Pataxó de 14 anos é assassinado em ataque na TI Comexatibá, na Bahia

Gustavo Silva da Conceição foi assassinado por homens fortemente armados que atacaram retomada; ataques em série aterrorizam povo Pataxó no extremo sul da Bahia

POR TIAGO MIOTTO, DA ASSESSORIA DE COMUNICAÇÃO DO CIMI

Na madrugada deste domingo (4), o indígena Gustavo Silva da Conceição, Pataxó de apenas 14 anos de idade, foi assassinado durante um violento ataque contra uma retomada na Terra Indígena (TI) Comexatibá, no extremo sul da Bahia. Além de Gustavo, outro indígena de 16 anos foi ferido no braço por um disparo de arma de fogo. Ele chegou a ser hospitalizado, mas não corre risco de morte.

Segundo relatos dos indígenas, por volta das cinco horas da manhã, cerca de doze homens que estavam em dois veículos atacaram os Pataxó com armas de fogo de diversos calibres e bombas de gás lacrimogêneo. Imagens feitas pelos indígenas mostram diversas cápsulas coletadas no local e vasilhames de gás que foram usados durante o ataque.

“Às 5h25 da manhã, os tiros começaram. Foram quase dez minutos de tiros, muito tiro mesmo. Tinha muita cápsula de pistola, fuzil, calibre 12, calibres intactos e deflagrados, bombas de gás lacrimogêneo, que é coisa de polícia. Foi um trabalho profissional”, relata uma liderança da TI Comexatibá, não identificada por razões de segurança.

“É uma tristeza para nós. Um menino levou um tiro no braço, que saiu do outro lado, e não morreu. Mas o outro correu e levou um tiro na nuca, a uns cem metros de distância. É um serviço profissional, que parece miliciano mesmo”, lamenta o Pataxó.

O ataque ocorreu numa retomada que havia sido realizada pelos indígenas na sexta-feira (2) pela manhã. A fazenda retomada, denominada São Jorge, fica no interior da área identificada e delimitada pela Fundação Nacional do Índio (Funai) em 2015 como parte da TI Comexatibá.

No final de junho, os Pataxó haviam retomado outra área na mesma região da terra indígena, às margens do rio Cahy. Nas últimas semanas eles vinham sendo vigiados por drones, que eram utilizados para orientar ataques de pistoleiros. Por isso, decidiram retomar a fazenda de onde o drone decolava.

“Foram feitos dois ataques de drone aqui na retomada, um na semana retrasada, e outro no final dessa semana passada”, explica a liderança Pataxó. “Os jovens seguiram esse drone, que pousou numa fazenda vizinha do outro lado do rio, que não estava retomada. Então, os jovens ocuparam a fazenda, porque a retomada estava sendo filmada para pistoleiros virem atacar os indígenas, a mando dos fazendeiros. Por isso foi feita a retomada”.

Após o ataque, a Polícia Militar e a Polícia Civil foram até o local. Os policiais civis realizaram a perícia do local e recolheram diversas cápsulas – inclusive de armamentos cujo uso deveria ser exclusivo das Forças Armadas e da Polícia Militar, como é o caso das granadas de gás lacrimogêneo.

“Houve uma série de retomadas do povo Pataxó desde junho, e houve também um ataque armado dos fazendeiros que dizem possuir terras dentro dos territórios, com sinais de participação de policiais, devido à utilização de armamentos de uso exclusivo das Forças Armadas e da Polícia Militar”, explica Lethicia Reis, da assessoria jurídica do Conselho Indigenista Missionário – Cimi Regional Leste.

Com processos demarcatórios travados por anos, os indígenas enfrentam a falta de espaço para subsistência e o aumento dos conflitos, enquanto veem empreendimentos imobiliários e monocultivos avançarem sobre seu território

Morosidade, retomadas e violência

A morosidade do Estado na demarcação das terras indígenas no extremo sul da Bahia tem gerado situação de extrema vulnerabilidade para os Pataxó. Com processos demarcatórios travados por anos, os indígenas enfrentam a falta de espaço para subsistência e o aumento dos conflitos, enquanto veem empreendimentos imobiliários e monocultivos avançarem sobre seu território.

“São duas TIs muito próximas, e essas regiões que estão em conflito são regiões que ainda não foram demarcadas. Uma parte da TI Barra Velha foi demarcada na década de 1980, mas é uma área muito pequena, que está em processo de reestudo desde 2008”, explica a assessora jurídica do Cimi Regional Leste.

“Essa área aguarda a Portaria Declaratória desde 2014 e não há nenhum impedimento para que essa portaria seja expedida pelo Ministério da Justiça. Mas, por falta de vontade política, isso está parado há oito anos”, prossegue a assessora.

No caso da TI Comexatibá, o processo está mais atrasado. O Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação (RCID) que reconheceu a tradicionalidade da ocupação desta terra indígena, e delimitou-a com 28 mil hectares, foi publicado pela Funai em 2015.

O relatório recebeu 155 contestações ainda naquele ano – e, desde então, o processo demarcatório não avançou mais. A situação semelhante nas duas TIs motivou as retomadas realizadas em junho.

A primeira ocorreu no dia 22 de junho, na TI Comexatibá. Três dias depois, no dia 25, os Pataxó da TI Barra Velha também retomaram uma área localizada dentro de sua terra indígena – e foram expulsos no mesmo dia, durante um ataque realizado por cerca de 50 carros e diversos homens armados, muitos deles encapuzados.

Sem nenhuma decisão ou mandado judicial, alguns dos agressores identificaram-se aos indígenas como “policiais e seguranças de fazendeiros” e, segundo as lideranças, também portavam armamento de uso exclusivo das forças armadas.

Nas redes sociais, integrantes do grupo vangloriaram-se de expulsar “falsos índios” da região e “fazer o que estão fazendo no Mato Grosso do Sul” – onde, naquela semana, o Guarani Kaiowá Vitor Fernandes havia sido assassinado em contexto semelhante.

“Começamos a fazer a autodemarcação do nosso território, que está todo degradado. Somos um dos últimos remanescentes de Mata Atlântica aqui no sul da Bahia, e estão destruindo todas essas veias de floresta aqui nas margens do rio, com eucalipto, mineração, agropecuária extensiva, cafezais”

Acirramento dos conflitos

Além da paralisação das demarcações, as TIs Barra Velha e Comexatibá também foram diretamente impactadas por medidas como a Instrução Normativa 09/2020, da Funai, que liberou a certificação de propriedades privadas sobre terras indígenas não homologadas.

Nos quatros primeiros meses após a publicação da medida, ocorrida em abril de 2020, levantamento do Cimi identificou que as duas TIs foram sobrepostas pelas certificações de 54 fazendas. A medida acentuou os conflitos.

“Começamos a fazer a autodemarcação do nosso território, que está todo degradado. Somos um dos últimos remanescentes de Mata Atlântica aqui no sul da Bahia, no entorno do Monte Pascoal, e estão destruindo todas essas veias de floresta aqui nas margens do rio, com eucalipto, mineração, agropecuária extensiva, cafezais. Isso aumentou demais. O rio Cahy, que é nossa vida, não está dando conta de encher mais”, explica a liderança Pataxó não identificada.

“Há quantos anos foi publicado o nosso relatório, e até hoje nada?”, questiona o indígena. “Precisamos acelerar isso, porque se continuar desse jeito vai destruir todo o bioma aqui. Estão acabando com nossa casa, e isso não podemos permitir”.

Esse processo de autodemarcação reflete a preocupação dos indígenas com o território e a demora para a conclusão do julgamento de repercussão geral no Supremo Tribunal Federal (STF),  que definirá o futuro das demarcações de terras indígenas, avalia a assessora jurídica do Cimi Regional Leste.

“O povo Pataxó perdeu a paciência e a esperança de aguardar o Executivo concluir a demarcação e o Judiciário julgar o recurso extraordinário de repercussão geral, que dará segurança jurídica para o processo demarcatório. É nesse contexto que os Pataxó iniciaram o processo de autodemarcação destas duas terras indígenas”, analisa Lethicia.

Os ataques “vêm sendo metodicamente planejados” com a “participação de militares que ‘prestam serviços’ extras aos fazendeiros em conflito”

Insegurança e ameaças

O clima na região continua tenso e as articulações de ataques contra os Pataxó utilizam, inclusive, grupos de whatsapp. Em carta divulgada nesta segunda-feira (5), lideranças das TIs Comexatibá  e Barra Velha afirmam que os ataques “vêm sendo metodicamente planejados” com a “participação de militares que ‘prestam serviços’ extras aos fazendeiros em conflito”.

Os invasores das duas TIs “são os mesmos, os atos violentos vêm sendo protagonizados pela mesma associação de fazendeiros, afirma a nota das lideranças. “É de conhecimento público, visto que a exibição de suas ameaças e atos violentos circulam nas redes de whatsapp da extrema direita bolsonarista locais e regional”.

No dia 29 de agosto, um ofício de diversas organizações indígenas e indigenistas já havia sido enviado à Polícia Federal, solicitando providências em favor do povo Pataxó da TI Barra Velha, do extremo sul da Bahia, “sob cerco e ameaças de grupo armado”.

Após o ataque que resultou no assassinato de Gustavo, o Ministério Público Federal (MPF) enviou ofício ao Ministério da Justiça solicitando o fortalecimento da Polícia Federal de Porto Seguro e maior presença do órgão nas terras indígenas do extremo sul baiano.

O MPF também informa estar em contato com as Polícias Militar e Federal e com a Funai, para garantir medidas de proteção aos indígenas da região. A tensão e a preocupação, entretanto, ainda angustiam os Pataxó.

“Ainda estamos nos sentindo descobertos”, afirma a liderança Pataxó não identificada. “Estamos aguardando a Secretaria de Justiça do Estado, para ver como podem nos apoiar para não ficarmos aqui sozinhos”.

Leia a Carta esclarecimento público das lideranças Pataxó das Terras Indígenas Comexatiba e Barra Velha

Gustavo da Silva Conceição, indígena de 14 anos do povo Pataxó, assassinado na TI Comexatibá no dia 4 de setembro de 2022. Foto: arquivo pessoal

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