Defesa pública do médico perseguido por praticar a clínica canábica. Pesquisas comprovam propriedades terapêuticas da planta e seu uso cresce em todo o mundo. Mas no Brasil seguem as intimidações – feitas pelas entidades que defenderam a cloroquina…
Por Paulo Fleury Teixeira, em Outra Saúde
Eu estou sendo processado no Conselho Regional de Medicina (CRM), de dois estados, por receitar maconha (cannabis), canabinoides, THC e CBD. E por divulgar esta alternativa terapêutica para diversos problemas de saúde e, em especial, para o autismo, em palestras e nas minhas redes sociais. E ainda por defender o plantio e o livre uso da maconha no Brasil e no mundo.
Alegam que estou em desacordo com uma resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM), de 2014, que estabelece que só se pode prescrever exclusivamente canabidiol (CBD) para apenas dois tipos de epilepsia congênita e apenas por duas especialidades médicas (neuro e psiquiatria). Alegam também que eu divulgo tratamentos sem comprovação científica e que estou infringindo até o Código Penal ao incentivar o livre cultivo e uso da maconha no Brasil.
Estes processos avançam e eu posso realmente ser punido de algum modo por estes CRMs. Estou procurando a minha defesa e buscando (e aceitando!) todo apoio jurídico para isto. Assim como agradeço muito todas as manifestações de apoio de pacientes e associações canábicas que tenho recebido.
Já me disseram que o meu caso pode ser usado como um trunfo e um exemplo pelos grupos institucionais contrários à medicina canabinoide e à liberação da planta no Brasil. Pode ser assim mesmo, porque eu já sou um tanto antigo nessa história e porque realmente tenho feito um trabalho amplo de divulgação popular da maconha como recurso medicinal.
Procurei, sim, divulgar isto ao máximo, porque vi evidências, desde o princípio, da efetividade da planta ou de seus princípios ativos no tratamento de diversos problemas de saúde, às vezes problemas muito graves. Essa evidência vinha da literatura médica da área, que cresce cada vez mais, assim como da minha própria prática clínica. Do mesmo modo e antes de tudo, a literatura médica e a experiência clínica comprovam a segurança no uso dos canabinoides, atestando o seu baixíssimo risco para o uso em qualquer faixa etária ou condição de saúde.
Eu próprio, sempre que posso, associo a minha prática clínica à pesquisa científica, sendo hoje autor de artigo, de publicação internacional, sobre o tratamento do autismo com o óleo de cannabis em 18 pacientes. E foram os resultados desta pesquisa que me motivaram a fazer a máxima divulgação popular do tratamento de sintomas e distúrbios associados ao autismo com a maconha.
Com a ampliação da minha clínica eu ampliei também a pesquisa para os demais diagnósticos ou sintomas que são possíveis tratar com a cannabis ou seus produtos. E, a partir daí, junto com parceiros médicos e pesquisadores, criamos a primeira enquete nacional online sobre os tratamentos com canabinoides e seus resultados. E sempre que posso divulgo também, popularmente, resultados desta enquete que atualmente já está na fase de projeto de pesquisa na Plataforma Brasil.
Não cabe aqui discutir detalhes das evidências científicas atuais contra ou a favor ao uso medicinal da maconha ou de seus princípios ativos. Mas é importante demais deixar demarcado que seguramente já há evidência médico-científica suficiente em favor do uso medicinal amplo da maconha. E é o que vemos ocorrer em vários países atualmente, inclusive no Brasil.
O que eu posso dizer, como meu testemunho, é que toda a minha prática clínica, já de oito anos nesta área, assim com as pesquisas que eu próprio procuro desenvolver e todas as evidências trazidas pelas pesquisas médicas internacionais, que se avolumaram muito mesmo nos últimos anos, realmente confirmam a efetividade da cannabis ou dos canabinoides para vários distúrbios neuropsiquiátricos, inflamatórios e autoimunes, entre outros, assim como a sua máxima segurança na comparação com os medicamentos correntemente utilizados para estes tratamentos.
E tudo isto só me anima a divulgar e prescrever mais e, se possível, ajudar o máximo de pessoas a terem acesso aos tratamentos com os canabinoides.
A resolução sobre a prescrição de canabinoides do CFM, de 2014, resultou defasada, extremamente restritiva e irreal desde a sua origem. Por um lado porque já havia evidência da efetividade e segurança de uso dos canabinoides, não apenas o CBD, para vários sintomas e doenças. Além disso, nem havia, na ocasião, produto apenas de CBD, isolado ou sintético, que estivesse disponível no mercado para os pacientes do Brasil e, por isso, de modo geral, o que se prescrevia, e os pacientes usavam, eram os extratos, puros ou diluídos, de cannabis integral (o chamado óleo full spectrum). E, ademais, conscientes de que o campo da medicina canabinoide vem se desenvolvendo atualmente de modo acelerado em todo o mundo, a resolução do CFM previa a sua revisão em 2016, à luz das novas pesquisas científicas na área. Essa revisão não foi feita e realmente nunca foi de fato possível cumprir a resolução integralmente, tornando-a obsoleta já ao nascimento. E, por isso, centenas de médicos, das mais diversas especialidades, estão hoje prescrevendo canabinoides nas suas mais diversas formas, inclusive flores de maconha, para os mais diversos diagnósticos. Prescrições que estão de acordo com as normas e recebem a autorização técnica da Anvisa, que é, realmente, o único órgão regulador responsável. Prescrições que também são aceitas pela justiça e são a base de centenas e centenas de processos vitoriosos para acesso a produtos medicinais de cannabis, à própria flor de maconha, ou ao direito ao autocultivo para uso medicinal.
E é o que eu também faço e continuarei fazendo.
O CFM e os CRMs não devem, por princípio, agir para restringir a prescrição médica além das restrições impostas pela Anvisa, atuando, paradoxalmente, contra a liberdade e a autonomia do profissional médico, que eles deveriam proteger. Mas, quando se trata de canabinoides a coisa toma uma conotação bem diferente e os conselhos de medicina, no atual quadro político e ideológico, com a resolução de 2014 e estes processos, como os que eu estou sofrendo, têm atuado realmente contra os seus princípios e em prejuízo dos profissionais médicos e sobretudo dos pacientes. Não por razões técnicas ou éticas, mas por razões ideológicas.
Não é de se estranhar, portanto, que se direcionem contra mim, já que posso ser considerado um propulsor do movimento, hoje já vitorioso, da medicina canábica no nosso país, em especial no tocante ao autismo e, porque, além disto, eu me manifesto publicamente, e de forma polêmica, sobre temas sociais e políticos e sempre defendo, aberta e publicamente, o livre plantio, a livre circulação e o livre uso da maconha.
Infelizmente as razões ideológicas contrárias foram tão fortes, e em parte são ainda, que contaminaram o próprio campo técnico e científico e as instituições da área de saúde em todo o mundo que, por décadas, condenaram equivocadamente a maconha como uma droga perigosa e danosa para a saúde pública.
Ocorre que, na minha origem profissional, a minha especialidade médica é saúde coletiva: medicina preventiva e social. E é com este olhar que eu me aproximei da questão da maconha e das drogas em geral. O olhar da saúde pública.
E o que um olhar sereno e profundo de saúde pública sobre a questão da criminalização das drogas nos mostra? Que os resultados desta política são mais danosos, mais violentos e mais destrutivos do que os resultados do uso das próprias drogas que ela diz combater. As mortes, a mutilação das vidas e a destruição das famílias são muito maiores com a violência e opressão desencadeadas pela criminalização das drogas do que com a própria dependência química devida às drogas proibidas.
É triste, é horrível, é patético ter que repetir esta verdade, milhares de vezes, e ver que, em muitos fóruns, continua sempre prevalecendo o discurso terrorista e a farsa da guerra contra as drogas. Obviamente, essa é uma guerra de verdade, mas não contra drogas e sim contra pessoas, contra certas pessoas. Tudo isto é mais do que evidente quando se lembra que vivemos em uma sociedade que aceita e até estimula o uso de algumas drogas e, incrivelmente, justamente algumas das mais tóxicas e letais, como o álcool, por exemplo.
Mas este verdadeiro delírio das instituições públicas e das autoridades de saúde pública está sendo progressivamente superado, corrigido, mundialmente, em função de uma visão menos ideológica e mais científica e responsável em relação à questão das drogas.
Especialmente no tocante à maconha estas mudanças são aceleradas no mundo todo. Dos Estados Unidos à Tailândia a liberação da erva é clara tendência mundial, sustentada pela própria Organização Mundial de Saúde (OMS). E é óbvio e até natural que seja assim, pois, se pode criticar e pôr em questão a maconha de muitos modos, mas jamais, de modo algum, se pode atribuir ao livre uso da maconha um risco à saúde pública maior, ou igual, ou sequer próximo, do risco e dos danos causados pelo consumo de álcool, cigarros ou opiáceos, por exemplo.
De fato, por sua máxima segurança em comparação com estas e várias outras drogas, a liberação do uso de maconha deve resultar em ganhos de saúde pública. Porque, ao ser liberada, ela competirá mais, na escolha popular, com estas outras drogas mais danosas, seja como recurso medicinal ou recreacional. E a liberação do uso da erva deve ser positiva também por reduzir a tensão e a motivação para a opressão e a violência associadas à sua criminalização.
É neste sentido que apontam as informações de todos os países em que a maconha já foi legalizada.
E é por isso que eu vou continuar a prescrever e, dentro do possível, ajudar a dar acesso à medicina canabinoide e também a propagar a liberdade de cultivo e uso da maconha.
Preciso dizer, para finalizar, que jamais houve acusação de falta ética ou técnica real contra mim, muito menos ainda que partisse de pacientes meus. Além de prescrever e divulgar a clínica canábica sou acusado também, nos processos dos dois CRMs, de atender em seus territórios estaduais sem sua autorização. Esta é uma acusação que perdeu muito da sua importância com as ampliações do exercício da medicina online ocorridas desde a pandemia. E, obviamente, é uma acusação apenas formal e que serviu como porta de entrada para o que me parece ser o objetivo real dos processos, que é inibir ou até impedir a prática livre de uma clínica canábica e a legalização da maconha aqui no Brasil.
Aproveito esta defesa pública para me solidarizar a todos os colegas médicos que estão neste momento sofrendo processos similares ou que estejam se sentindo ameaçados por isto. Sou, naturalmente, um parceiro de todos os colegas prescritores de canabinoides e tenho certeza que historicamente nós já vencemos esta batalha, mesmo que ainda tenhamos perdas. Creio que podemos e devemos tomar atitudes conjuntas para nos proteger como um coletivo, já que os ataques sobre um de nós podem terminar nos fragilizando e prejudicando a todos.
*Atua em pesquisa e desenvolvimento em saúde coletiva tanto no setor público quanto privado, com enfoque em análise de bancos de dados e gestão de programas de atenção primária, medicina preventiva e promoção da saúde. É pesquisador e expert clínico em medicina canabinoide e pioneiro na pesquisa e e no tratamento de autismo com canabinoides. É também palestrante e divulgador na área de medicina canabinoide.
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Anvisa autoriza o uso terapêutico de canabidiol, um dos principais componentes da maconha, desde janeiro de 2015. Foto: Getty Images /BBC