Para um coletivo de pesquisadores, o amplo – e tardio – consenso para derrotar o fascismo deixa de fora o povo. Juntas no barco, as elites concedem uma trégua, mas voltarão à carga assim que caia Bolsonaro. Saída seria combater a guerra e a opressão cotidianas
Por Coletivo Desmedida do Possível*
1. A eleição importa
Somos pela derrota de Bolsonaro. Logo, somos pela eleição de Lula. Tudo indica que não se trata de uma eleição convencional, porque seus resultados podem ter desdobramentos além dos que nos acostumamos a esperar de um processo eleitoral. Uma vitória de Bolsonaro pode abrir as portas para o golpismo, mas uma derrota também. Nada é garantido. No entanto, sua derrota eleitoral assegura que o golpismo continuará ilegítimo e ilegal.
2. A democracia é um ativo
Em defesa desta legalidade, se desenhou na sociedade civil um novo consenso, cujo espectro político é ainda mais amplo do que na campanha de redemocratização na origem da Nova República. Partidos, sindicatos, movimentos sociais, personalidades, grande parte da mídia e das associações patronais, e, de forma indireta, o governo dos Estados Unidos, se uniram em defesa da democracia e do Estado de Direito. Por que tão tarde? Nossa impressão é que este consenso, em defesa de instituições há muito ameaçadas, significa um acordo geral para avalizar a posse de Lula.
3. Desde que sem o povo
As aspirações de parte significativa da sociedade contra o golpismo e o bolsonarismo são compreensíveis e legítimas. A sensação de um grande consenso traz certo alívio diante da avalanche da extrema-direita nos últimos tempos. Quanto mais apoio contra Bolsonaro, melhor. No entanto, apenas quando as elites econômicas se posicionaram, com apoio da grande mídia e a chancela dos Estados Unidos, é que se pôs em marcha uma campanha nacional contra o seu golpismo. Mas, diferente das “diretas já”, esta campanha não vem acompanhada de um apoio e sensibilização das massas. Parece que este consenso democrático se tece no andar de cima da sociedade brasileira.
4. Da aceleração para a contenção
O novo consenso democrático se vislumbra como um acordo de cúpulas, lideranças e elites. Seu efeito eleitoral é chancelar uma provável vitória de Lula. Mas por quê? Com apoio das elites, Bolsonaro acelerou tendências destrutivas e incontroláveis que, no entanto, se tornaram contraproducentes ao bom funcionamento do capitalismo brasileiro. Como sintetizou um promotor da “Carta pela democracia” no Largo de São Francisco, em São Paulo: “o caos do país está fazendo o mundo dos negócios perder dinheiro”.
Será que, em nome do combate ao golpismo, trata-se de suspender esta dinâmica autodestrutiva, ao menos provisoriamente? Por trás do novo consenso, não haveria uma nova tentativa de contenção da crise brasileira?
5. Quem pagará pelo consenso?
Mas a amplitude e força aparente do Novo Consenso pode ser sintoma de sua fraqueza. Porque o país confronta uma degradação econômica e social que estreitará a margem de manobra para qualquer consenso. Diante da devastação em curso, é possível que políticas sociais, mesmo que mais limitadas, tenham um efeito importante. Há muitos elementos de indeterminação no curto prazo e mesmo as eleições estão indefinidas. Mas nada indica que os bons ventos internacionais, que beneficiaram o lulismo, voltarão. Daí, o mal-estar provocado pela sensação de estarmos diante de um “pragmatismo irreal”, que ignora o que é necessário fazer diante da realidade de uma crise que não se resolve nas urnas. E quem pagará pela indiferença diante dela?
6. Trégua
Do ponto de vista das elites, o novo consenso pode ser um reposicionamento tático pacificador. Uma sinalização em favor de uma política conciliadora, que busque remediar o mal-estar imediato. Mas esse acordo não significa um retorno à Nova República. É antes um tempo para se reordenar. Parece que algo se prepara.
O retorno da contenção lulista pode ser um passo para trás, de uma classe dominante em busca de uma saída da Nova República. No fundo, seria uma antessala de novas batalhas. O novo consenso parece ser uma trégua, para retomar uma guerra inevitável.
7. A guerra cotidiana
A dinâmica da guerra emana das formas de reprodução da vida brasileira. Há uma guerra dos de cima, contra os de baixo. Há uma guerra do Estado, contra a população preta e pobre. Mas, acima de tudo, a guerra é cotidiana, porque a forma de vida é concorrencial: o desempregado concorre com o desempregado, mas também com quem está empregado. Que, por sua vez, concorre com seus colegas de emprego. Na televisão, o Big Brother imita a concorrência e a exclusão. Sem paredão, não há espetáculo. Em resumo, o cotidiano é vivido como guerra: “eu tô na luta”.
Essa guerra não é votada: não importa quem vencer, a guerra continuará. Mas quais serão as formas políticas desta dinâmica? Que corpos políticos se enfrentarão?
8. Dois mundos que se ignoram
Para as maiorias que vivem a guerra, democracia parece um assunto dos de cima. E vice-versa. São dois mundos que se mobilizam, mas se ignoram. No mundo ignorado pelos de cima, o imaginário social é um campo de batalha política. Policiais e pastores se veem como defensores da pátria e do bem contra o mal, enquanto cristãos se entregam a uma guerra pela eternidade para redimir o mundo da corrupção e dos males que, um dia, desaparecerão. Esses desejos existem para além da necessidade de sobrevivência material. Abraçar esses desejos, que mobilizam a imaginação popular, parece ser uma das chaves do sucesso da extrema-direita.
9. A guerra pela eternidade
Nos deparamos com duas veredas. Numa paisagem com baixa densidade popular, encontra-se a campanha pela legalidade e pela defesa das instituições, ancorada na conciliação. Na outra vereda, um rio caudaloso metabolizaas eleições numa mobilização política, enchendo as ruas com “Marchas de Jesus” e outros eventos em que a mudança virá pela salvação, como desfecho da guerra. À margem de liberais e de progressistas que se deram as mãos pela democracia, eles também se preparam para uma guerra inevitável. Mas a sua guerra parece ser contra ambos.
10. O futuro deste presente
Um mundo de todos contra todos produz sociedade? Ou produz uma dinâmica social violenta, que se percebe como ingovernável? Para muitos, o ingovernável demanda ordem, a qualquer preço. Provoca o desejo de uma violência, que ordene. Bolsonaro pode ser visto como um improviso desta política. É provável que outros mais capazes venham. O futuro deste presente será disputado por eles.
11. O mundo em crise é aqui, e nossa política tem pouco a dizer
Atravessamos uma crise ambiental total, em relação à qual as responsabilidades do Brasil são decisivas. Uma mudança de paradigma energético é urgente, e há riscos de desabastecimento alimentar no planeta. Há uma crise global dos investimentos e da produção de riqueza, que chegou ao nível de uma guerra europeia, que ameaça se transformar em guerra mundial. A força industrial chinesa e sua nova prevalência tecnológica leva a uma ameaça de embargo, e, no limite, guerra com os Estados Unidos, que não conseguem reativar sua economia. Tendências autoritárias, fascistas e regressivas, aparecem em vários pontos do mundo. Tudo indica uma crise social e econômica do próprio sistema, que vai além das possibilidades de respostas nacionais. E, no entanto, é preciso responder, desde nossas experiências e potências nacionais, a esse impasse universal.
12. O impossível como política
Vivemos um mundo que produz em abundância, mas essa abundância é vivida como escassez. Esse feitiço tem um nome: mercadoria. É preciso reconhecer que a escassez, que nos coloca em concorrência uns com os outros, é uma construção política. Não será urgente uma política contra esta política?
É tecnicamente viável libertar as pessoas do trabalho alienante e compartilhar a riqueza social. Mas isso é politicamente impossível no presente. E, no entanto, parece que só esta política impossível pode desarmar a guerra. Portanto, ela não precisaria se tornar possível?
13. O caminho no avesso
Não está claro se a paz tem futuro. Mas está claro que só teremos um futuro emancipado, à altura da nossa imaginação, se escaparmos da política da mercadoria. As eleições, no estágio atual, servem globalmente para encobri-la. No avesso das eleições, talvez possamos descobrir algum caminho.
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*Antonio Mota, Daniel Feldmann, Debora Goulart, Fabio Agostinho, Fabio Luis B. Santos, Fernando Cunha Sato, Fernando Kinas, Frederico Lyra, Gabriel Rocha, Guilherme Meyer, Henrique Costa, Isabel Loureiro, Patrícia Mechi, Tales Ab’Saber, Thais Pavez, Thiago Cannetieri.