do Sudeste logo perceberam que os riscos que estavam assumindo seriam menores se entrassem nas cadeias produtivas típicas do agronegócio e se voltassem para a produção de commodities dirigidas à exportação, sobretudo milho e soja. A demanda reprimida dos consumidores pobres não absorvia os custos maiores do novo modelo adotado pela agricultura familiar e o resultado foi a diminuição da contribuição deste setor para a produção de alimentos para o povão. Presidente, o consumo per capita de arroz, milho, feijão, mandioca e outros produtos da dieta tradicional popular caiu significativamente ao longo das últimas décadas.

Entre os efeitos deletérios destas políticas, temos que incluir o endividamento dos agricultores familiares. O senhor deve lembrar, e a presidente Dilma também, que as pautas de negociação anuais do MST, CONTAG e CONTRAF com os governos foram dedicadas, desde 2006, ao pedido de perdão de dívidas ou de sua renegociação subsidiada, isto apesar do seguro agrícola que o senhor instituiu. Ao longo de vários anos, isto resultou, para muitos agricultoresem falências, abandono das propriedades ou o seu aluguel a proprietários maiores.

A comparação entre os censos de 2006 e 2017 indicaram que a agricultura familiar perdeu 400 mil produtores. E isto, presidente, ocorreu ao mesmo tempo em que o seu segundo governo distribuiu terras para 280 mil famílias e o da presidente Dilma para mais 120 mil. Isto significa que, apesar dos esforços para aumentar e fortalecer a agricultura familiar e a oferta de alimentos no país, cerca de 800 mil agricultores familiares deixaram o campo.

Presidente, prepare-se para escutar os especialistas simpáticos ao agronegócio usando estes dados para dizer que a reforma agrária está fadada ao desastre e que o melhor é esquecer esta política e tratar os agricultores familiares como “problema social”, a ser compensado com um programa de Bolsa Família turbinado, esperando que esta classe vá desaparecendo “naturalmente”. O ministro da economia de FHC, Pedro Malan, profetizou exatamente isso lá por 1996, prevendo que, a exemplo dos países desenvolvidos do Ocidente, o campesinato se reduzirá a uns 3% do número total dos produtores rurais, em mais uns 20 a 30 anos. No entanto, presidente, é preciso lembrar que isto significaria a migração para as cidades de 3,6 milhões de famílias, umas 15 milhões de pessoas, pelo menos. Eliminar a agricultura familiar ampliaria gigantescamente o número de brasileiros e brasileiras demandando emprego, infraestruturas sociais, serviços e alimentos nas cidades, que já tem um enorme número de marginalizados. Seria um resultado catastrófico a deixar como herança para as próximas gerações.

Outro efeito devastador da agricultura do agronegócio foi e é o impacto sobre o meio ambiente. O Brasil e o mundo já sabem do impacto do agronegócio sobre as matas que definiram, muito mais do que o ouro, a cor da nossa bandeira. Perdemos mais de 90% da Mata Atlântica, 54% da Caatinga, 55% do Cerrado, 20% da Amazônia e 54% do Pampa Gaúcho. Os dados sobre o Pantanal eu não consegui totalizar, mas até 2020 a perda era de 20% e naquele ano e, no seguinte, 46% da vegetação deste bioma ardeu. Se toda esta área desmatada no Brasil estivesse ocupada pela agricultura, seja a do agronegócio ou a da agricultura familiar, ainda se poderia discutir se valeu a pena. Mas a triste verdade, presidente, é que a acelerada destruição da nossa cobertura verde resultou em mais de 140 milhões de hectares que se tornaram “terras degradadas”, sendo que a metade em grau avançado de degradação. Muitos outros milhões de hectares se tornaram pastos de baixíssima produtividade. Não podemos esquecer que na região nordeste, 12,3% do semiárido já está com um processo de desertificação irreversível e que a área ameaçada pela expansão do deserto é de 1,36 milhões de hectares. Nesta contabilidade sinistra não está incluída a perda de fertilidade dos solos saturados de adubos químicos e agrotóxicos.

Outro impacto brutal é menos visível para o grande público, mas é bem conhecido dos especialistas: a mudança climática que o desmatamento já está produzindo e que pode provocar, a médio prazo, a transformação da Amazônia em uma grande savana seca e o Pantanal e o Cerrado em zonas semiáridas. Isto provocaria a eliminação dos chamados “rios voadores”, as massas de ar úmido que trazem chuvas para o Sul e o Sudeste do Brasil. Toda a nossa agricultura está ameaçada por este efeito, que já aparece na frequência com que sofremos com secas mais intensas. Esta é outra herança que o senhor não vai querer deixar.

Não posso deixar de mencionar um outro impacto preocupante do agronegócio. Trata-se da contaminação de solos, rios, lagos e aquíferos, de trabalhadores agrícolas e moradores do campo e dos consumidores rurais e urbanos, pelo emprego (recorde mundial!) de agrotóxicos, muitos deles proibidos em outras partes do mundo, em particular nos EUA e na Europa. Isto também é um problema para as nossas exportações, já que os consumidores, europeus em particular, estão muito atentos para a qualidade do que importam e rejeitam produtos cheios de agrotóxicos.

Para resumir, meu querido presidente:

1) a forma como produzimos na agricultura tem efeitos sobre o abastecimento alimentar, em particular sobre a disponibilidade de alimentos para os mais de 125 milhões de brasileiros e brasileiras que padecem de desnutrição (vulgo fome), subnutrição e má nutrição;

2) a forma como produzimos na agricultura incide sobre a distribuição da população e do emprego;

3) a forma como produzimos na agricultura incide negativamente sobre o meio ambiente, solos, água, clima e biodiversidade;

4) a forma como produzimos na agricultura tem efeitos negativos para a saúde de produtores e de consumidores.

2. O que fazer quando chegar de volta ao planalto, presidente?

Em primeiro lugar, quero deixar claro que não acredito em milagres. O senhor terá uma verdadeira herança maldita, em nada comparável com a que o senhor recebeu em 2003. O país está quebrado, o Estado está quebrado. A economia internacional entrou em uma crise prolongada e não vai nos dar muitas possibilidades de saída, quer de investimentos, quer de relações de troca favoráveis. O país está desindustrializado, o emprego limitado e precarizado. O povo vive um miserê, como provavelmente nunca viveu. Os serviços públicos estão sucateados. As demandas reprimidas são enormes e as expectativas para o seu governo serão imensas.

Por outro lado, governar vai ser muito mais complicado, sobretudo se a derrama de dinheiro que o Centrão manipulou nestas eleições resultar em uma manutenção ou aumento da influência destes urubus da República no Congresso Nacional. O senhor vai ter um orçamento deficitário, engessado e com muito pouco recurso disponível sob o controle do executivo. Além disso, o senhor vai ser hostilizado pelas hordas bolsonaristas e acicatado a cada passo pelas demandas do “andar de cima”, sempre pronto a tratá-lo como trataram a presidente Dilma. Não vai dar para fazer muito, a não ser arrumar a casa, recuperar as instituições dos desastres acumulados pelos quatro anos de desgoverno e preparar o futuro.

Ou seja, a formulação de propostas tem que levar em conta esta situação e as soluções terão que ser muito bem calculadas para se ajustarem ao que vai ser possível.

Neste sentido, presidente, me atrevo a fazer algumas sugestões de prioridades para o seu governo, na área que domino, a agricultura e suas correlações com a alimentação, o emprego, o meio ambiente e a saúde pública.

Prioridades

De todas as demandas que vão cair sobre o seu governo, presidente, nenhuma vai ser tão premente e até desesperada do que o enfrentamento da crise alimentar que assola mais da metade da população. O senhor é dotado de grande sensibilidade humana e política e sabe disto melhor do que eu. Esta deve ser a prioridade um do seu governo, sobretudo no primeiro ano, quando se definirão as expectativas em relação à sua gestão.

“A realidade nutricional do brasileiro hoje é marcada por um triste paradoxo. Ao mesmo tempo, temos altos índices de subnutrição, de carências nutricionais e de obesidade. Esta tripla carga é responsável pelo considerável aumento da ocorrência de doenças crônicas, como a hipertensão arterial, o diabetes, as doenças cardiovasculares e o câncer, hoje as principais causas de morte no Brasil”. (Ludmila Hajjar, Globo, 16/8/2022).

A crise alimentar cobra medidas de curto, de médio e de longo prazo.

Como o senhor sabe, presidente, 33,1 milhões são os que passam fome todos os dias, 32,4 milhões passam fome de vez em quando e 60 milhões se alimentam qualitativamente mal. Em números redondos.

É terrível ter que dizer isso, mas na situação que o senhor vai enfrentar vai ser preciso priorizar o público-alvo imediato e este é constituído pelas 33 milhões de pessoas (que já devem ser mais numerosas, a esta altura da evolução da inflação de alimentos). Os 32,4 milhões de afetados pela insegurança alimentar moderada também cobram ações do Estado, embora com menos urgência.

São 65,5 milhões de pessoas, menos do que os atendidos pelo Auxílio Brasil. No entanto, ao contrário deste programa eleitoreiro de Bolsonaro, os programas que o senhor não poderá deixar de executar terão que ir além da mera distribuição de ajudas financeiras mal calculadas e distribuídas. Os valores do Auxílio Brasil, mesmo se mantidos os 600 reais por mês por família, não chegam nem perto de resolver minimamente o sofrimento, sobretudo dos afetados pela fome endêmica, o bloco prioritário dos futuros beneficiários dos seus programas. Em primeiro lugar, a inflação de alimentos já corroeu estes valores em mais de 20% e este processo é contínuo. Em segundo lugar, 600,00 reais de auxílio por família atendida significam menos do que o valor da cesta básica em quase todas as capitais onde a pesquisa do DIEESE é realizada. O senhor deve se lembrar que esta cesta foi calculada para uma família padrão de quatro pessoas e pesquisas indicam que as famílias mais pobres são mais numerosas. Lembremos também que a cesta básica é uma definição ultrapassada e não corresponde às necessidades nutricionais de uma família. Para alimentar corretamente uma família de brasileiros, a composição da cesta básica vai ter que ser redefinida e o seu custo vai aumentar. Pelos meus cálculos deverá ser quase o dobro do valor da cesta atual, definida pela lei do salário mínimo de 1937.

Ao definir o tamanho do auxílio necessário para os mais necessitados, é preciso notar que a maioria deles está sem outra fonte de renda e que as despesas de uma família implicam em outros gastos além da alimentação. Estes gastos muitas vezes acabam sendo priorizados pelas famílias, que não podem deixar de pagar aluguéis, transportes, medicamentos, luz, água e gás. No momento, este conjunto de gastos está implicando em perto de 65 milhões de pessoas endividadas e em um número impreciso de famílias que estão vendendo o pouco que tem para pagar as contas. Em outras palavras, se quisermos lidar com a fome teremos que lidar com o problema mais amplo da renda necessária para manter minimamente uma família.

Tudo isto é para dizer que o programa para as 33,1 milhões de pessoas, entre 5 e 6 milhões de famílias, terá que ter valores que ultrapassam este debate eleitoreiro sobre os 600 reais. Vai ser preciso definir um programa muito mais amplo e fazer os cálculos a sério. Sem isso, fica-se em discussões sem uma base concreta e acaba-se por ficar no nível de Bolsonaro, ou discutindo acréscimos no varejo, como a ideia de oferecer 150 reais a mais por criança em cada família. Ciro foi mais ousado, embora sem justificar os valores que propõe para o auxílio, de R$ 1200 por família.

A fome destes infelizes brasileiros e brasileiras que acordam e dormem de estômago vazio e vão enganando-o com restos de comida, muitas vezes garimpados em lixeiras e lixões ou com a magra generosidade de terceiros, tem que ser enfrentada como a prioridade das prioridades.

Sugiro voltar para o nome do seu primeiro programa e voltar a usar o título “Fome Zero”. Para executar este programa, acho que o senhor devia criar um organismo especial, que podia se chamar Coordenação ou Programa Nacional de Alimentação e Nutrição, vinculado à Presidência da República. Os melhores quadros do país deveriam ser chamados para trabalhar neste organismo; nutricionistas, economistas, especialistas em estoques de alimentos, em distribuição de gêneros, entre outros. Esta coordenação/programa deveria ter plenos poderes para articular ministérios e secretarias. E deveria estar buscando ativamente a colaboração da sociedade civil através da recriação do Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, que era CONSEA e agora, turbinado, deveria ser CONSEAN.

A primeira tarefa desta equipe deveria ser calcular as necessidades alimentares essenciais deste público e identificar quanto vai ser necessário oferecer de cada produto. Com isto vai ser possível avaliar, frente à oferta de alimentos produzida no país, quanto vai ser preciso importar. Não vai ser pouco, sobretudo se fugirmos da prática de “encher barriga” para enganar a fome e adotarmos um programa com qualidade nutricional essencial.

Ou seja, uma vez definida a cesta básica nutricionalmente necessária e seu valor, vai ser preciso organizar a importação e a distribuição daquilo que a produção nacional não puder cobrir nos primeiros anos.

A meu ver, não se pode supor que o mercado vai dar conta do recado e deixá-lo assumir a organização das importações e da distribuição. O governo vai ter que ter papel ativo, estimulando e articulando os agentes do mercado. O governo deveria, no ato da posse, chamar toda a sociedade para colaborar com este programa, desde agentes econômicos até organizações da sociedade civil que possam contribuir com a mobilização para a distribuição dos alimentos aos setores mais fragilizados. Trata-se de mobilizar as forças vivas da sociedade para que os que podem ajudem os mais necessitados a se organizarem para receber a ajuda. É mais do que dar dinheiro aos famintos, é preciso ganhar a sociedade para entrar no jogo com todas as suas forças.

A definição da renda familiar per capita vai cobrar um esforço de melhoramento dos dados do cadastro único. Isto permitirá avaliar quanto cada família vai precisar como complemento de renda para atingir o nível de consumo necessário para comer corretamente de maneira a ter condições de trabalhar ou estudar. A experiência do Bolsa Família vai ser importante para balizar estas definições.

O financiamento deste programa vai ser um problema para o orçamento minguado e engessado do Estado. Acho que o senhor deveria lançar imediatamente após a posse um projeto de lei emergencial taxando os milionários e bilionários do lado rico do nosso país para levantar este dinheiro. Deixe a reforma tributária para mais adiante. É coisa mais trabalhosa e mais ampla. Devia-se calcular esta taxa para durar três anos e lançar uma campanha pedindo a adesão do “andar de cima” para apoiar a Medida Provisória no Congresso.

Como o senhor pode notar, presidente, o que estou propondo é um gigantesco movimento social de solidariedade de todos com os mais sofridos setores do nosso país. Movimentos deste tipo foram lançados no passado pela própria sociedade civil, sendo o mais importante e conhecido a Ação da Cidadania Contra a Fome e a Miséria, iniciada pelo meu querido amigo e companheiro de lutas Betinho. Eles foram importantes como exemplos, mas a tarefa exige mais. Não basta o apelo para donativos. É preciso abrir as carteiras e cofres com recursos mais amplo, geridos pelo Estado. Vai ser preciso mover a máquina do Estado para deixar de ser um sugador de dinheiro público para fins privados, como vimos nestes últimos anos. E não falo só do governo federal, mas de todos os entes federativos que deveriam ser chamados a participar desta empreitada. Uma campanha deste tipo poderia unir a nossa sociedade tão dividida pela força da política de ódio de Bolsonaro.

Medidas de médio prazo para enfrentar a crise alimentar

No médio prazo, presidente, temos que aumentar a oferta de alimentos produzidos no país. Não podemos depender das importações, até porque os preços dos alimentos no mercado internacional estão nas alturas e subindo. Importar arroz, por exemplo, não permite ofertar este produto a preços mais baixos do que os da produção nacional. Os produtos importados terão que ter preços subsidiados ou a inflação de alimentos vai corroer o Bolsa Família 4.0 que for criado.

E quem pode responder a esta demanda ampliada pela política de Fome Zero? O agronegócio não tem interesse no mercado dos pobres, mesmo com preços bem remuneradores garantidos pelo governo (o que vai ser necessário, de qualquer maneira). As cadeias agropecuárias integradas nas exportações têm acordos com compradores e relações estáveis. Não vão trocar isto por um mercado que é historicamente deprimido e com baixa capacidade de compra. Claro que alguns grandes produtores podem entrar nesta linha e serão bem-vindos, mas não espere que a solução integral venha deste setor.

A agricultura familiar tem potencial para dar esta resposta, mas vai ser preciso um conjunto de políticas para que ela dê um salto na oferta de alimentos.

Desde logo, uma parte importante dos agricultores familiares não tem terra suficiente em tamanho e qualidade, nem estão localizados em ecossistemas mais adequados para a agricultura. Eles constituem a grande massa dos produtores do Nordeste e do Norte e parte do Sudeste. Para estes vai ser preciso um esforço para garantir a autossuficiência alimentar e a produção para os mercados locais. Isto já seria um avanço importante, já que cerca de um milhão destas famílias estão hoje dependendo de ajudas financeiras e estão na categoria dos que passam fome ou se alimentam mal. Para esses agricultores vai ser necessário investir em infraestruturas hídricas (no semiárido), assistência técnica na produção de hortaliças e frutas e na criação de pequenos animais, com base na agroecologia. Este seria um programa com um alvo importante nas mulheres produtoras, em geral as responsáveis pelo abastecimento alimentar das famílias, na área chamada de “ao redor da casa”. Os excedentes produzidos tanto pelas mulheres como pela produção dos roçados geridos pelos homens deveriam ser dirigidos para as compras da merenda escolar (PNAE) ou da retomada de um plano inaugurado no seu primeiro governo, presidente, o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), só que os dois terão que ser turbinados com muito mais recursos do que foram disponibilizados no passado. Nesta proposta, presidente, o que se fará não é mais do que já vem sendo feito em experiências localizadas em todo o país, promovidas pelos movimentos sociais rurais e pela Articulação Nacional de Agroecologia.

A produção dos agricultores familiares em escala mais elevada vai ser encontrada, sobretudo, entre os localizados nas regiões sul e sudeste. Idealmente, esta produção deveria adotar as práticas da agroecologia. Lembro ao senhor, presidente, que a agroecologia é uma forma de produzir que já demonstrou, aqui e em todo mundo, a sua capacidade de entregar produtos saudáveis, mantendo produtividades competitivas, custos e riscos mais baixos do que os sistemas convencionais, conservando os recursos naturais, o meio ambiente e contribuindo para conter o aquecimento global.

Talvez o senhor não esteja informado, presidente, mas seu antigo assessor para assuntos agrícolas, ex-diretor geral da FAO, José Graziano, sabe muito bem que a agroecologia está sendo praticada com forte apoio estatal em vários países da Europa e cresce, sem apoio estatal, nos Estados Unidos. Os programas destes países apostam em uma transição a médio e longo prazo, com vistas a tornar a agroecologia o modelo de produção de toda a agricultura. Acho que devemos imitá-los.

Vai ser preciso criar um programa intenso de transição para a produção agroecológica, com forte apoio de assistência técnica, recursos de fomento e crédito muito flexível, dirigido para o conjunto das atividades produtivas na propriedade e adaptado às práticas deste sistema. Mais uma vez, as compras públicas terão um papel essencial, tanto o PAA e o PNAE, como também a recomposição dos estoques públicos de alimentos. O seu governo também vai ter que oferecer preços mínimos estimulantes e seguro dirigido para o conjunto da propriedade. Vai ser ainda necessário garantir recursos de fomento para a experimentação dos agricultores nas práticas da agroecologia e crédito de investimentos, com algum custeio associado. Lembro que a agroecologia não utiliza sistematicamente insumos externos às propriedades, de modo que o crédito recorrente usual nos sistemas convencionais não será necessário.

Para operar a política de promoção do desenvolvimento agroecológico, acredito que a melhor opção seria a criação de um programa que concentre os recursos de fomento, crédito, assistência técnica e beneficiamento em um Fundo Especial, com flexibilidade para um uso não burocratizado do financiamento.

Por outro lado, presidente, não podemos esperar que a conversão da agricultura familiar para a agroecologia se dê no ritmo acelerado necessário para ampliar em pouco tempo a oferta de alimentos para calar a fome dos 33,1 milhões. Os processos de transição agroecológica são lentos e delicados e cobram um apoio técnico que não existe no Brasil no volume necessário. O senhor vai precisar de estimular a formação de técnicos e agrônomos com esta especialização, para ir aumentando este programa ao longo do seu governo. Já existem cursos, nas escolas técnicas que o senhor criou em seus governos anteriores, voltados para a agroecologia e importantes núcleos de professores e pesquisadores em muitas universidades rurais que também seguem esta orientação. Eles vão precisar de apoio para responder às necessidades de formação de pessoal, voltado para a assistência técnica em agroecologia para expandir a produção da agricultura familiar.

O futuro pertence à produção agroecológica, mas a proporção de agricultores adotando esta proposta, nos próximos quatro anos, não será suficiente para responder à amplitude da demanda dos famintos. Vai ser preciso produzir alimentos na forma convencional ainda por algum tempo.

A produção convencional de alimentos tem práticas bem conhecidas tanto por agentes de assistência técnica como pelos próprios produtores. O que cabe para estimular esta categoria de produtores convencionais é promover algumas práticas que economizem o uso de insumos químicos e garantir preços e mercados. Mais uma vez, as compras governamentais terão um importante papel, tanto o PAA e o PNAE, como um programa de recomposição de estoques públicos de alimentos básicos.

Em resumo, presidente, o que vai ser preciso é:

1) Criar um programa de apoio à produção agroecológica de alimentos;

2) Ampliar as formas de apoio à produção convencional de alimentos;

3) Criar um programa de compras de alimentos turbinado em comparação com os governos anteriores. PNAE, PAA, estoques reguladores;

4) Garantir preços remuneradores para os agricultores familiares para que se sintam seguros ao se dedicarem à produção para o programa alimentar;

5) Criar uma modalidade do programa de crédito, que o senhor e a presidente Dilma turbinaram, voltado para a agroecologia, corrigindo os erros das tentativas do PRONAF nesta direção. Como já disse acima, trata-se sobretudo de um programa de investimentos e um pequeno custeio associado;

6) Garantir um seguro para o conjunto da propriedade produtiva e não para um produto específico;

7) Garantir recursos de fomento para a experimentação agroecológica;

8) Apoiar a formação de técnicos de nível médio e superior voltados para a agroecologia que possam dar suporte aos produtores engajados nesta alternativa;

9) Apoiar a pesquisa científica pública na produção de conhecimentos úteis para a prática da agroecologia.

Tenho duas observações finais neste ponto, presidente. Infelizmente acho que o senhor não vai ter recursos para executar a reforma agrária que necessitaremos no longo prazo. O senhor assentou, em média, 70 mil famílias por ano durante oito anos. Foi muito importante, mas longe do necessário para dar um salto maior na mudança de paradigmas na produção agrícola. Como já escrevi acima, este esforço não foi bem acompanhado por uma política correta de promoção da produção nos assentamentos. Está na hora de centrarmos os esforços na transformação dos assentamentos em áreas produtivas sustentáveis, integradas no programa nacional de produção de alimentos, baseando-se no uso das práticas agroecológicas. Todos os movimentos sociais do campo brasileiro, CONTAG, MST e CONTRAF, tem inúmeras experiências de produção agroecológica bem-sucedidas em todo o país. Vai ser importante aproveitar estas experiências na hora de expandir a proposta para os outros assentamentos.

O senhor vai ter muito menos recursos disponíveis para fazer a reforma agrária, comparando com os seus governos anteriores. Para ampliá-los seria muito importante aplicar a lei nos casos de desmatamento irregular e trabalho escravo e desapropriar as terras para fins da reforma agrária. Outros recursos poderiam ser buscados retirando a isenção fiscal para fertilizantes e agrotóxicos e dirigindo-os para o INCRA.

Como lidar com os impactos do agronegócio no meio ambiente e na saúde de produtores e consumidores?

A prioridade maior em um programa de redução de impactos ambientais do agronegócio terá de ser a redução do desmatamento e das queimadas, visando zerar estas agressões às matas de todos os biomas. Para isso, vai ser necessário recuperar e ampliar a capacidade operacional do IBAMA, ICMBio e FUNAI e a criação de uma força tarefa policial e militar de suporte às operações de controle destas agências. Vai ser importante a cooperação dos governadores dos estados de todos os biomas, mas particularmente da Amazônia.

A situação na Amazônia é extremamente perigosa, pois só os garimpeiros ilegais somam mais de 300 mil, muitos deles trabalhando sob as ordens dos cartéis de drogas. Em outra frente, milhares de grileiros vão se apropriando ilegalmente das terras das reservas indígenas, dos parques nacionais, das áreas públicas sem destinação ainda acertada, as chamadas terras devolutas. São imensas áreas, onde o poder do Estado inexiste e impera o poder dos vários ilícitos. A cumplicidade de prefeitos, delegados, policiais, juízes e promotores é flagrante. Retomar a Amazônia vai ser um osso duro de roer, mas super necessário.

Nos outros biomas, as coisas são menos dramáticas, mas também preocupantes e cobrando forte intervenção do Estado.

Um programa nacional de Desmatamento Zero seria muito bem-visto no plano internacional e, certamente, o senhor conseguirá apoio financeiro dos países desenvolvidos para pô-lo em marcha. Anulando o desmatamento, teremos reduzido a contribuição do Brasil para a produção de gases de efeito estufa em mais da metade.

O programa de desmatamento/queimada zero deveria ser acrescido de outro dirigido ao reflorestamento com o plantio de árvores nativas, para a recuperação dos mais de 80 milhões de hectares de terras degradadas, só na Amazônia. Creio que o apoio financeiro internacional será tão significativo quanto no programa do desmatamento zero. Isto porque amplas áreas de replantio e de recuperação natural das matas retirarão enorme quantidade de carbono da atmosfera. Este programa proporcionaria uma grande demanda de mão de obra na zona rural e pode absorver os trabalhadores ilegais nos biomas mais ameaçados, em particular na Amazônia.

Outra frente de melhoria do modelo do agronegócio é o controle do uso de agrotóxicos. Vai ser preciso rever as liberações desenfreadas de agrotóxicos conduzidas pelos governos Temer e Bolsonaro. E o uso destes produtos deveria ser subordinado a um programa do governo federal em cooperação com a FAO, promovendo o Manejo Integrado de Pragas (MIP). Programas da FAO na Ásia e África permitiram a redução do uso de agrotóxicos em vários países, chegando a derrubar o uso de agrotóxicos na produção de arroz das Filipinas a menos de 30%. Retirar os subsídios ao uso de agrotóxicos é um dos mecanismos utilizados pela FAO para desestimular o uso abusivo destes produtos. Não se preocupe com a choradeira dos ruralistas, eles não são bobos e sabem que esta técnica (MIP) é consagrada e só não a aplicam porque é mais fácil aplicar agrotóxico subsidiado. Aqui não há nada de revolucionário nem inovador. É só bom senso, boas práticas agrícolas e economia de insumos.

Conclusão

Há muitas propostas complementares que podem ser incluídas neste conjunto que estou submetendo ao senhor, presidente. Como, por exemplo, a criação de um programa de produção de adubo orgânico pelo tratamento do lixo e do lodo de esgoto. Ou a criação de um programa gigante de hortas urbanas. Mas elas podem ser tratadas mais adiante em detalhe e avaliadas em função de seu custo e potencial impacto. O mais importante no momento é decidir sobre os pontos apresentados. Se tivesse que escolher uma só entre estas propostas, eu defenderia o Programa Fome Zero como uma campanha nacional, arregimentando as forças do governo federal, dos estado se municípios e da sociedade civil, empresários e trabalhadores mobilizados para enfrentar o sofrimento dos mais pobres, os 33,1 milhões de famintos.

Peço desculpas pelo tamanho deste texto, que talvez alguém da sua assessoria leia e resuma para o senhor. Se isto não acontecer eu entenderei perfeitamente, presidente. Mas continuarei teimosamente apresentando as minhas propostas para a sociedade e penso que, com o tempo, elas chegarão até o senhor.

*É um economista agrícola e ambientalista brasileiro. Foi presidente da UNE, entre 69/71. É fundador da organização não governamental Agricultura Familiar e Agroecologia (ASTA) e ex-membro do CONDRAF/MDA 2004/2016.

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