Não basta reconhecer que há fome, é preciso apontar as causas

Vivemos mais uma semana marcada pela divulgação dos alarmantes números do avanço da fome ou insegurança alimentar grave

Flávia Londres*, Brasil de Fato

Os dados apresentados pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar (Penssan) detalham a situação nos estados e esmiúçam como estão as geladeiras e dispensas das famílias brasileiras conforme a renda, a escolaridade, o endividamento e outros recortes. Os gráficos e tabelas retratam e analisam a fundo a marca de 33,1 milhões de brasileiras e brasileiros passando fome no país.

A gravidade da situação e a qualidade do levantamento realizado no 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil (Vigisan) despertam a atenção dos veículos de comunicação, ganhando o devido destaque nos telejornais e portais de informação.

Pudemos notar ao longo desses meses, no entanto, que a maior parte das reportagens que tratam da pauta se restringe à reprodução dos dados do inquérito, buscando ilustrar com imagens de filas para cestas básicas, mesas e panelas vazias de famílias rurais e urbanas, a realidade que se agravou nos últimos anos. Poucas matérias buscam explicar as causas do quadro de desnutrição a que a população brasileira mais vulnerável vem sendo submetida, embora as análises estejam também presentes nos relatórios do Vigisan, que têm contribuído enormemente para dar o embasamento necessário à abordagem jornalística sobre o tema.

A mais recente publicação da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) sobre esse debate e sobre a busca de soluções para enfrentamento do problema da insegurança alimentar e nutricional no Brasil chega também nesta semana, a tempo de contribuir e dialogar com os resultados do inquérito Vigisan e oferecer subsídios para a tomada de decisão do poder público.

Apresentado nesta quarta-feira (14) o estudo ‘Brasil, do flagelo da fome ao futuro agroecológico’ reúne e analisa os principais atos de desmonte de políticas públicas federais de apoio à agricultura familiar e à agroecologia e de promoção da segurança alimentar e nutricional no país.

Embora não se proponham a estabelecer o nexo causal entre a fome e os atos e omissões dos órgãos do Governo Federal, as análises evidenciam que as políticas públicas federais que vêm sendo abandonadas nos últimos anos possuíam papel central na alimentação das populações mais vulneráveis do país. A vivência das organizações, movimentos e articulações de trabalhadoras e trabalhadores rurais também não deixa dúvidas de que a falta dos recursos e esforços federais está promovendo a persistente insegurança alimentar vista nos últimos anos.

Desde o início da pandemia, além de promover importantes ações de solidariedade, os movimentos do campo tentam alertar a sociedade, o poder público e também a imprensa que a falta de amparo à produção da agricultura familiar levaria o país a quadros inflacionários e de dificuldade de acesso aos alimentos. Temos visto essa realidade ser fartamente documentada pelos veículos de comunicação, mas, mais uma vez, com tentativas muito vezes tímidas de esclarecer os motivos da fome no Brasil.

Sabemos que a crise econômica, o desemprego e a carestia são fatores importantes para a formação do cenário visto em 2022, mas nenhuma dessas dificuldades justificariam o desamparo a que a população está submetida. Pelo contrário, os obstáculos deveriam estimular a iniciativa e proatividade do poder público no encaminhamento de soluções que estão além do Auxílio Emergencial.

Entre as principais políticas públicas enfraquecidas, desde 2016, o documento da ANA destaca o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), recentemente rebatizado de Alimenta Brasil, que passou por uma significativa redução orçamentária. Enquanto, entre 2012 e 2014, as dotações finais ficaram na faixa de um bilhão de reais (R$ 1,3 bilhão, em 2012), o menor valor do decênio foi destinado em 2021, com um orçamento equivalente a R$ 135 milhões.

Durante o primeiro ano da pandemia, o PAA recebeu um aporte adicional de R$ 500 milhões, destinados pelo poder Executivo após uma campanha iniciada pela ANA, que contou com a intensa participação de dezenas de movimentos do campo, além de parlamentares e especialistas na importância das compras públicas para o amparo à agricultura familiar e à produção de alimentos.

Outra política federal de financiamento da produção rural, o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) teve sua destinação de crédito feita de forma cada vez mais seletiva. Os recursos investidos foram se concentrando, principalmente, na região Sul do Brasil — que chegou a absorver 60% do valor total investido entre 2017 e 2018 —, reforçando uma tendência histórica.

Já o Plano Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (PLANSAN) 2016-2019, segundo a pesquisa, teve uma redução de 67% no programa de distribuição de alimentos para grupos populacionais tradicionais e específicos, na comparação de valores aplicados entre 2014 e 2018. O PLANSAN III (2020-2023) sequer foi estabelecido.

O Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE), por sua vez, teve a regra de destinação de, pelo menos, 30% de seus recursos para a compra de alimentos da agricultura familiar amplamente desrespeitada, especialmente durante a vigência do Decreto de Calamidade Pública, durante a fase mais letal da pandemia de Covid-19. Os valores repassados às escolas, por aluno, também seguem congelados em centavos de Real, desde 2017.

Outras políticas públicas federais simplesmente foram paralisadas ou ficaram pelo caminho. É o caso do Programa Um Milhão de Cisternas, do programa Bolsa Verde e das iniciativas de apoio à organização econômica e promoção da cidadania de mulheres rurais e de apoio ao desenvolvimento sustentável de comunidades quilombolas, povos indígenas e comunidades tradicionais.

Estamos no período eleitoral e temos consciência das limitações que a imprensa tem na abordagem de temas que possam parecer favorecer um ou outro lado da disputa partidária. No entanto, é justamente este o momento mais importante para evidenciarmos o que foi feito ou desfeito durante os mandatos que buscam reeleição, além de promover o debate e obter o compromisso das candidaturas com a erradicação da fome no Brasil.

A divulgação da publicação sobre o desmonte das políticas públicas de apoio à agricultura familiar, assim como as propostas e soluções para restabelecimento do aparato federal de apoio ao meio rural, a cerca de 15 dias das eleições, é mais uma ação de incidência política da ANA e organizações parceiras a contribuir para a construção de políticas de futuro, de longo prazo, sem pensar em mandatos ou partidos.

Para a promoção desse debate, temos contado com o espaço sempre aberto nos veículos de comunicação progressistas, como o Brasil de Fato, que sempre se propõe a ultrapassar a superfície das pautas cotidianas e ir cada vez mais fundo na busca pelas causas da fome do Brasil, inclusive em período eleitoral.

Portais como De Olho nos Ruralistas, O Joio e o Trigo, Repórter Brasil, Mídia Ninja, A Pública, entre outros, também têm desempenhado papel importante para trazer ao centro do debate eleitoral os temas concretos de interesse das comunidades rurais, muitas vezes invisibilizados na cobertura realizada por outros veículos.

Com a campanha ‘Agroecologia nas Eleições’, que já conquistou a adesão de mais de 350 candidatos e candidatas alinhadas à agroecologia em todo o país, também esperamos oferecer à sociedade opções de candidaturas atentas à importância do papel do Estado para promoção de uma alimentação saudável e livre de agrotóxicos.

Para saber mais sobre as iniciativas do movimento agroecológico durante as eleições de 2022, acesse agroecologia.org.br

*Flávia Londres é agrônoma, integrante da Secretaria Executiva da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA).

Edição: Vivian Virissimo

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