MPF requer na Justiça que governo federal conclua demarcação da Terra Indígena Potiguara de Monte Mor

Omissão da Funai e União nos últimos 15 anos atrasa demarcação, agrava insegurança alimentar de aldeias e aumenta violência em disputa de terras

Ministério Público Federal na Paraíba

O Ministério Público Federal (MPF) ajuizou na sexta-feira (9) ação com pedido de liminar para que a Justiça determine à União e à Fundação Nacional do Índio (Funai) que concluam imediatamente a demarcação da Terra Indígena Potiguara de Monte Mor, localizada no litoral norte da Paraíba, entre os municípios de Rio Tinto e Marcação. O MPF requer que sejam cumpridos os prazos previstos no Decreto nº 1.775/93, segundo o qual, a Presidência da República tem 15 dias para publicar o decreto de homologação da posse permanente de Monte Mor pelos Potiguara, devendo a demarcação ser concluída em 285 dias após a publicação do decreto presidencial, inclusive, com a retirada dos atuais posseiros da área, sob pena de multa diária de R$ 50 mil.

Um ato público na sede do MPF, na capital, marcou a protocolização da ação demarcatória. A reunião contou com a presença de indígenas de várias aldeias da etnia Potiguara, oportunidade em que houve relatos emocionados sobre a luta que os Potiguara enfrentam pela retomada de suas terras. O click que permitiu o envio da ação para o Sistema PJe da Justiça Federal foi feito pela cacica Cal, da aldeia Potiguara de Monte Mor. A reunião foi gravada e disponibilizada no canal do MPF no Youtube. Clique AQUI para assistir à gravação.

Há 15 anos, os Potiguara aguardam a demarcação da última parte do território, desde que foi emitida a Portaria nº 2.135 do Ministério da Justiça, em 14 de dezembro de 2007, declarando a posse permanente dos indígenas sobre Monte Mor. Nesse longo período, o procedimento demarcatório “sofreu diversos obstáculos administrativos e judiciais, sendo perceptível a inércia do chefe do Poder Executivo em dar continuidade à demarcação. Desde 2007, não há qualquer avanço no sentido da publicação do decreto presidencial de homologação”, registra a ação ajuizada.

A demora na demarcação acarretou prejuízos irreparáveis aos Potiguara no decorrer desses 15 anos. Atingiu a preservação da cultura, agravou a insegurança alimentar nas aldeias, aumentou a violência intertribal e a insegurança social, decorrente do conflito de terra com os não-índios da região, que se arrasta há mais de três séculos, relata a ação. “Devido a essa demora, há toda uma situação de insegurança jurídica, violência, ansiedade e espera para concluir o processo demarcatório”, observa o procurador da República José Godoy Bezerra de Souza. Ele explica que, conforme a Constituição Federal, a União e a Funai teriam cinco anos, a partir de 1988, para concluir as demarcações. “Estamos falando de uma demora de quase 30 anos para o direito dos Potiguara ser implementado”, ressalta o procurador, ao afirmar que não restou ao MPF outra opção, senão ajuizar a ação para que a Justiça determine ao governo federal que cumpra a lei e conclua a demarcação de Monte Mor.

Conflitos na região – Ao longo dos anos, a inércia administrativa da Funai e da União tem repercutido na tranquilidade das famílias indígenas. Enquanto o órgão indigenista e o governo federal são omissos em concluir os atos do procedimento demarcatório, prossegue o assédio especulativo e a ação invasiva de agentes intrusos, relata o MPF na ação. Em 2002, quando ainda não havia a portaria do Ministério da Justiça declarando a posse dos Potiguara sobre Monte Mor, o antigo cacique Vado narrou para um documentário as ameaças de usineiros e latifundiários: “A gente se organiza para enfrentar a companhia, para enfrentar a usina, mas eles continuam ainda fazendo o que querem, mandando prender índio. Tudo o que não presta eles querem fazer e quando a gente procura os nossos direitos, a dificuldade é grande”, contou o cacique.

Segundo relatos colhidos para o curta-metragem Memórias Retomadas, que narra a luta dos Potiguara pela devolução da terra indígena de Monte Mor, os usineiros acabavam com as plantações das famílias indígenas, passando tratores durante a noite ou soltando veneno quando a roça já estava perto da colheita acabando com tudo. Já naquela época, o cacique Vado relatava que os indígenas passavam fome porque até a pesca estava prejudicada pela contaminação dos rios. No curta, o cacique denunciava o fim da pesca “porque o veneno que a usina solta nas canas corre todo ao largo do rio e acaba com as pescas”. Ele morreu em 2004 sem ver a terra ser devolvida aos legítimos donos originais, os Potiguara.

Potiguara significa em tupi “comedor de camarão”. Os Potiguara sempre tiveram como atividade tradicional a pesca de peixes e camarão. Relatos denunciados pelo Conselho Indigenista Missionário (Cimi) dão conta que em 1987, o rio Camaratuba foi contaminado com vinhoto despejado por uma usina, o que causou a morte de milhares de peixes e crustáceos. Em 2013, outro derrame de centenas de litros de vinhoto, subproduto viscoso da cana-de-açúcar, dessa vez no rio Mamanguape, que corta o território Potiguara, causou nova mortandade de milhares de peixes, camarões e crustáceos, impactando a subsistência dos indígenas.

Nos anos mais recentes, invasões, ameaças de morte, atentados e ações violentas contra os indígenas, por parte dos ocupantes não-indígenas do território de Monte Mor têm sido relatadas ao Ministério Público Federal. Em 2012, após sofrer ameaças, o cacique Geusivan foi assassinado, na aldeia Brejinho, em Marcação. Ele havia liderado a aldeia na retomada de 90 hectares de área ocupada por fazendeiro de cana de açúcar. Desde 2018, tramitam no MPF três inquéritos em que se discutem agressões aos direitos territoriais da etnia Potiguara.

Vasta documentação – Nas 51 páginas da ação ajuizada, o MPF faz uma compilação dos registros históricos que demonstram a presença dos Potiguara nas terras indígenas do litoral paraibano, começando com uma referência de 1519 – o mapa Terra Brasilis, publicado em Lisboa, Portugal, que já mencionava a “Baía da Traição”. Ainda no século XVI, em 1549, o navegador português Gonçalo Coelho, em carta ao rei de Portugal, se referiu ao litoral da Paraíba como “Costa dos Potiguara”. Regulamento do Diretório de Índios redigido pelo irmão do Marquês de Pombal, no século XVIII, noticia que em 1774, “a Vila de Monte Mor possuía doze léguas de largura e quarenta e quatro léguas de comprimento, com os alvarás de 1785 e 1804 confirmando as sesmarias destinadas aos índios Potiguaras”. Esse trecho do regulamento faz parte do resumo histórico da ocupação Potiguara na região da cidade de Rio Tinto, citado em ação civil pública ajuizada pelo MPF em 1999, em defesa dos direitos territoriais da população indígena Potiguara.

Situação atual – A comunidade indígena da aldeia de Monte Mor vive atualmente em sua maior parte na Vila Regina, um núcleo urbano, no município de Rio Tinto. Conforme relatos de indígenas mais idosos, registrados pelo MPF na ação ajuizada em 1999, a Vila Regina surgiu numa área em que perto de cem casas típicas indígenas foram incendiadas durante certa noite. O incêndio ocorreu após conflito gerado pelo avanço da antiga Companhia de Tecidos Rio Tinto, da família Lundgren, ao intensificar seu domínio no território indígena, avançando para o lado do rio Preguiça, onde se localizava a aldeia de Monte Mor. A tribo resistiu e foi expulsa tendo as casas incendiadas. Posteriormente, alguns indígenas foram admitidos a fixar residências na área da qual haviam sido expulsos, na condição de locatários dos imóveis.

A Vila Regina é cercada de propriedades particulares, sem qualquer alternativa de subsistência. A área reconhecida da terra indígena tem aproximadamente 7.487 hectares e perímetro por volta de 62 quilômetros. Segundo o Censo 2010 do IBGE, a população indígena de Monte Mor era de 9.143 pessoas. A situação oficial de reconhecimento de Monte Mor é de terra declarada, por meio da Portaria nº 2.135, de 17/12/2007. Conforme monitoramento do portal Terras Indígenas no Brasil, o estado atual de reconhecimento oficial de Monte Mor é de 57% das etapas concluídas. São sete etapas: 1 – Em identificação; 2 – Com restrição de uso a não índios; 3 – Identificada; 4 – Declarada; 5 – Reservada; 6 – Homologada; e 7 – Registrada no Cartório de Registro de Imóveis (CRI) e/ou na Secretaria do Patrimônio da União (SPU).

Quanto tempo ainda? – Os prazos previstos no Decreto nº 1.775/93 são: 15 dias para a publicação do Decreto Presidencial de Homologação da Terra Indígena (DPHTI); 30 dias para a conclusão da demarcação física; 60 dias para a conclusão das avaliações de benfeitorias existentes em todos os imóveis que estão na Terra Indígena Potiguara; e seis meses para conceder a posse definitiva da área delimitada aos índios Potiguara, efetivando também a desintrusão (retirada) dos atuais posseiros da área. O MPF pede que seja estabelecida multa diária de R$ 50 mil, em caso de descumprimento de cada um dos atos do procedimento demarcatório, individualmente considerados. A multa deve ser revertida em favor do grupo indígena Potiguara para ser administrada pelo conselho tribal da comunidade indígena.

ACP nº 0807482-56.2022.4.05.8200 distribuída para a 1ª Vara Federal

Confira a íntegra da ação ajuizada.

Arte: Secom/PGR

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